A próxima eleição não definirá apenas quem será o próximo presidente, mas também o futuro da democracia. Ou melhor, a sobrevivência da democracia. Se tomarmos como exemplo outros governos de presidentes de extrema direita que foram reeleitos, não restará dúvidas de que uma nova eleição de Bolsonaro poderá fechar a tampa do caixão da democracia, que já vem sofrendo uma morte lenta e dolorosa nos últimos anos.
Nada tem abalado os ímpetos autoritários de Bolsonaro. Ele, seus filhos e seus aliados foram acusados de diversos crimes de corrupção, com fartas provas, mas nada acontece porque as instituições e os órgãos de controle e fiscalização foram aparelhados como nunca. O presidente segue com a sua base eleitoral fiel, enfeitiçada pelas narrativas fabricadas no Gabinete do Ódio, que é comandado pelo seu filho, um vereador carioca que trabalha para o Planalto. Os crimes vão se sobrepondo e caindo no esquecimento.
Há poucas semanas, o presidente foi acusado de encomendar o assassinato de um miliciano aliado da sua família, mas o caso já evaporou no noticiário e foi substituído por outros casos de corrupção. A roubalheira segue comendo solta e, diferente de governos anteriores, nada acontece. Os absurdos foram normalizados e as instituições democráticas estão anestesiadas, incapazes de reagir. Chegamos a um ponto em que absolutamente nenhuma acusação de crime sofrida pelo presidente abala a confiança do seu eleitorado. Assim como já disse Donald Trump, Bolsonaro também poderia dizer: “Tenho os eleitores mais leais. Eu poderia dar um tiro a alguém no meio da 5.ª Avenida e não perderia um único voto, ok?”.
Autocratas modernos sequestram a democracia de maneira lenta e sutil, alterando aos poucos o sistema de funcionamento político. Quando um autocrata é reeleito, a tendência é a intensificação das suas práticas autoritárias.
Uma reeleição dará a Bolsonaro a confirmação de que todas essas barbaridades cometidas aqui são legítimas e, claro, lhe dará ainda mais confiança para pisar o pé no acelerador da destruição da democracia. As autocracias espalhadas pelo mundo nos mostram que essa destruição da democracia não ocorre mais do dia para a noite. As instituições democráticas vão sendo corroídas por dentro de maneira lenta e gradual pelos autocratas democraticamente eleitos. Não é preciso mais dar golpes para sustentar uma autocracia, como fez o peruano Alberto Fujimori logo no começo do seu primeiro mandato para se perpetuar no poder.
Autocratas modernos sequestram a democracia de maneira lenta e sutil, alterando aos poucos o sistema de funcionamento político, reduzindo o papel da oposição e manipulando a opinião pública. Quando um autocrata é reeleito, a tendência é a intensificação das suas práticas autoritárias. Foi isso o que aconteceu com Viktor Orbán na Hungria, Vladimir Putin na Rússia, Daniel Ortega na Nicarágua, Recep Tayyip Erdogan na Turquia e Andrzej Duda na Polônia. Para Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais, esses países nos “mostram que, na maior parte das vezes, o autoritário precisa se reeleger ao menos uma vez para conseguir afundar o sistema democrático. Em todos esses exemplos, as ações do primeiro mandato já disparavam os alarmes dos observadores internacionais, mas foi a partir do segundo que o autoritarismo tirou a luva de pelica e mostrou suas garras”. Para o sociólogo alemão Hauke Brunkhorst, nenhuma democracia sobrevive à reeleição de um tipo “populista caótico fascista” como Bolsonaro. Ele destaca que as instituições da democracia brasileira vêm sofrendo enorme pressão, mas ainda não implodiram: “Há muita resistência, apesar de todas as catástrofes, mas temo que num segundo mandato Bolsonaro seja mais autoritário e atue com muito mais força para destruí-las”.
Um segundo mandato concedido democraticamente a um autocrata é um convite à escalada autoritária. O autocrata ganha confiança para impor de vez suas principais características: o não reconhecimento dos limites ao exercício do poder, o tratamento de todos os adversários políticos como inimigos e conspiradores, e a confusão entre suas próprias convicções políticas e morais com as posições oficiais do país, colocando a sua perspectiva como a única legítima. Tudo isso aconteceu em maior ou menor medida nos países em que autocratas como Orbán conquistaram um segundo mandato nas urnas. De lá pra cá o primeiro-ministro húngaro não perdeu nenhuma eleição e hoje cumpre o seu quarto mandato consecutivo. Não é à toa que Bolsonaro tem Orbán como uma de suas principais referências na política internacional. “Prezado Orbán, trato como irmão, dada a afinidade que temos na defesa dos nossos povos”, disse o presidente brasileiro depois de destacar a comunhão dos países na luta pela defesa de “Deus, pátria, família e liberdade”.
Quando Viktor Orbán foi eleito em 2010, a democracia húngara funcionava razoavelmente bem. O seu primeiro mandato foi uma preparação de terreno para o que viria no segundo: abuso de propaganda política através da mídia pública, controle da mídia comercial por aliado e mudanças estruturais que levaram ao fim da independência do judiciário e ao sufocamento do multipartidarismo, reduzindo a possibilidade de partidos da oposição vencerem eleições. Depois da reeleição de Orbán, iniciou-se uma perseguição generalizada aos opositores e ao mundo acadêmico, culminando com uma lei – considerada ilegal pela União Europeia – que fechou uma das principais universidades do país. No ano passado, o governo húngaro transferiu 11 universidades estatais para fundações ligadas a aliados de Orbán. Essa manobra atingiu 70% dos estudantes universitários do país. Esse é um aperitivo do que pode acontecer no Brasil com a reeleição de um governo que já ataca sistematicamente as universidades.
Bolsonaro passou quase quatro anos de mandato atacando e ameaçando o STF de fechamento. Sua base de fiéis, que representa mais ou menos um quarto do eleitorado, tem sido envenenada pelas narrativas que apontam os ministros do STF como os grandes inimigos da nação. Caso seja reeleito, Bolsonaro poderá indicar mais dois ministros, ficando no total com quatro ministros totalmente alinhados ao bolsonarismo. Além disso, assim como Orbán, a reeleição do brasileiro certamente fará com que ele interfira de alguma maneira na organização e na capacidade do Judiciário em fiscalizar o governo. Em 2019, a deputada bolsonarista Bia Kicis propôs uma PEC para reduzir de 75 para 70 a idade de aposentadoria de juízes do STF. Caso seja aprovada, Bolsonaro poderá nomear cinco juízes em seu segundo mandato, totalizando sete ministros bolsonaristas — uma ampla maioria. O tamanho dessa tragédia para a ordem democrática seria incalculável.
Apesar de estar passando por um processo duro de degradação democrática, podemos dizer que o Brasil ainda tem eleições livres e justas. Temos a chance de interromper a escalada autoritária do bolsonarismo nas urnas no fim deste ano. Os brasileiros terão a oportunidade que os americanos tiveram de barrar a instalação definitiva de uma autocracia. Mas se Bolsonaro for reeleito, é bastante provável que essa seja a última eleição livre e justa do país. Embora as pesquisas hoje indiquem que uma reeleição seja improvável, sabemos pelas circunstâncias que essa é uma possibilidade real. Bolsonaro usará e abusará da máquina do Estado para lhe favorecer eleitoralmente. Além disso, ele já tem ao seu lado as Forças Armadas, alguns grandes grupos de mídia, os órgãos de controle e fiscalização do governo, um quarto dos eleitores do país e a maioria do Congresso. Ainda falta-lhe sequestrar definitivamente o Poder Judiciário. Lutar contra a reeleição de Bolsonaro é, portanto, uma obrigação de todo cidadão que zela pela democracia.
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