Um conluio que já dura 200 anos, formado para apagar a história, silenciar vozes e oprimir o negro. E construído pela elite brasileira para prevenir por aqui o que ocorreu no Haiti, onde negros escravizados lideraram uma revolta única no mundo e tomaram o poder da mão dos colonizadores. É assim que o jurista e professor Marcos Queiroz define o resultado da Independência do Brasil, que chega ao bicentenário em setembro, e sua herança até os dias atuais.
Parte da tese é apresentada no mais recente ensaio escrito por Queiroz, “Delírio de liberdade”, publicado na edição de março da revista Serrote, do Instituto Moreira Salles. No texto, em diálogo com escritores como Machado de Assis e Lima Barreto, o pesquisador denuncia um processo de exclusão das camadas negra e popular na formação da nova nação em 1822. Queiroz avalia que os conceitos e as representações das palavras liberdade e independência são objeto de uma forte disputa – que ainda está em curso.
Em entrevista ao Intercept, o professor de 33 anos ressalta que as estruturas desenhadas a partir da Independência moldaram conflitos jamais superados pela sociedade brasileira. Pior, agora eles estão amplificados em ideais incensados pelo governo de extrema direita de Jair Bolsonaro, a partir de bandeiras como o apoio ao excludente de ilicitude (a licença a policiais para matar) e da gestão de Sérgio Camargo à frente da Fundação Palmares.
“As leis e medidas do governo legitimam de maneira silenciosa o processo de racismo institucional. Obviamente, esse processo é garantido pela violência aberta e institucionalizada. E o nosso setor de segurança pública cumpre esse papel [de perseguir a população negra] até hoje”, afirma Queiroz.
Marcos Queiroz é professor de disciplinas como Formação do Estado Brasileiro e Direito e Literatura no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa. Para chegar ali, se graduou em Direito na Universidade de Brasília, se valendo da política de cotas raciais. Atualmente, divide seu doutorado em aulas na UnB, na Universidad Nacional de Colombia, em Bogotá, e na Duke University, na Carolina do Norte, Estados Unidos, também graças às cotas.
Por óbvio – ou nem tanto assim, nestes obscuros tempos brasileiros –, Queiroz é um defensor da continuidade da política que o permitiu ter acesso à graduação e à pós-graduação. “Se não houvesse cotas, e isso não é uma questão piegas, não estaria falando com você hoje, tocando nestes assuntos. As cotas, do meu ponto de vista, permitiram que eu me apropriasse de uma linguagem, de um lugar de expressão, e fosse ouvido no Brasil”, ele diz.
Queiroz acredita que a saída do status quo desenhado pela elite branca – o da Independência às margens do rio Ipiranga – e replicado ao longo de diferentes regimes políticos brasileiros pode vir da arte. “Gosto muito de pensar que a arte no Brasil nos fornece muito esse insumo de desejar o futuro. Os nossos rituais e cerimônias, espaços em que o corpo se mistura com a espiritualidade e de alguma forma borra as fronteiras de passado, presente e futuro, ajudam a projetar e desejar estar vivo amanhã”, ressalta.
Leia a entrevista de Marcos Queiroz.
Intercept – Como foi o percurso para formar esse pensamento de que palavras e conceitos como democracia, independência e liberdade no Brasil são, de certa forma, um delírio?
Marcos Queiroz – A produção de um texto é sempre tumultuosa. Recebi a proposta da Serrote para falar, de forma livre, sobre a Independência, relacionando com a discussão do bicentenário. Pensando em dialogar com a perspectiva da arte, da literatura e do que venho pesquisando, acabei chegando àquele que talvez, para mim, é o maior intérprete da sociedade brasileira, particularmente do século 19 brasileiro, por mais que não estivesse vivo no período da Independência, mas em boa parte do Brasil Império escravocrata, que é Machado de Assis.
Vejo a obra de Machado dialogando com críticos literários que a usam para pensar o Império, como Roberto Schwarz, Alfredo Bosi, Sidney Chalhoub. Algo que se ressalta muito é essa desconfiança com relação à realidade que ele tenta transmitir por meio dos seus enredos e da perspectiva de seus narradores. Como exemplo, Brás Cubas, Bento, o Conselheiro Aires, todos têm algo que escapa dos narradores-autores, além do caso mais paradigmático, que é Capitu no Dom Casmurro. Questiona-se se tudo que é narrado é real ou não passa de um delírio. Chalhoub e Schwarz usam isso para pensar que os narradores são, em geral, oriundos da classe senhorial escravocrata, por isso se deve desconfiar da visão sobre a realidade brasileira, que não passaria de um delírio, que subverta os fatos e a própria história. No limite, por serem tão autocentrados, estariam delirando a respeito do real.
Ao mesmo tempo, pensando em um contexto mais amplo dentro da obra, Machado usa a palavra delírio em alguns momentos. Cinco anos após a Abolição, em uma crônica, ele usa a palavra delírio para falar que a única vez que viu um delírio público no Brasil foi no 13 de maio. É um uso paradoxal. No contexto literário, o delírio é a visão da classe senhorial, e o que Machado viu na realidade brasileira é o 13 de maio, talvez o único momento em que foi fraturada a realidade delirante construída pelos senhores, em que a maioria dos brasileiros não são cidadãos, vivendo em indignidade, em formas abertas ou veladas de racismo, exclusão e violência. É um delírio em que a população negra, mesmo por um momento de utopia que permeou o 13 de maio de 1888, se viu como potencial cidadã do Brasil. Estamos em 2022 e sabemos que, até hoje, não somos absolutamente cidadãos desse país, vivendo ainda os delírios criados pela casa-grande.
O texto remonta a 1822 como o momento de formatação desse sistema que impede a concessão de cidadania ao povo negro, como resposta ao processo da Revolução Haitiana. Como se deu esse processo conduzido pelas elites da época?
Tem uma expressão que gosto muito de utilizar, de que o Brasil nasceu para negar o Haiti. Essa ambivalência foi captada de maneira genial, anos depois, por Caetano Veloso e Gilberto Gil, quando falam que “o Haiti é aqui, o Haiti não é aqui”. É aqui o país da maioria negra que sofre as violências do racismo, e ao mesmo tempo não é aqui o país revolucionário em que os negros afirmaram seus direitos e a igualdade racial. Aconteceram dois grandes fenômenos no mundo durante a virada do século 18 para o 19, do ponto de vista econômico e político: o desenvolvimento do capitalismo moderno, com a industrialização e a abertura de mercados, e a emergência do liberalismo, com os direitos fundamentais, a soberania popular.
Mas as principais mercadorias que passavam pelo Atlântico eram corpos de pessoas africanas escravizadas e, mais do que isso, os produtos feitos por esses escravizados, bases para a Revolução Industrial, como o algodão, o açúcar e o café necessários para manter os trabalhadores europeus ativos nas fábricas. Isso demandava cada vez mais tráfico negreiro.
‘O Brasil é um estado que declarou independência em um contexto em que a escravidão estava sendo contestada’.
O Haiti estava no centro dessa encruzilhada. Foi palco de uma revolução que tentou criar um governo baseado nos princípios de igualdade e liberdade, ao mesmo tempo que vai intervir no sistema capitalista, negando o plantation. Os haitianos indicaram que o mundo devia caminhar para outro lugar, pois do contrário iria destruir povos e territórios. Mais do que isso, o haitiano sabia que isso era talvez uma ameaça para a humanidade, o que é uma mensagem ainda para hoje. O filósofo haitiano pós-revolucionário Barão de Vastey falava que não há humanidade enquanto há um sistema que permite às mães enterrarem seus filhos em massa. Portanto, o Haiti mostrava um outro futuro possível.
Quando olhamos para o Brasil, que se encaminhava para a Independência, vemos que a fórmula de acumulação mercantil era baseada justamente no que o Haiti estava negando: tráfico negreiro e escravidão. As elites brasileiras, mais do que qualquer outra elite nacional, se fundavam nesses dois elementos. O Brasil é um estado que declarou independência em um contexto em que a escravidão estava sendo contestada, desde a Revolução Haitiana, no Atlântico. Lidar com esse cenário no Brasil era negar o Haiti, carregando uma contradição interna. Assim como todos os países que declararam independência naquele momento, muitos baseados no léxico liberal, o Brasil, que mesmo sendo uma monarquia apoiava-se nesse ideal, tanto que aprovou uma Constituição logo depois, dependia de seu Haiti interno, que era a população negra. Não só economicamente, mas também em sentido militar, na base das tropas, como até hoje.
A grande tarefa dessas elites senhoriais era negar a população negra e, ao mesmo tempo, garantir a independência mantendo a escravidão. Era evitar uma sublevação que não só declarasse a independência, mas também colocasse em risco o sistema escravocrata. Nesse contexto, vemos crescer o alistamento de negros nas tropas brasileiras, mas também o número de fugas, de formação de quilombos e um ciclo de revoltas escravas, como já no período Regencial as revoltas de Carrancas [em 1833], dos Malês [em 1835] e de Vassouras [em 1838].
A Constituição brasileira aprovada em 1824 silencia sobre o tema da escravidão. Em que ponto essa questão faz parte desse processo de apagamento?
Essa é uma das grandes sacadas das elites brasileiras. Naquele contexto de virada de século, o Brasil era o último país largamente escravista, à exceção de Cuba, que enfrentaria a tarefa de fundar as bases nacionais, que dentro daquele léxico liberal era ter uma Constituição. O Brasil sabia do que aconteceu nos Estados Unidos, o que aconteceu no Haiti e o que estava acontecendo na América hispânica. Portanto, sabia de todas as celeumas que poderiam se gerar em países absolutamente excludentes, no qual escravidão e tráfico eram norma, ao se discutir em um parlamento, uma assembleia constituinte, a questão racial, os direitos ou a negação dos direitos dos negros.
Um agente francês, que cito no ensaio, fala aos brasileiros que abrir as portas constitucionais em um país de escravos é colocar absolutamente tudo em risco. Portanto, essa sorte dos atrasados vai moldar o debate da assembleia constituinte de 1823. Quando se chega na discussão de cidadania, uma das últimas, há uma tropa de choque parlamentar, entre eles Maciel da Costa, talvez o principal redator da Constituição do Império, que, toda vez em que se falava da escravidão ou da cidadania dos libertos, ele queria silenciar o debate.
O grande exemplo que usavam era “não podemos falar de cidadania dos libertos ou dos africanos ou da questão dos africanos, não veem o que aconteceu no Haiti?”. Na retórica deles, a França revolucionária abriu a discussão sobre a cidadania dos livres no Haiti e nas colônias e isso gerou um processo revolucionário que destruiu sua principal colônia, a pérola das Antilhas. Então, queriam evitar que a discussão sobre cidadania chegasse. Mais do que isso, era necessário silenciar sobre ela. O país iria manter a escravidão baseado em um silêncio, em um conluio.
Maciel da Costa foi derrotado em 1823. É assim que vemos a influência. A proposta dele era de que não tivesse nada sobre escravidão no texto constitucional e não se permitisse a cidadania dos libertos africanos. Quando olhamos o projeto aprovado na Constituinte, essas duas coisas estavam lá, dizendo que era dever do estado brasileiro promover emancipação e integração da população negra, o que só aconteceu legalmente muito depois, e a concessão de cidadania não só aos libertos nascidos no Brasil, mas também aos nascidos na África. Isso era central em um país no qual a escravidão ainda era baseada no tráfico negreiro. Quando olhamos o texto, não há nenhuma menção. A escravidão está no texto de maneira implícita, pois quando se fala de libertos, é porque há um sistema escravocrata vigente. No entanto, não há mais menção a africanos, e eles passam a viver no limbo.
Esse silêncio foi construído, no momento-chave de fundação da nação, olhando para o Haiti. Olhando que o vínculo entre direito, população negra e questão nacional coloca o país em risco. Isso é uma lição que vai formar a cultura jurídica nacional, que se entrelaça com a identidade nacional brasileira. Ao mesmo tempo que se estabelece uma cultura jurídica que regulamenta raça sem falar dela, se utiliza dessa cultura para falar “olha como nós não somos racistas”.
Um mito que se tem até hoje sobre a Constituição de 1824 é o de que “é uma constituição extremamente liberal, é a primeira do mundo com uma carta de direitos, não delimitou o lugar da escravidão”. Isso é uma mentira, porque ela delimitou por meio do silêncio. Ela conseguiu formar um enquadramento jurídico que depois vai ser absolutamente radicalizado pelo Partido Conservador para legitimação e estabilização do sistema escravocrata no Brasil. Vai ser um dos instrumentos de perpetuação da escravidão ao longo da história e da cultura jurídica que não quer discutir até hoje de maneira séria o lugar da população negra no Brasil.
Há um diálogo entre esse período de Independência, o pós-abolição e início da República e a situação atual do Brasil no que diz respeito à opressão da população negra?
Parece muito que estamos repetindo algumas coisas. Citei Lima Barreto no ensaio, olhando para sua literatura ou mesmo para sua biografia, porque parece que o que ele está vivendo, enfrentando os ambientes institucionais daquela cidade do Rio de Janeiro, são dramas que a gente está vivendo agora, que a população negra repetidamente vive ao longo da história.
Gosto muito do conceito da professora Leda Maria Martins chamado tempo espiralar, que ela usa para interpretar as festividades negras no Brasil. Seria um tempo em que muitas vezes há um borramento entre passado, presente e futuro, e que ao mesmo tempo que não é circular volta a ser igual ao que era. Espiralar em uma ideia de movimento, com mudança no processo. Isso serve para os três momentos: Independência, proclamação da República e Abolição e Brasil contemporâneo. Em 1822, se pegarmos a população do Rio de Janeiro, metade era de pessoas livres, incluindo os negros livres, e a outra de escravizados. Para administrar isso, era preciso adotar táticas sofisticadas, para não permitir que se repetisse o que aconteceu no Haiti.
Duas formas, que estão nos fundamentos da colonização e ganham caráter de projeto de estado, foram utilizadas para lidar com a população negra. A primeira, como já falamos, é o silêncio. Sidney Chalhoub vai falar que a classe senhorial brasileira vai aprender ao longo da história que uma das formas mais eficazes de excluir a população negra em um país de maioria negra é usar uma estratégia de exclusão por meio do direito, mas que não se fale que é uma estratégia racial.
Ele cita um exemplo: a partir de 1870, há cada vez mais requisições de pessoas negras africanas libertas para formação de associações. O Conselho de Estado vai emitir um parecer para que as associações não sejam aceitas, porque elas afirmam o princípio racial. Os negros quererem fazer uma associação baseada nas suas origens africanas é romper a ordem jurídica baseada na alegada igualdade. Um conselheiro fala que, se fosse permitido aos negros se reconhecerem, por meio do direito, enquanto coletividade, toda a arquitetura da ordem social estaria sob risco. A mesma coisa que Maciel da Costa fala em 1823. Esse mesmo Conselho autoriza sociedades de imigrantes europeus. Ou seja, os negros não podem ter direitos baseados na sua origem comum, mas o branco europeu pode. E esse imaginário continua presente até hoje no Brasil, regulando nosso direito.
‘Os negros não podem ter direitos baseados na sua origem comum, mas o branco europeu pode’.
A outra forma é por meio da violência. E há uma questão que é muito importante no contexto da Independência, que é a violência expressa. A Independência gera um processo de formação do estado nacional. A maior questão por trás é criar um projeto hegemônico da classe senhorial, esparramada pelo Brasil inteiro, cada um com seus interesses locais, que colocavam em risco a ordem. O estado nacional brasileiro vai assumir a tarefa de coordenar essas classes. Dirigido pela classe senhorial do Vale do Paraíba, mas como uma maneira de coordenar os interesses locais junto com o projeto nacional que tem como fundamento a manutenção da escravidão.
Entre várias questões, o estado assumiu, sem minar todo o poder do senhor, a responsabilidade por punir os negros que se revoltavam. Além dos pelourinhos das casas-grandes, os capatazes e feitores, o estado também passou a punir quem reivindica sua dignidade. Isso fica muito evidente 13 anos depois da Independência, com a publicação da lei da pena de morte logo depois de duas grandes revoltas, a das Carrancas e a dos Malês. É uma lei absolutamente direcionada a punir pessoas negras rebeldes. É o estado dizendo que o negro que não aceite esses lugares da ordem escravocrata [vai ter como punição] a morte ou o degredo, mandar a pessoa de volta para a África.
Essa maneira espiralar do silêncio estava presente na proclamação da República casada com a abolição da escravidão, se a gente olhar para as leis de vadiagem, a criminalização da capoeiragem. Não se diz que é uma lei contra a população negra, como as leis de Jim Crow nos Estados Unidos. Mas quem fazia capoeiragem no Brasil naquele momento? Era a população negra.
A gente vê hoje, de maneira mais sutil ainda, as diversas normas administrativas para regulamentar o comércio de rua. O famigerado “rapa” atua baseado em normas municipais, que não falam que vão excluir o comerciante negro da rua, mas sim que vão “higienizar” a rua, mantendo apenas o comércio da população branca, mais abastada. Elas legitimam de maneira silenciosa o processo de racismo institucional. Obviamente, esse processo é garantido pela violência aberta e institucionalizada. E o nosso setor de segurança pública cumpre esse papel até hoje.
No ensaio, você diz que as palavras são campos de batalha. Toda essa discussão perpassa pelas palavras liberdade, democracia e independência. Na sua avaliação, em que pé estão as disputas nesses campos de batalha que são essas três palavras?
Acho que vivemos um momento central, pelos processos recentes que temos vivido no Brasil. Estamos nessa etapa da pandemia, depois de mais de 600 mil pessoas morrerem, boa parte delas de maneira absolutamente desnecessária. Morreram porque é projeto do estado brasileiro hoje matar pessoas, deixar pessoas passando fome. Temos um processo de desmonte de qualquer tentativa de construção de uma independência brasileira, no sentido de soberania nacional. Se vê um desmonte não só das instituições públicas que garantam uma certa autonomia do estado, mas um desmonte populacional brasileiro.
A gente se sente um pouco desmontado, um sobrevivente em um país que é quase um apocalipse. Todos os dias são notícias que de alguma maneira mexem com nossa própria sanidade. Em um contexto tão particular, numa encruzilhada tão decisiva da nossa história, as palavras ganham um peso de disputa muito maior. Duas que você citou, independência e liberdade, estão no centro de debates contemporâneos. Debates que de alguma maneira atravessam nosso lugar como povo brasileiro, como estado-nação.
Independência é a mais evidente, estamos no ano do bicentenário. Está na agenda do dia. Se eu ando hoje na Esplanada, em Brasília, lá estão todos os prédios dos ministérios com grandes banners com figuras oficiais da história hegemônica da Independência. O governo brasileiro, plagiando uma pesquisa da UFMG, acaba de lançar um site sobre o bicentenário da Independência, de novo prestigiando as figuras oficiais, que geralmente têm relação com a classe escravocrata. Tem uma disputa sobre a Independência colocada. Seja pelo discurso oficial ou pelas imagens que circulam pela arena pública.
Acho que nós, pessoas negras, temos que nos pensar nesse processo. O Brasil não poderia ser o que é hoje, desde o sentido da construção da riqueza material, sem a população negra. Um dos objetivos do ensaio é mostrar que naquele momento não só houve um sentido oficial, que depois foi construído pelas instituições, sem olhar para as demandas populares. A população participou, disputou, tentou construir um outro projeto de Brasil, diferente daquele que foi consolidado pela classe senhorial. Ela estava nas ruas, viu o que aconteceu no Haiti, via o que estava acontecendo na América hispânica, as ideias de revolução, de igualdade e liberdade, da soberania popular. E queria que aquelas ideias democratizassem esse futuro país que estava se chamando ali de Brasil. Resgatar esses processos, essas pessoas, essas lutas é fundamental para um horizonte mais democrático do passado. Sem ele, a gente não consegue pensar em um futuro mais democrático para o Brasil, construir de fato uma independência que tenha o peso e o sabor dessa palavra, que cada um possa ter sua autonomia sem depender da desumanização do outro.
E a respeito da liberdade?
Quando se falava de independência no início do século 19, também se falava de liberdade, quase como sinônimos. Era se desvincular de qualquer tipo de amarra de um poder metropolitano ou, muitas vezes, de um poder local. Liberdade era essa ideia de autodeterminação, de cada um poder buscar sua felicidade, desde que ela não interfira na vida dos outros. Ela foi disputada lá e está no centro hoje. A classe senhorial assume o estado brasileiro e vai interpretar essa palavra. Para os senhores, liberdade era o estado não poder intervir nas relações privadas entre senhores de escravos. Ou seja, a propriedade escrava, baseada no direito à liberdade, era um direito absoluto. Não poderia haver leis que regulamentassem aquela relação, nem leis, como no projeto da constituinte, que programassem a emancipação dos escravos, porque isso era interferir na liberdade dos senhores, na livre disposição dos seus bens. Liberdade, portanto, era o direito de defesa absoluta da propriedade, da não intervenção do estado nas relações privadas e do livre comércio, que era o tráfico negreiro, a escravidão.
‘O princípio da liberdade no Brasil é oficializado pela classe senhorial na dependência da submissão de outra pessoa’.
Parece economia política, mas é uma concepção de mundo que forma a interpretação da liberdade. O princípio da liberdade no Brasil é oficializado pela classe senhorial na dependência da submissão de outra pessoa. Em Helena, do Machado de Assis, há uma passagem em que ela conversa com Estácio, que é um senhor de escravos. Ele vai explicar sua concepção de liberdade e diz: “Me veja sobre este cavalo e aquele negro que está caminhando ali. Eu sou livre para dispor do meu tempo da forma como quiser, posso ir e vir, posso parar, posso refletir, posso controlar o tempo. Por quê? Porque aquele escravo ali me proporciona isso”.
A liberdade que está ali, em termos jurídicos e econômicos, como propriedade privada absoluta, não intervenção do estado e livre comércio, está centralizada no corpo humano de uma pessoa negra e depende, na prática, duma cosmovisão que desumaniza outro sujeito. Como a Fabiana Moraes coloca em seu texto nessa mesma edição da Serrote, “a minha independência depende da dependência dos outros”, da dependência absoluta e generalizada de uma classe trabalhadora sem direitos. É a precarização que encontramos ainda hoje no mundo do trabalho.
Essa é uma maneira de liberdade absolutamente egocentrada, baseada na submissão dos outros, que não concebe o outro como sujeito. A liberdade senhorial é absoluta. Essa concepção está aqui até hoje. Na pandemia: “Não quero usar máscara, não quero me vacinar, o estado não pode fazer porra nenhuma na pandemia, porque isso fere a liberdade das pessoas”. O conceito de liberdade aqui é o senhorial. Como se os senhores continuassem falando, permeando e delimitando o debate no Brasil. Essa disputa para que a gente consiga pensar outros sentidos de liberdade está posta.
A política de cotas raciais no Brasil está para ser revisada. Qual o potencial que as cotas têm na quebra desse pacto de silenciamento e opressão?
Não tenho como falar de política de cotas sem falar da minha experiência pessoal. Fui cotista na graduação, nas primeiras gerações, nos anos 2000. Sou cotista agora no doutorado. Em boa parte da minha vida universitária, construí o movimento negro na Universidade de Brasília para pautar a questão das cotas. Seja quando houve a discussão dos 10 anos das cotas na UnB, em 2014, seja posteriormente lutando para a aprovação das cotas no mestrado e no doutorado em direito na UnB. Portanto, é o que me atravessa, quase uma condição de ser o que eu sou. Se não houvesse as cotas, e isso não é uma questão piegas, não estaria falando com você hoje, tocando nesses assuntos. As cotas, do meu ponto de vista, permitiram que eu me apropriasse de uma linguagem, de um lugar de expressão, e fosse ouvido no Brasil. A população negra sempre fala. Em qualquer jornal, vai ter a população negra protestando, porque ela é violada nas diversas periferias e bairros, a todo momento, pelo estado. A questão é ser ouvido. E as cotas criaram essa fratura, ainda que pequena, que não realizou todo seu potencial. Mas que permitiu que uma grande geração de pessoas negras deslocassem não só seu lugar pessoal, mas o de sua família, e de nós como coletividade negra. Um processo que nos formou.
Quando fui selecionar o sistema de cotas no vestibular, ele era atacado de maneira absolutamente aberta. Não era uma questão de setores da sociedade. Todo mundo era contra, à exceção do movimento negro e de alguns aliados. Isso dá o tamanho da vitória com a aprovação e, depois, a garantia de constitucionalidade dada pelo STF. E a gente tinha que se formar cotidianamente para defender a política, para defendê-la mesmo quando já estava vigente. Éramos bombardeados por professores, anônimos, gente dizendo: “Ah, isso é injusto, fere o princípio da igualdade, você é racista”. Esse era o nível do debate, na minha experiência e de milhares que entraram no sistema universitário por meio dessas políticas. As cotas talvez sejam a maior vitória da população negra depois da Abolição, de tão disruptivas.
Pela primeira vez, o estado brasileiro adotou a postura de que era necessário ter uma política de direito para os negros, rompeu com esse conluio de silêncio de que venho falando. Não há política pública de direitos assim em nenhum lugar do mundo. Justamente por isso, ela está sendo atacada. Ela não tem essa força de mudar a história brasileira, mas aponta para um outro caminho, uma outra possibilidade de construção da sociedade. Imagine daqui a 20, 30 anos, se ela for mantida. É uma potência, não é garantia, ainda mais em um país visceralmente racista como o Brasil. Assim, ela está em disputa, atrelada às disputas semânticas sobre liberdade, independência e igualdade.
As políticas de cotas muitas vezes são atacadas com argumentos de que o país não é racista, nunca teve problema de discriminação social. Ou, como hoje vemos, de que o Brasil teve uma ordem escravocrata na qual os negros podiam ascender ou, mais audaciosamente, de que os negros é que cometem racismo. Não são palavras desprovidas de intenção política. Elas emergem nos grandes jornais, nas editoras que publicam esses autores, porque é ano de rediscussão das cotas. É gente que continua tendo prestígio, porque afronta o lugar que nós, intelectuais negros, o movimento negro, conquistamos nos últimos 20 anos no Brasil.
Chegando a esses 200 anos da Independência envoltos em um momento difícil, quais as perspectivas de melhoria para o país?
Uma das maiores tarefas é continuar acreditando no futuro. Parece que a gente vive um passado que preenche a todo momento o nosso presente. A gente tem dificuldade de planejar o amanhã em um país como o nosso. Como vai ser a próxima semana? Vou estar empregado daqui um mês? Um parente vai estar vivo daqui um mês? O nosso futuro se tornou cada vez mais rarefeito, mais sombrio. Isso é uma questão da história brasileira que foi radicalizada pelo governo que temos, um governo absolutamente senhorial, fascista. A gente foi atacado nos nossos sonhos.
A geração que entrou pelo sistema de cotas, que tem diploma hoje, vive em um país de terra arrasada, em que temos dificuldade de contribuir com nossos conhecimentos, porque não há abertura para integração. A questão é retomar esse desejo de que há futuro possível no Brasil. Os haitianos fizeram a revolução porque queriam ter futuro, e não que a escravidão fosse um presente permanente. Os negros do início do século 19 que engrossaram as lutas por independência e tentaram mudar o sentido dessa palavra queriam adiantar, de maneira simbólica, em mais de 60 anos a abolição da escravidão, acelerar o 13 de maio e trazê-lo para aquele momento. Há futuro no Brasil, há possibilidade.
‘A população negra projetou outro país. Na nascente do Brasil, havia outro projeto possível, que continua vivo ao longo de nossa história’.
Gosto muito de pensar que a arte no Brasil nos fornece muito esse insumo de desejar o futuro. Os nossos rituais e cerimônias, espaços em que o corpo se mistura com a espiritualidade e de alguma forma borra as fronteiras de passado, presente e futuro, ajudam a projetar e desejar estar vivo amanhã. Gosto muito de uma fala, em um momento também turbulento do mundo, mas em que o Brasil parecia projetar uma outra forma de construção de relações internacionais. É uma Assembleia Geral da ONU na qual Gilberto Gil vai, como ministro da Cultura. Ele toca “Toda Menina Baiana” com Kofi Annan, é aquela coisa muito brasileira de quebra de protocolo. As pessoas se divertem, desorganizam uma ordem institucional para democratizar aquele espaço.
A Assembleia Geral da ONU, por um momento, de fato se pareceu com a população mundial. O lugar dos ternos, dos tailleurs, das falas empoladas, que naquele momento finalmente parece um espaço em que eu me vejo. Logo depois de tocar, Gilberto Gil é perguntado qual o papel do Brasil no contexto das relações internacionais. Como todos nós, negros, sabemos, o Brasil é um país em que a violência constitui o cotidiano. É um país atravessado pela dor, pelo trauma, pelo sofrimento, pelo desespero, pela descrença. E é também o país do absoluto sublime, onde se consegue criar o absolutamente maravilhoso de onde não se espera, e a cultura é um dos aspectos em que se demonstra isso. Gil fala justamente disso que o Brasil tem.
Se fosse só violência, morte e trauma, eu não estaria aqui, sendo entrevistado por um jornalista negro, sobre temas tão caros a nós. A população negra criou esse país. Criou no sentido sublime de possibilitar a vida através da arte, mas de possibilitar a nossa vida e acreditar nesse futuro. Há esse futuro e a necessidade, como cantava Cartola, de nos encontrarmos.
O Brasil não é só a Independência oficial, a classe senhorial, os ineptos que estão no poder hoje. O Brasil também é Gilberto Gil, Cartola, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Elza Soares. A gente tem que reencontrar essa grandeza que esse país produziu. O Brasil produziu pessoas, projetos, obras, estéticas, políticas gigantescas ao longo da história. A gente continua inclusive sonhando com o país em que a grande maioria da sua população de fato ocupe o espaço público como cidadã, não como corpos a serem abatidos pelo próprio estado.
Não houve só o projeto oficial, não é delírio pensar que na Independência do Brasil se formulou, como a própria elite falava, o partido negro. A população negra projetou outro país. Na nascente do Brasil, havia outro projeto possível, que continua vivo ao longo de nossa história, para que a gente construa esse futuro que todos nós desejamos.
Correção: 29 de março, 12h20
Uma versão anterior deste texto informava que o ensaio de Marcos Queiroz foi publicado na edição de abril da revista Serrote. Na verdade, ele saiu na edição de março. A informação foi corrigida.
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