Quando você escuta “Nordeste” ou principalmente “sertão”, que imagens vêm primeiro à sua mente? Vou arriscar algumas: rio seco, solo rachado, menino mirrado, ossada de um boi morto de sede, casinha fina e torta de pobreza. Associadas a todas elas, a grande estrela cuja fama internacional se deu não pela presença, mas sobretudo pela ausência: a água.
Pois bem: essa falta e sua forma que molda o menino magro, o chão rachado, o boi morto e a casinha depauperada voltaram a brilhar como sol forte no Brasil do patriota que celebra orgulhoso as compras do bilionário sul-africano Elon Musk, mas repudia o escancaramento de questões nacionais graves como a inflação altíssima, a fome e o aumento do furto de comida nos supermercados.
Principal rede de organizações que trabalha há quase 23 anos na implementação de cisternas de cimento para armazenar água da chuva na região, a Articulação Semiárido Brasileiro, a ASA, está há um ano e meio sem instalar um único equipamento. Há uma demanda de 350 mil famílias à espera dos reservatórios. Eles são colocados ao lado de casas, escolas e plantações e guardam 16 mil ou 52 mil litros de água, usada para beber, cozinhar, banhar, regar plantações e sustentar animais. Ou seja, para quebrar, na raiz, aquela pobreza e sofrimentos brabos que você, eu e a maioria das pessoas conhece a respeito do Nordeste. A manutenção dessas cenas tem uma razão: ajudam os projetos de manutenção de poder.
Considerando uma média de 5 integrantes por família em cada casa, o programa estima ter alcançado seis milhões das 27 milhões de pessoas que vivem no semiárido. Cerca de 1,2 milhão de cisternas foram construídas desde 2003, quando o Programa Um Milhão de Cisternas, o P1MC, foi institucionalizado.
O projeto, que alcança o norte de Minas Gerais, foi sendo sufocado a passos largos: em 2020, foram construídos somente 8.310 equipamentos, uma queda de 73% em relação a 2019, quando 30.583 cisternas foram implementadas. Para se ter ideia, a entidade já conseguiu instalar 149 mil delas em um único ano, 2014.
O apagão completo de uma política vital para fazer mudar o histórico quadro do Nordeste como “tipo ideal” do pobre brasileiro tem nome e sobrenome: Jair Bolsonaro. O governo do presidente e candidato à reeleição tem diversos motivos para desidratar não só a existência do projeto, mas a de milhões de adultos, crianças, jovens e idosos que dependem dele para viver. Ignorância sobre as dinâmicas climáticas da região, preconceito contra nordestinos explicitado diversas vezes e uma menor popularidade no segundo maior colégio eleitoral do país são os mais aparentes. Mas tem mais, muito mais: o investimento pesado na destruição tem ainda como meta privilegiar repasses para o Centrão, que é hoje um misto entre corte real, churrascaria e ministério da Economia, concentrando poder, apetite e chave do cofre.
Como mostraram Mateus Vargas e Flávio Ferreira nessa reportagem publicada pela Folha, o prefeito de Petrolina, no Sertão de Pernambuco, Miguel Coelho, anunciou em abril de 2021, nas suas redes, a entrega de mil cisternas de plástico para toda zona rural de Petrolina. No texto, ele fez questão de dizer que os recursos foram destinados por nomes como o do senador Fernando Bezerra Coelho, pai de Miguel e ex-líder do governo no Senado. A “força política”, como colocado pelo prefeito no vídeo, estava reunida do depósito da terceira superintendência da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba, a Codevasf.
Trata-se do que foi chamada de “a estatal do Centrão“, o órgão que explodiu em tamanho e verba e é joia da coroa no famoso casamento entre Bolsonaro e turma de Arthur Lira e Ciro Nogueira, ambos do Progressistas: a companhia, que tem regras de contratação mais flexíveis – e a gente manda aquele beijo para o TCU —, ampliou sua área de atuação territorial de 27% para 36,6% e recebeu R$ 3,6 bilhões em emendas de relator.
Assim, além de se ocupar com suas tradicionais obras de irrigação, a Codevasf passou também a atuar na compra de tratores e a realizar pavimentações, duas expertises que, assim como as cisternas, também já se mostraram bastante lucrativas, seja para o Centrão, seja para garantir a estabilidade de Bolsonaro (e seu desejo explícito de golpe) no poder.
Resumindo: o que é mesmo a melhoria na vida de milhões de pessoas que moram no semiárido quando se tem tantos bons acordos para fechar, não é mesmo? Deixa esse pessoal aí – seco, rachado, mirrado, morto de sede, fininho e torto de pobreza –, servindo como personagem para aparecer nos programas de TV e nas reportagens especiais, para dar aquele joinha de agradecimento nas redes dos prefeitos e seus aliados, para servir de diversão ao presidente.
Deixa eles continuarem a ser, antes de tudo, uns fortes.
“Esse desmonte é a destruição da possibilidade de universalização da água. Ele não se refere apenas ao programa de cisternas, é a descontinuidade de uma política pública que transformou a vida de milhões de pessoas no semiárido, que foi reconhecida como política eficiente pela ONU no combate à desertificação. Isso é muita coisa, pois estamos falando de uma convenção das Nações Unidas”, diz o biólogo Alexandre Pires, que esteve à frente da coordenação da ASA de 2015 até o mês passado e é coordenador geral licenciado do Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá.
Segundo ele, o governo federal, após concentrar para si – ou melhor, para o Centrão – a responsabilidade pela instalação das cisternas, deixou de emitir desde maio de 2020 um boletim mensal de acompanhamento.
‘A falta de água faz com que a maioria vá procurar outros meios de vida e saia para zona urbana atrás de emprego, de um curso que traga uma situação melhor’.
Há um aspecto essencial para entender o tamanho do desmonte na vida nordestina – e brasileira –para além da questão do acesso à água: a implementação de cada cisterna movimentava a dinâmica econômica nos territórios e municípios onde foram construídas. Primeiro, no caso das cisternas de placas (cimento e areia), eram realizados cursos de formação para que agricultores e agricultoras das próprias comunidades pudessem ser os pedreiros e pedreiras na construção do equipamento, fazendo com que muitos jovens conseguissem trabalho.
Durante todo o processo, a alimentação de pedreiros e ajudantes era baseada em compras feitas nos próprios municípios, em parceria com agricultores e agricultoras locais – o Programa Um Milhão de Cisternas, o P1MC, nasceu em 1999, e foi adotado como política já em parceria com o então Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome, Mesa, também desmontado.
O material de construção também seguia a mesma lógica, e era adquirido em armazéns e comércios locais. “E há um impacto positivo muito forte na vida das mulheres, pois a instalação das cisternas prioriza as famílias chefiadas por elas. Conhecemos algumas que caminhavam quatro quilômetros para poder alcançar água, acordando de madrugada para poder voltar para casa ainda pela manhã e continuar a trabalhar, preparar comida, mandar os filhos para a escola”, continua Alexandre Pires.
Vivendo em um sítio localizado na cidade de Flores, sertão pernambucano, a agricultora Daniela Braz dos Santos, 33 anos, faz frequentemente uma pequena peregrinação para conseguir água para beber. Cavou um poço em casa e graças a ele consegue água para a plantação e banhos, mas a qualidade não permite que ela a consuma. Assim, uma vizinha, que tem uma cisterna em sua residência, passou a oferecer-lhe água potável. “Eu amarro um garrafão no carrinho de mão e vou até o reservatório sempre que preciso. É a minha maior dificuldade, aqui a água da chuva se perde por falta de uma cisterna”, conta ela.
Em julho de 2020, moradores da zona rural de Flores enfrentaram a pandemia passando por um intenso racionamento de água, e falaram aqui sobre como era difícil viver a situação justamente por não terem reservatórios maiores. Daniela também aponta que a ausência de acesso faz com que muitas pessoas jovens abandonem suas casas, povoados ou cidades. “É muito difícil para quem mora no meio rural, para quem vive da agricultura e necessita diretamente da água, seja para a criação de animais, para a plantação. A falta de água faz com que a maioria vá procurar outros meios de vida e saia para zona urbana atrás de emprego, de um curso que traga uma situação melhor.”
No povoado quilombola do Barro Branco, em Belo Jardim, agreste pernambucano, a agricultora Elaine Lima do Nascimento, 35 anos, é beneficiária do que se pode chamar de uma primeira geração das cisternas: há uma instalada ao lado de sua casa desde 2003. Antes, pegavam água nos barreiros, olhos d’água e pequenos açudes, mas muitos frequentemente secavam por conta das estiagens ou mesmo da longa exploração. “A água também não tinha tratamento, e muita gente ia buscar uma lata longe daqui, distante a dois, três quilômetros”, comenta.
A instalação das cisternas de placas (e não as de plástico, que custam o dobro, não empregam mão de obra local e têm menor impacto econômico) mudou tanto a necessidade de longos deslocamentos para obter um pouco de água quanto especializou as cerca de 200 famílias do Barro Branco a manter os equipamentos e a tratar e evitar impurezas.
“Cuidamos das calhas e as limpamos nas primeiras chuvas para evitar impurezas no reservatório, recolhemos os canos quando não está chovendo, protegemos com telas, pintamos com cal quando chega o verão para manter a água fresca”.
Atualmente, 70 cisternas guardam a água da comunidade, mas há diversas famílias que ou usam a água da vizinhança – como faz a agricultora Daniela – ou sobrevivem coletando o alimento no olho d’água do quilombo.
Sai água, entra ideologia
Não é exagero afirmar que, além de funcionar bem como elemento-chave nas relações fisiológicas entre governo e Centrão, a destruição dos programas de universalização da água tem um fortíssimo componente a guerra imposta pela gestão Bolsonaro a entidades consideradas “vermelhas” demais. É justamente o caso da ASA: o aproveitamento da água de chuva para consumo humano e atividades produtivas era promovido por diversas organizações da sociedade civil já no início dos anos 1990, mas a institucionalização dessa prática como política pública (justamente com a criação do P1MC) aconteceu durante a presidência de Lula (2003-2010).
Em 2011, no governo Dilma, ele ganhou nova roupagem e foi ampliado, recebendo o nome de Programa Água Para Todos e incluído no Plano Brasil sem Miséria. Como mostra esse artigo de Daniela Nogueira, Carolina Milhorance e Priscylla Mendes, o APT aumenta o acesso aos serviços públicos e vai mirar principalmente famílias em situação de extrema pobreza, possibilitando a geração de excedentes comercializáveis para a ampliação da renda familiar dos produtores rurais. “É um chefe de estado que entende uma política pública importante como sendo algo de um partido, e não como uma política de estado. Antes, era a população que se reunia e discutia que famílias iam receber primeiro as cisternas, havia essa escolha pensada a partir das próprias comunidades. Agora, são as prefeituras que fazem os cadastros das famílias, abrindo caminho para interesses puramente eleitoreiros”, comenta Alexandre Pires.
Atualmente, a ASA não tem qualquer recurso para executar os projetos. Em 2019, o governo federal lançou um edital para a construção das cisternas que simplesmente excluía a entidade com enorme expertise e capilaridade de ação: segundo o documento, os proponentes não podiam ter prestação de contas ainda em aberto. Mas o caso é que o próprio governo ainda não havia analisado as prestações já enviadas pela articulação, que precisou entrar com um mandado de segurança na justiça para poder concorrer ao edital.
Ganhou e assinou termo de colaboração em 31 de dezembro de 2019, da ordem de R$ 50 milhões. Mas somente em fevereiro de 2021 é que o Ministério da Cidadania repassou 28% da verba para construção de 3.649 novas cisternas, um montante de R$ 14 milhões. Veio a pandemia e com ela uma série de problemas, entre eles o aumento do material de construção e mão de obra. “Já em 2020 pedimos para que o governo revisse os valores repassados, o que só aconteceu um ano depois, em 2021. Mas havia também a necessidade de ajustes no termo de colaboração, para ampliar os recursos e mantermos o número de tecnologias. Os recursos repassados eram para as construções, não foi repassada a parte para o custeio, como pagamento de pessoal, contratação de veículos, alimentação”, continua Pires. Assim, a verba nunca foi executada.
Mas naquele mesmo 2021 pandêmico, Bolsonaro prometeu a construção de 2 mil cisternas dentro do projeto Água nas Escolas, que atenderia 100 mil alunos em 350 cidades nordestinas. Infelizmente, o verbo atender ficou mesmo no futuro do pretérito: das 2 mil cisternas prometidas, apenas 83 foram construídas até dezembro do ano passado, como mostra essa reportagem.
No lançamento do projeto, que aconteceu no Ministério da Cidadania, em Brasília, o presidente evocou, é claro, todos os clichês possíveis do Nordeste que o interessam: dependente, ferido e sem água. “Nós, aqui, às vezes não damos muito valor à água, temos em abundância. Lá, quando você vê um velho nordestino, uma senhora de idade, com pele enrugada, entrando debaixo de uma bica d’água, não tem preço a alegria daquela pessoa, parece que ganhou na Mega-Sena”.
Não nos enganemos: a alegria destas pessoas tem sim um preço, e ele tem valores e pesos bem diferentes para quem está no semiárido e para quem está na capital federal. Para as primeiras, custa se alimentar melhor, custa tempo, emprego, dinheiro e esforço. Custa estar ou não perto da família, da terra, da casa. Para o governo Bolsonaro e sua base de apoio, custa manter milhões de pessoas engessadas no tempo, na dependência, no jogo eleitoreiro e na pobreza – e isso gera, para eles, um enorme lucro.
*Até o fechamento desta coluna, o Ministério da Cidadania não havia respondido às mensagens solicitando informações sobre as cisternas.
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