“Analisando essa cadeia hereditária, quero me livrar dessa situação precária, onde o rico cada vez fica mais rico e o pobre cada vez fica mais pobre.
E o motivo todo mundo já conhece, é que o de cima sobe e o de baixo desce.”
Foi ao som de Xibom bombom, música da banda “As Meninas” que estourou nas rádios no fim da década de 90, que comecei a entender, ainda criança, um pouco da estrutura social do Brasil. Infelizmente, parece que a situação dos brasileiros continua bastante parecida da daquela época. Com o preço dos alimentos e serviços mais básicos nas alturas, o pobre, de fato, tem ficado mais pobre. E o rico? Ainda mais rico.
Apesar do cenário econômico e social de crise, foi um ano excepcional para a Bolsa de Valores brasileira: as marcas de 4,2 milhões de investidores em renda variável e 10 milhões de investidores em renda fixa foram alcançadas, representando um crescimento de 56% e 17% em comparação ao ano anterior, respectivamente. Embora motivo de comemoração, são números pouco representativos para para a maioria dos 170 milhões de brasileiros adultos.
A desigualdade se agravou na pandemia e deixou ainda mais exposta uma faceta pouco falada: a dificuldade de acesso dos negros ao mercado financeiro. A mais recente pesquisa da Abima, a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais, revela que o número de investidores da classe A aumentou de 61% para 71%, enquanto a classe B permaneceu estável e a C despencou em 23%.
Isso significa que, na prática, o maior grupo populacional do país precisou resgatar seus investimentos para arcar com emergências financeiras e lidar com a instabilidade econômica, enquanto a classe A, que representa 1%, ficou ainda mais rica.
Os negros são 56% dos brasileiros, mas representam apenas 17% dos mais ricos e 75% dos mais pobres. Sete em cada 10 brasileiros sem conta bancária são negros. Os negros têm o crédito negado três vezes mais do que brancos nas instituições bancárias e ganham, em média, 50% menos que os brancos até quando têm o mesmo nível de escolaridade.
Mas as origens da falta de serviços e produtos voltados a essa população vão além de mera barreira econômica. A questão é mais profunda e remonta ao período escravagista que durou mais de 350 anos.
A escravidão no Brasil foi iniciada no século 16, em 1535, com a chegada do primeiro navio com africanos escravizados em Salvador, Bahia. Foi o marco de um período devastador para a história brasileira, que teve seu fim institucional em 13 de maio 1888, com a Lei Áurea.
Durante mais de três séculos, a população negra foi mantida à margem do sistema, e este afastamento compulsório teve consequências graves até hoje. As desigualdades sociais e raciais que enfrentamos é oriunda de diversas políticas e práticas de mercado racistas implementadas ao longo da história, que influenciaram na forma como negros e pobres lidam com suas próprias finanças. Selecionei três delas para refletirmos juntos.
Os “escravos de ganho”
Os africanos que trabalhavam na mineração e na agricultura, em regiões de cultivo monocultor, nas lavouras e senzalas, com trabalhos braçais, são os mais noticiados nos livros. Porém, existiam outros grupos menos conhecidos, que desempenhavam serviços considerados urbanos, como tarefas do setor comercial ou de serviços, chamados de “escravos de ganho”.
Eles tinham um dono, assim como os outros escravizados, mas tinham uma certa autonomia. Muitos não moravam na mesma casa de seu senhor, podendo circular livremente pelas ruas e praticar um ofício que lhe garantisse o sustento, não só no comércio ambulante e no transporte de carga, conhecido como “ganho de rua”, mas como operários, marinheiros, cirurgiões, curandeiros e pescadores. No entanto, apesar da aparente liberdade, esse escravizado pagava ao seu senhor um valor, normalmente diário ou quinzenal, que funcionava como um aluguel de si mesmo para exercer seu ofício.
Para os senhores, os negros serviam como um ativo financeiro, pois recebiam um valor periódico sem precisarem trabalhar. Assim, viviam “de renda”, ou seja, da renda passiva gerada por meio do rendimento dos escravizados. De acordo com a historiadora Cecília Soares, alguns registros encontrados em Salvador mostram que o produto do trabalho do escravizado permitia que o dono vivesse de forma ociosa.
Os senhores conseguiam recuperar em até três anos o valor pago no mercado escravagista. É importante lembrar que a primeira Bolsa de Valores brasileira foi inaugurada em Salvador em 1817. Ou seja, os escravizados podem ser lidos como um dos primeiros ativos financeiros da elite brasileira.
Entre os “escravos de ganho”, inclusive, era comum conseguir economizar parte de sua renda e comprar, com o tempo, seus primeiros bens, como roupas, joias e terrenos. Era a maneira mais segura de manter suas riquezas, enquanto não conseguiam a alforria. Esta pode ser uma das influências para a compra de imóveis ser um tipo de investimento tão popular no Brasil culturalmente, mesmo existindo outros ativos no mercado que oferecem maior rentabilidade, liquidez e segurança.
A conquista do pecúlio
Um dos grandes marcos no acesso da população negra ao sistema financeiro aconteceu com a publicação da lei 2.040, de 1871. Ela deixava aberta a possibilidade de os escravizados formarem um pecúlio (poupança para compra da própria liberdade ou de outros cativos) por meio de doações, legados e heranças ou renda, provenientes do seu trabalho.
Com essa lei, a Caixa Econômica, criada em 1861, poderia recolher depósitos feitos por escravizados, como fazia no caso do depositante não escravizado, emitindo uma caderneta de controle de depósitos e retiradas. Fundada com o objetivo de incentivar a poupança e conceder empréstimos sob penhor, com a garantia do governo imperial, a Caixa oferecia maior segurança para os investidores na época, fator importantíssimo para os negros. Ainda assim, havia uma diferença: na caderneta de escravizados constava o nome do senhor, uma vez que era necessária sua autorização para que a conta fosse aberta.
De acordo com a própria assessoria da Caixa Econômica, o banco foi criado no Rio de Janeiro e se tornou o primeiro caminho institucionalizado para os investimentos da população negra da época. Este fato histórico pode ser uma das explicações para a popularidade da caderneta de poupança, o investimento mais escolhido pelos brasileiros até hoje.
Mesmo com pequenos avanços, muitos senhores não concordavam com essa lei e impediam os escravizados de acumularem pecúlio ou cobravam valores absurdos que impossibilitavam o pagamento das alforrias. Como alternativa a esse cenário, muitos escravizados recorriam a um empréstimo com terceiros. Uma vez que não tinham outros recursos para arcar com o valor da dívida, faziam contratos de locação de serviços, análogos à escravidão, com seu credor. Esta realidade aproximava a população negra do endividamento como uma das poucas alternativas para alcançar a própria liberdade.
Políticas de branqueamento
Mesmo após a abolição da escravatura, entre 1888 e 1920, foi reforçada a ideia de que o Brasil deveria passar por um processo de “branqueamento” para se tornar uma nação adiantada e comparada a países europeus.
Esse pensamento justificou, entre outras políticas racistas, o incentivo à imigração europeia por parte das elites econômicas e do próprio estado, com a promoção de leis que favoreciam a compra de terras, por exemplo, por estrangeiros. Com isso, negros foram excluídos não só do trabalho no campo, mas também do trabalho urbano, processo que impossibilitou a inclusão plena desses grupos, diminuindo suas oportunidades e acesso à educação, saúde e empregos de qualidade, o que dificulta a geração e acúmulo de capital, a compra de ativos financeiros e, ainda, a diversificação de seus investimentos.
Escravidão que persiste
Existe uma relação complexa entre o período escravagista e alguns comportamentos financeiros da população. Essa mesma estrutura continua mantendo negros na base da pirâmide, impedindo-os, mesmo depois de tantos anos, de ascender e acessar o mercado financeiro e outros serviços. Mas, e agora, por onde começamos a pensar na solução deste problema?
É necessária a união de instituições públicas e privadas, com e sem fins lucrativos, de diversos setores, junto de políticas públicas de reparação histórica, que coloquem a população negra e suas subjetividades como centro da discussão. Até hoje, as pesquisas promovidas por entidades relacionadas ao mercado financeiro não apresentam um enfoque racial.
Só com a inclusão da raça nas pesquisas do mercado será possível pensar ações de incentivo focadas na população negra, que busquem sua inclusão, seja educando para a compra de ativos financeiros; oferecendo gratuitamente serviços personalizados, entre outros. Quando o problema é complexo, a solução não pode ser simples.
Parafraseando a socióloga Lélia Gonzalez, “enquanto a questão negra não for assumida pela sociedade brasileira como um todo: negros, brancos e nós todos juntos refletirmos, avaliarmos, desenvolvermos uma práxis de conscientização da questão da discriminação racial neste país, vai ser muito difícil no Brasil, chegar ao ponto de efetivamente ser uma democracia racial”. Este é um dever de todos. Inclusive do mercado financeiro.
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