A professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro Ligia Bahia subverte quase tudo que o senso comum dita sobre planos de saúde. Formada em medicina e doutora em saúde pública, ela se dedica a estudar – e questionar – o mercado de saúde suplementar e a regulamentação dos convênios médicos no Brasil.
Bahia, que também coordena o grupo de pesquisa e documentação sobre Empresariamento na Saúde do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ, me recebeu em seu apartamento no Rio de Janeiro para uma longa entrevista na manhã do dia 13 de março. Para a pesquisadora, é essencial que a população entenda o que leva à ocorrência de escândalos como o da Amil – que mantém credenciada uma clínica de quimioterapia investigada por suspeitas de não tratar adequadamente os pacientes com câncer – e da Prevent Senior, acusada de antecipar a morte de idosos internados com a covid-19.
Um dos problemas, mas não o único, é a oferta de médicos, clínicas e hospitais de acordo com os preços dos planos de saúde. Quem paga mais caro terá um atendimento de primeira linha, um privilégio de meros 5% da população com plano de saúde privado. A classe média, geralmente, tem convênios de segunda linha, que oferecem uma rede de atendimento intermediária.
Já os planos de saúde de terceira linha – que atendem 80% das pessoas com convênio – são os mais restritos. Nesse caso, a maioria dos beneficiários sequer tem poder de escolha, pois o plano é oferecido pelo empregador. “Todo mundo acha sensacional ter plano de saúde, mas é muito provável que quem tem plano de terceira linha precise ser atendido pelo SUS em algum momento”, alertou.
Mesmo assim, Bahia não defende que as pessoas se recusem a ter um convênio médico, pelo menos enquanto a política de saúde no Brasil não for direcionada para um sistema público. Mas ela também tem certeza de que, enquanto isso não acontece, haverá outros escândalos envolvendo operadoras e prestadoras de planos de saúde. “É importantíssimo que as pessoas conheçam esse casos [como os da Amil e Prevent Senior], mas precisamos entender como eles acontecem para sair do atoleiro”.
Leia os principais trechos da entrevista.
Intercept – O que é preciso levar em conta quando se decide contratar um plano de saúde? Conferir a rede credenciada é suficiente?
Ligia Bahia – A maior parte das pessoas não tem plano de saúde pela sua própria decisão. Mais de 80% dos convênios são coletivos, empresariais. Então, as pessoas não escolheram, elas têm o plano que a empresa oferece. O que deve ser levado em consideração quando a empresa contrata ou quando esses 20% contratam individualmente é mesmo a rede credenciada. Isso é fundamental.
O que deve ser observado em relação a isso?
A rede credenciada no Brasil é muito estratificada, de acordo com os planos que são de primeira, segunda ou terceira linha. A primeira linha é uma rede que quase sempre tem muita qualidade e segurança. Mas menos de 5% de quem tem convênio são [clientes de] de primeira linha. A segunda linha já tem uma rede credenciada mais ou menos e exige muito olho aberto. Quem tem esses planos são as classes médias mais intelectualizadas. A maior parte dos planos, inclusive os empresariais, têm prestadores de serviço de terceira linha. Essa estratificação compromete a qualidade e a segurança no atendimento, mas todo mundo acha sensacional ter plano de saúde, porque a ideia é que é melhor ter do que não ter.
Quem contrata plano de saúde individual pensa que, em caso de urgência, vai estar mais seguro do que se precisasse do SUS. Isso faz sentido?
Total sentido. A gente não pode ser cínico de dizer que é melhor não ter convênio. É fundamental ter plano de saúde no Brasil, não para quando você tiver um problema de urgência e emergência. Mas o plano vai ajudar na realização de exames que no SUS demoram muito tempo. Se o plano for pelo menos de segunda linha, você vai realizar cirurgias eletivas muito mais rápido, vai ter consultas especializadas, especialmente se for de segunda e de primeira linha.
É possível comparar em alguma medida os planos de terceira linha com o SUS?
‘A lógica das empresas é ter um atendimento que chamam de chão de fábrica, para peãozada’.
Não. O que é possível e que a gente tem que explicar é que é muito provável que quem tem plano de terceira linha, tenha que ser atendido pelo SUS em algum momento. Porque os planos de terceira linha racionalizam muito o acesso. O SUS também racionaliza, mas na racionalização do plano de terceira linha, por exemplo, uma gestante que tiver o atendimento negado, ela vai acabar sendo levada para o SUS. Foi o que aconteceu com a covid-19 – muita gente com plano foi atendida pelo SUS. De todo modo, o plano de terceira linha não é a mesma coisa que o SUS, porque não tem que acordar 4 horas da manhã, não tem que pegar a senha e nem conhecer um vereador para conseguir atendimento. Não é comparável.
Para atrair mais clientes, as operadoras têm oferecido planos a custo muito baixo. Microempreendedores individuais podem pagar até R$ 89, se incluírem mais pessoas no convênio. É possível cobrar esses valores e oferecer uma boa cobertura?
O gasto per capita no Brasil com saúde no SUS é de R$ 300 por ano, então R$ 90 por mês não tem nada de barato. Essa pessoa vai poder fazer hemograma, uma mamografia ou algum exame de imagem – coisas que não estão disponíveis para a imensa maioria da população. Um plano desse preço é muito caro para quem recebe dois salários mínimos. É um plano caríssimo para pessoas que, muitas vezes, têm um trabalho precário, nesse sistema de uberização do mercado de trabalho. A questão é que a pessoa paga relativamente muito e tem pouco, porque a operadora vai oferecer serviços precários.
O atendimento poderia ser melhor, diante dos custos da saúde?
Eu não tenho dúvida disso. Os brasileiros e as brasileiras não se deram conta ainda de que só estão fora do SUS, de fato, se tiverem um plano de primeira linha. A lógica das empresas é não ser melhor [nos planos de terceira linha]. É ter um atendimento que eles chamam de chão de fábrica, para a peãozada.
Mostramos em uma reportagem que a Amil ignorou denúncias de oncologistas, executivos e ex-executivos contra a Hemomed, uma clínica credenciada para tratar pessoas com câncer que pagavam planos de saúde mais baratos. Há algum tempo, vieram à tona graves denúncias contra a Prevent Senior, que oferece planos de saúde para idosos a preços mais baixos que o mercado. Há algo em comum entre esses dois casos?
As pessoas têm um senso comum de que o problema é ser barato. Mas, se não for barato, nunca vai ter um sistema de saúde. Na Prevent Senior, o plano era relativamente mais barato e havia um sistema de restringir a autonomia médica e de fazer um pagamento muito pior [pelos serviços]. Pagando pouco, vai contratar os piores profissionais. Na pandemia, por exemplo, os melhores não estavam na Prevent Senior, estavam em outros lugares, inclusive em hospitais públicos. Essa é a questão nos dois casos.
Sobre a transparência das operadoras e prestadoras de planos de saúde quanto aos tratamentos que oferecem, que tipos de resultados as empresas deveriam ser obrigadas a divulgar?
A gente precisava ter, no Brasil, um serviço nacional [de acompanhamento dos doentes] do câncer para notificar os pacientes que foram diagnosticados e saber como eles foram tratados, qual é a sobrevida dessas pessoas. A gente precisa saber se tal medicamento, inclusive os que são caros, têm resultados positivos quanto à prolongar a vida com qualidade. Não deve ser um registro empresarial, tem que ser um registro público, porque o paciente precisa de um acompanhamento longo – imagina uma pessoa que foi tratada e que sobrevive 30 anos.
Como as empresas de saúde suplementar garantem seu lucro e quais são as formas de contrato entre operadoras e prestadoras de planos de saúde?
As empresas de saúde no Brasil não garantem lucro na assistência, na sua operação. Elas têm fundos internacionais de investimento e estão garantindo lucro no mundo nas transações internacionais financeiras. Antigamente havia muita fraude na saúde, por exemplo, quando o governo pagava por um laboratório de análises clínicas, e o laboratório dizia, claramente, que se recebesse pouco, todos os exames teriam resultados normais, porque na verdade ele não fazia o exame, só emitia o laudo. Era uma coisa descarada.
A fraude atualmente é mais sofisticada do que isso. Não é necessariamente uma coisa mesquinha, de extrair lucro falsificando medicamento. O problema que acontece na saúde suplementar – e também no SUS, por meio das OSs – são as contratações terceirizadas ou quarteirizadas. Mas, com esses processos de terceirização e quarteirização, algumas práticas vão se naturalizando. É um terceiro que faz, uma outra empresa, um outro empreendedor, um outro CNPJ, que vai seguir uma lógica de ganhar mais dinheiro pagando menos para os fornecedores, que são os profissionais de saúde e a indústria farmacêutica. Nesse sistema de quarteirização, se perde o controle na ponta, de quem é o responsável.
Qual empresa, então, deveria ser responsabilizada? A operadora ou a prestadora do plano de saúde?
A justiça já julgou muitos casos como esses e tende a dizer que a responsabilidade tem que ser compartilhada entre todos. Nesse caso da Hemoded, responsabilizaria também a clínica e a outra empresa terceirizada [a Medfar]. Mas isso não resolve o problema do paciente que precisa ser bem atendido. A gente tem que caminhar para responsabilizar a empresa de planos de saúde. Esse é um debate que a gente tem que ter, inclusive, com os órgãos de justiça.
‘A Agência Nacional de Saúde Suplementar é uma vergonha da pátria’.
A gente estuda para que as políticas melhorem, porque, daqui a pouco, vai ter um novo problema, amanhã vai ter outro escândalo. Não há dúvida de que haverá o próximo. Nós não vamos mudar a estrutura a partir de um escândalo. É importantíssimo que as pessoas conheçam esse casos [como os da Amil e Prevent Senior], mas precisamos entender como isso acontece para sair do atoleiro.
Qual tem sido o papel da Agência Nacional de Saúde Suplementar, a ANS? Ela, de fato, fiscaliza e regula esse mercado?
A ANS é uma vergonha da pátria. Nosso grupo de pesquisa não foi a favor da sua criação, porque a agência reguladora é para entes que eram públicos e foram privatizados, o que não é o caso das empresas de saúde – elas sempre foram privadas. Achamos que a regulação do mercado deveria ser realizada pelo Ministério da Saúde. A ANS é um mega-órgão público que funciona como a empresa das empresas, porque atua para beneficiá-las. Isso é o oposto do que deveria ser, pois o mercado deveria ser regulamentado para favorecer a saúde [da população], não para prejudicá-la.
As grandes redes da saúde privada, sejam de convênios ou hospitais, também lucram com tratamentos desnecessários? É possível dizer que quem tem planos mais caros pode ser levado a pagar por procedimentos dos quais não precisava?
Na saúde, a gente não acha nada desnecessário. Eu não acho desnecessário uma pessoa que fez uma cirurgia ortopédica ficar mais tempo no hospital. Mas o que pode haver é que pessoas que têm plano de saúde de primeira linha podem ser instadas a realizar procedimentos que poderiam ser evitados. O paciente se interna no dia anterior à cirurgia e se cobra mais do plano de saúde ou, então, é internado para fazer um exame que poderia ter sido feito ambulatorialmente. Isso acontece e poderia não acontecer.
Nesses casos, a pessoa pode ser submetida a uma cirurgia que não precisava?
Acho que sim. Muitas vezes, com cirurgia de coluna, por exemplo. Se tiver um segundo parecer, é possível que o paciente descubra que não precisaria fazer, porque um tratamento mais conservador resolveria. Mas o pagamento induz que os procedimentos sejam realizados, e não que elas não sejam [como pode ocorrer em planos mais baratos].
Quais são os tipos de pagamento dos serviços de saúde em vigor no Brasil?
Tem o sistema que a gente praticamente não usa, que é o per capita. Ele é muito utilizado no Reino Unido. Trata-se do pagamento pela quantidade de pessoas que um determinado conjunto ou um profissional atende. Esse modelo tem uma vantagem muito grande na atenção primária à saúde, porque a maioria dos problemas são de fácil resolução, do ponto de vista das bases tecnológicas requeridas. Tem essa vantagem que ele não induz a realização de procedimentos que seriam evitáveis.
O que aconteceu no Brasil foi a implantação de um sistema per capita falsificado. O que fizeram foi uma continha do tipo “te passo dois reais por mês e você fica encarregado de resolver a terapia para câncer”. Isso não faz o menor sentido. Primeiro, porque não pode desintegrar o diagnóstico, o tratamento e o acompanhamento posterior. Isso já é da ordem da péssima qualidade. Segundo, esse modo de remuneração não se adequa [ao tratamento para câncer], porque ele induz a não fazer. Quanto menos tratamento, quanto menos medicamento, mais a empresa ganha. É impossível fazer isso para um problema de saúde tão dramático e tão devastador como é o câncer.
‘Os hospitais de excelência não têm negros como pacientes nem como profissionais, parecem shopping de rico’.
Já o fee for service é o sistema predominante no mundo, que é o pagamento por atendimento realizado. É um problema também, porque os procedimentos mais caros são melhor remunerados. Então, quanto mais procedimentos forem indicados, mais haverá lucro. Não há dúvidas de que ele também não é bom.
O terceiro sistema é o assalariamento, que é bastante bom, desde que seja feito o ajuste por hora trabalhada. O que não pode ocorrer é o pagamento do profissional por 40 horas e a pessoa trabalhar cinco. O ideal seria o pagamento per capita para atenção primária e o assalariamento para atenção especializada. Mas as empresas de planos de saúde adotam o pior sistema, que é o fee for service, porque elas são o que há de mais atrasado do ponto de vista da organização do sistema de saúde.
O acordo entre os chamados hospitais de excelência e o governo, que garante que esses estabelecimentos deixem de pagar milhões em impostos em troca do oferecimento de serviços para o SUS, é benéfico à sociedade?
Eu participo de um grupo de pesquisa que talvez seja o único no Brasil que acha isso péssimo. Esses hospitais são falsos filantropos. Um pobre não entra em um lugar desse, é um hospital que não tem negros, seja como pacientes ou como profissionais de saúde. É um hospital de branco, que parece shopping de rico. Não poderia ser assim, especialmente se ele tem subsídio público.
A população estaria melhor servida se esses impostos fossem recebidos e investidos no SUS?
Sem dúvida. É uma injustiça tributária absurda, porque dizem que é uma medicina de excelência. Sim, é uma medicina muito aparelhada, de muita tecnologia, mas nós queremos que seja para todos. Por que não se repassam esses recursos para resolver o problema dos testes no Brasil? Hoje não temos capacidade de produzir testes suficientes para covid-19, por exemplo, nem para doença de Chagas ou hepatite.
De que outras formas as operadoras de planos de saúde se beneficiam de recursos públicos?
Além dos benefícios de natureza fiscal, de impostos que não são pagos e de alíquotas diminuídas, elas têm refinanciamento ou anistia de dívidas. Existe outra coisa que é muito interessante, que é transformar dívida, inclusive do ressarcimento ao SUS, em ativos. A empresa vende a dívida para um banco, por exemplo, e passa a ser uma coisa boa dever. Existem, ainda, linhas de créditos especiais oferecidas por bancos oficiais como BNDES, Caixa, Banco do Brasil e Banco Mundial. E tem também um prestígio político imenso. Quem chega primeiro para conversar com os candidatos à presidência são essas pessoas, não nós. Eles vão lá, já negociam e deixam tudo organizado para que os seus negócios se expandam. O que a gente precisa é orientar a política de saúde no Brasil para um sistema público.
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