Vocês devem ter acompanhado todo o zum-zum-zum da capa da revista Time trazendo o ex-presidente Lula, certo? Um dos mais interessantes foi, sem dúvida, aquele gerado pelo jornalista Caio Blinder, que usou seu Twitter para dizer que só “no Brasil colonizado” a publicação ainda é relevante.
É claro que o post escrito por uma pessoa que vive há décadas nos EUA, comanda um programa chamado Manhattan Connection e comenta há muito as capas da Time sem qualquer reparo pátrio, virou piada nas redes: nascia ali o Caio Blinder Decolonial. Pois bem: o selo jocoso adquirido involuntariamente pelo jornalista vem há tempos sendo seriamente disputado por editoras, museus, revistas, intelectuais e até, vejam só, instituições financeiras. Ser decolonial – em uma síntese, opor-se às matrizes euro-americanas que sustentam nossas formas de ver, saber e conhecer – passou a ser um valor importante em um mundo no qual, por exemplo, questões como a violência contra povos indígenas e as bibliografias brancas das universidades se tornaram parte do debate público com ainda mais ênfase.
Esse “engajamento decolonial” foi especialmente forte no campo das artes no Brasil, que viu explodir nos últimos anos uma série de editais, seminários, premiações, publicações e exposições em torno do tema – e é aqui que chegamos ao Masp, um dos mais poderosos museus da América Latina. A poucos meses de inaugurar a mostra “Histórias Brasileiras”, que marca o bicentenário da Independência, a instituição viu um dos núcleos da exposição se dissolver: as curadoras Clarissa Diniz e Sandra Benites anunciaram que estavam saindo do projeto após um conjunto de seis fotos trazendo o MST ser vetado.
Entre as ironias do caso: este era praticamente o primeiro trabalho de Sandra na casa após ela ser contratada em 2020, quando foi largamente anunciada como a primeira curadora indígena em um museu brasileiro. Em 2018, o museu anunciou o projeto Arte e Descolonização, uma parceria com a Afterall (University of Arts de Londres) que iria “investigar o surgimento de novas práticas artísticas e curatoriais que explicitamente questionam e criticam os legados coloniais na produção, curadoria e crítica de arte, através de seminários e publicações”.
O movimento é extremamente bem-vindo, é claro, mas é irônico que a instituição – erguida em um estado que dizimou milhares de indígenas e se valeu fortemente de mão de obra escravizada em suas plantações de café –inicie um deslocamento crítico decolonial se associando justamente a uma universidade europeia. Este mês, aliás, o Masp ofereceu um curso sobre barroco brasileiro a partir de uma “perspectiva híbrida e decolonial“.
O fim do núcleo Retomadas, como se chamava o conjunto que tinha Clarissa e Sandra à frente, aconteceu poucas semanas após o mesmo Masp cancelar o lançamento do livro “Sem Medo do Futuro”, de Guilherme Boulos, a apenas quatro dias do evento previamente agendado entre a editora Contracorrente e a instituição. “Não é aceitável também que o Masp confunda cultura e livros com disputa política, nas sombras da polarização mais rasteira. A confusão esclarece que, também a direção do Masp, ou alguém nela, tem posição: o obscurantismo e a intolerância”, lemos em uma parte da nota de repúdio publicada pela editora.
Em texto sobre o assunto, o museu alegou que é “uma instituição privada sem fins lucrativos, independente e isenta, cujo estatuto proíbe a realização de quaisquer manifestações de caráter político”.
É aí que mora o X da questão: é extremamente contraditório que o espaço, cujo conselho concentra boa parte do PIB brasileiro, com Alfredo Egydio Setubal (diretor-presidente da holding que controla o Itaú e Alpargatas) à frente, vista uma capa decolonial enquanto afirma não receber manifestações políticas. Sendo assim, o que faz atualmente em seu interior uma exposição de Abdias Nascimento, artista, ativista, ex-deputado federal e um dos nomes centrais na discussão sobre racismo no Brasil? Se a presença de Abdias, um dos fundadores do Teatro Experimental do Negro, exilado na ditadura militar, autor do livro “O Genocídio do Negro Brasileiro”, não é política, o que ela seria? É possível vestir-se de decolonialidade e ao mesmo tempo professar isenção? Isenção, neste caso, ao quê? À grilagem, ao garimpo, à violência no campo, à exclusão das mulheres negras, ao assassinato de indígenas, ao achatamento da população pobre, ao sofrimento das periferias? Artistas/curadoras que são vindas ou discutem estes contextos devem apenas agradecer a “graça” (a tal visibilidade) concedida pelo museu ou este está de fato aberto a discutir as próprias contradições?
Em uma rede social, o pesquisador e curador Moacir dos Anjos (Fundação Joaquim Nabuco), coordenador do projeto Política da Arte, escreveu sobre o cancelamento do lançamento do livro de Boulos: “Alguém precisa avisar ao Masp que as exposições que o museu tem feito nos últimos anos possuem caráter político. Ou então o museu precisa definir melhor (no seu estatuto? na sua missão?) o que entende por arte e o que entende por político. O mais importante museu do país abrigar o lançamento de um livro de um dos mais importantes políticos antifascistas do Brasil em um momento em que um fascista é presidente do país é, sim, um ato político, ainda que não partidário. E é por isso mesmo que seria tão importante que o Masp o tivesse abrigado. Aliás, insistir nessa isenção, nessa indiferença, é também um ato político.”
Sintetizando: os dois episódios mostram que, entre se vender como decolonial e realmente sê-lo, existem vários Atlânticos para atravessar.
A crise mais recente envolvendo o MST veio a público após as curadoras Clarissa Diniz e Sandra Benites enviarem um texto para as/os artistas, coletivos e movimentos sociais sobre o fim do projeto. Ele está publicado na íntegra aqui. “Aceitar a exclusão das imagens das retomadas em nome da permanência do núcleo nos levaria a ser desleais com os sujeitos e movimentos envolvidos na nossa curadoria – contradição que não estamos dispostas a negociar por não concordar com tamanha irresponsabilidade”, escrevem elas em parte do documento. No site do museu, consta que a próxima exposição vai trazer os temas “terra e território” e “rebeliões e revoltas”. Resta saber como abordar estas questões cruciais com a ausência do mais importante movimento social do Brasil.
As fotografias sobre o MST e impedidas de entrar na exposição são de autoria de João Zinclar, André Vilaron e Edgar Kanaykõ. Conversei com André e ele disse ter recebido a notícia do fim do núcleo com perplexidade. “A questão é: por que estes trabalhos teriam que ser retirados? A exposição ‘Histórias Brasileiras’ será apresentada com um corte, pela metade, já que um de seus núcleos curatoriais, o Retomadas, não estará mais presente. Que histórias então são essas que contamos, mas, sobretudo, quais são as histórias que, propositalmente, deixamos de contar? Causa estranhamento que, no âmbito da cultura e da arte, uma instituição como o Masp, que vem se colocando como protagonista de posições críticas à história das representações, faça escolhas que não parecem transparentes, em relação às quais são as críticas que a instituição admite. Além disso, é inaceitável que meses de trabalho, interlocução com artistas e instituições e pesquisas de acervos tenham sido tratados desta forma pela direção do Masp.”
Segundo André, as fotografias retiradas da exposição do Masp são da Marcha das Mulheres do MST, no Pontal do Paranapanema, no oeste do estado de São Paulo, em março de 1996. “A região é caracterizada por terras férteis, devolutas, mas que por processos históricos de grilagem estavam nas mãos de alguns proprietários de fazendas improdutivas. O contexto do Pontal era marcado pela violência de jagunços, a mando de fazendeiros, contra os acampados do MST, e o conflito era iminente”, explica.
A princípio, o museu, alegando não haver mais prazo para inserir o material do MST (leia nota completa do Masp no fim deste texto, assim como a resposta das curadoras), vetou todo o conjunto de imagens e documentos relacionados ao movimento, mas, após uma intensa negociação e pressão das curadoras, permitiu que cartazes, panfletos, cartilhas e jornais entrassem na exposição, mas não as fotografias.
Com a crise exposta pelas curadoras, artistas envolvidos na mostra, que é composta por sete núcleos, passaram a questionar se permaneceriam ou não no “Histórias Brasileiras”. Em seu Instagram, a artista Aline Albuquerque anunciou sua saída do projeto. “Se minhas irmãs e irmãos, indígenas e sem terra, não podem estar, eu também não posso estar. Máximo respeito e solidariedade à Sandra Benites e Clarissa Diniz”, escreveu. O artista Denilson Baniwa escreveu um belo texto de chamada à ordem, em uma crítica que inclui o Masp, mas não somente: “Os Yanomami não serão salvos porque o maior museu do Brasil está fazendo uma exposição sobre o garimpo Yanomami, a luta é maior e mais longa e menos instagramável que isso – quero ver curadores e artistas lá na base, junto, não apenas teorizando sobre algo que não vivem, vocês puxam o gatilho com a gente ou são gatilhos na gente?”, diz em trecho do post.
Temendo o esvaziamento da exposição, a equipe do museu passou a entrar em contato direto com diversas/os artistas. O “Histórias Brasileiras”, previsto para o início de julho, tem direção curatorial de Adriano Pedrosa, diretor artístico do Masp, e Lilia Schwarcz, curadora adjunta de histórias do museu. A equipe ainda é formada por Amanda Carneiro, André Mesquita, Fernando Oliva, Glaucea Britto, Guilherme Giufrida, Isabella Rjeille e Tomás Toledo. Todos são ou do Rio ou de São Paulo. Clarissa era a única nordestina; e Sandra, a única do Centro-Oeste. Assim, o Histórias… vai ser contado somente a partir do Sudeste brasileiro. Uma outra contradição quando estamos falando sobre críticas à colonialidade.
É preciso lembrar que o Masp conseguiu a particular proeza de iniciar sua “agenda decolonial” enquanto adotava posicionamentos no mínimo curiosos. Um deles foi elevar, pela primeira vez em 70 anos, a classificação etária de uma exposição para 18 anos. Tratava-se de “Histórias da Sexualidade”, vista em outubro de 2017. A decisão da entidade se deu na rasteira da polêmica envolvendo a exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, que foi cancelada após o Santander Cultural de Porto Alegre sofrer uma série de ataques, boa parte coordenada pelo MBL, e fechar a mostra.
O acesso de menores de 18 anos no Masp foi impedido mesmo que crianças e adolescentes estivessem acompanhados de pais ou responsáveis, o que acendeu o alerta de muita gente sobre o fato de a instituição ter se dobrado ao anacronismo e ao fascismo que caracterizaram boa parte dos ataques. Na época, o curador chefe Adriano Pedrosa disse que o museu estava apenas sendo “legalista“, mas a decisão continuou a repercutir mal. Semanas após a abertura de “Histórias da Sexualidade”, o Masp voltou atrás e passou a permitir menores, desde que acompanhados.
Política além do verniz
Com diversos trabalhos expostos, boa deles em mostras de caráter marcadamente político, a artista Ana Lira diz que já passou por uma proibição semelhante à vivida por Clarissa e Sandra, também em São Paulo, quando propôs uma obra envolvendo agroecologia como prática criativa –- o grupo de agricultores que estaria com ela era do MST. A obra, no entanto, foi desarticulada. “O que eu sinto sobre a inserção das questões que envolvem sexualidade, gênero, racialização, patrimônio, terra, entre outros, neste contexto, é que elas continuam sendo feitas no campo da forma. Se queremos, de fato, que as coisas avancem, não podemos defender estas questões e eleger quem se opõe a elas; e sabemos que vários agentes importantes do setor cultural abrem espaços para que gestores contrários a essas discussões continuem sendo eleitos. Ou nos comprometemos coletivamente – em todas as esferas e níveis – com a consolidação deste setor no Brasil, ou vamos continuar tendo episódios difíceis como este”, diz Ana.
Ela destaca que o movimento indígena tem ensinado sobre recusas necessárias no campo da arte principalmente a artistas negras e negros, que também vêm sendo fortemente convidadas/os para estar nos espaços historicamente brancos da arte brasileira. “Acredito que quando o contexto não respeita as nossas potências e precariza o nosso processo criativo, precisamos rever como caminhamos dentro dele. Estamos precisando aprofundar este debate nos vários circuitos negrodescendentes brasileiros, que estão em um momento muito bom em termos de imagem e relevância pública, mas enfrentando condições ainda muito difíceis de consolidação e sobrevivência nos bastidores. Acredito que, se o ocorrido não for meramente sequestrado pela polêmica, temos uma chance muito bonita de redefinir caminhos de atuação e responsabilidade coletiva no setor cultural no Brasil.”
Inéditos, os trabalhos da Marcha das Mulheres do MST integrariam pela primeira vez uma exposição. Quando realizados, foram publicados em diversos veículos de imprensa, como a revista Manchete e jornais como o Miami Herald, Chicago Tribune e San Francisco Chronicle, nos Estados Unidos. Perguntei a André Vilaron se ele acredita que as imagens realizadas por ele sofreram censura do museu. “Esta resposta, quem precisa dar, é a direção do Masp.”
Notas do Masp e das curadoras (o MST também publicou uma, leia aqui)
A resposta do MASP
Em razão de desentendimentos em relação ao prazo de pedido de empréstimos para a mostra Histórias Brasileiras, Clarissa Diniz, curadora convidada, e Sandra Benites, curadora adjunta, decidiram cancelar o núcleo Retomadas na exposição. As curadoras alegam que não conheciam os prazos, que constam em contrato, e tomaram essa decisão por não poderem incluir 6 fotografias de autoria de João Zinclar, André Vilaron e Edgar Kanaykõ, ligados ao MST, pois julgavam essenciais para a mostra. A produção já havia procurado flexibilizar os prazos para solicitação de empréstimo de obras bem como seus licenciamentos – mínimo de 6 meses (para instituições nacionais) e 4 meses (para galerias e coleções particulares nacionais) – e inclusive aceitou um pedido de inclusão de cartazes e documentos do acervo do MST, o que descarta a hipótese de censura.
Nesse sentido, as narrativas que alguns veículos sugerem em manchete dizendo que o Masp vetou obras do MST não são verdadeiras. Os prazos institucionais servem tanto para garantir uma montagem saudável e de qualidade para todas as equipes envolvidas, quanto para os materiais de divulgação. Uma exposição deste porte – ocupando dois andares no museu, com um corpo curatorial composto por 12 integrantes, com mais de 300 obras e operando no limite de prazos – demanda maior rigidez e disciplina com relação a todas as instâncias, não só curatorial e de produção, mas também contratuais. Tais restrições foram colocadas aos curadores de todos os núcleos da mostra, não somente as do núcleo Retomadas, e outros curadores também tiveram que cancelar empréstimos por esse mesmo motivo.
Não se trata, portanto, de uma restrição em termos de conteúdo, mas sim única e exclusivamente de cronograma institucional. No momento em que as curadoras do núcleo optaram por seu cancelamento, o museu já havia processado cerca de 45 empréstimos e encaminhado contratos aos 4 artistas que teriam suas obras comissionadas para o núcleo. O MASP lamenta profundamente o ocorrido e reitera que é uma instituição que preza pelo trabalho e a colaboração horizontal entre equipes, incluindo a produção e a curadoria. A exposição segue com os outros núcleos organizados pelos curadores do MASP – Adriano Pedrosa, Amanda Carneiro, André Mesquita, Fernando Oliva, Glaucea Britto, Guilherme Giufrida, Isabella Rjeille, Lilia Schwarcz e Tomás Toledo.
Resposta das curadoras
Sandra Benites e Clarissa Diniz, 15 de maio de 2022
Sobre o cancelamento do núcleo Retomadas da exposição “Histórias Brasileiras”
Em razão da publicação da “nota sobre a exposição histórias brasileiras”, veiculada ontem pelo MASP em seu sítio na internet com justificativas sobre o cancelamento do núcleo Retomadas, nós, curadoras do referido núcleo, vimos a público exercer nosso direito de resposta e expor circunstâncias determinantes ao cancelamento de “Retomadas”, omitidas ou distorcidas na manifestação da instituição.
Sobre os marcos indicados em contrato
O Museu afirma que a exclusão de “6 obras de fotógrafos ligados ao Movimento Sem Terra – MST” ocorreu porque foram “solicitadas pelas curadoras ao departamento de produção do museu, muito fora dos prazos do cronograma estabelecido em contrato”. A nota afirma que os prazos, teoricamente “no mínimo de 6 meses (para museus brasileiros) e 4 meses (para galerias, coleções particulares e artistas) já teriam sido flexibilizados” e que “restrições são comuns no processo de produção e impediram também que outros curadores da mostra solicitassem algumas obras em seus respectivos núcleos.”
O primeiro equívoco da nota envolve os marcos do calendário genérico originalmente previsto no contrato, pois não havia a mencionada distinção de 6 meses para museus e 4 para galerias, coleções particulares e artistas nacionais. O único marco estabelecido para empréstimos nacionais era de 6 meses de antecedência. A exposição tem “previsão de inauguração em 1 de julho de 2022”, como anuncia a nota divulgada ontem pelo MASP. Portanto, caso o MASP estivesse efetivamente praticando os marcos do contrato, o prazo teria expirado em 10 de janeiro de 2022. No entanto, nós fomos convidadas para ir ao MASP para reuniões presenciais de apresentação e aprovação do núcleo “Retomadas” na segunda metade de janeiro: portanto, após o fim do prazo teoricamente fatal. Na ocasião, recebemos textualmente elogios do diretor artístico da instituição.
A prova definitiva de que os marcos temporais do contrato não guardavam qualquer relação com a realidade está no prazo estabelecido para empréstimos de instituições internacionais, que deveria ocorrer em até 12 meses antes da inauguração da exposição. Como a exposição será inaugurada em 1 de julho de 2022, o prazo para a requisição destes empréstimos venceria em julho de 2021. Contudo, ocorre que o contrato de Clarissa Diniz, por exemplo, foi assinado apenas em agosto de 2021: após, portanto, o vencimento daquele prazo, o que revela não só a impossibilidade material de execução do cronograma, bem como demonstra como o mesmo se dissociava da realidade.
Sobre a não-comunicação do cronograma de “Histórias Brasileiras”
A despeito do retardamento global do projeto, até a recusa do Museu em aceitar a completa representação das retomadas que intitulam o núcleo que propusemos, nunca havíamos recebido um e-mail ou documento com o efetivo cronograma de “Histórias Brasileiras”. Não fomos copiadas em e-mails para a equipe curatorial, nem convocadas para reuniões que tratassem do assunto. Como curadoras adjunta e convidada — portanto, alheias ao cotidiano do escritório do MASP —, não fomos incluídas em quaisquer comunicados desta natureza.
Só quando houve a recusa das 6 fotografias de André Vilaron, Edgar Kanaykõ e, em 14 de abril, soubemos que o MASP havia fixado o prazo fatal de entrega para o dia 31 de março. Jamais fomos comunicadas deste termo final quando o prazo estava em curso. Como ficamos sem um calendário para guiar nosso trabalho, passamos a atender a demandas pontuais que nos chegavam de forma intermitente por meio da assistência de pesquisa da instituição ou da direção do MASP: todas sempre cumpridas com prontidão. Preocupadas com a inexistência de uma comunicação direta por parte da equipe de produção do Museu, solicitamos à diretoria artística uma reunião com a equipe, o que aconteceu no dia 24 de março. Nesta reunião, quando indagamos sobre qual cronograma deveria ser seguido, fomos informadas de que o calendário de produção de Histórias Brasileiras estava “desatualizado” e, por isso, não seria compartilhado conosco na reunião, mas referido “por alto”. Em função de nossa demanda, durante a reunião, a equipe de produção mencionou a lógica do cronograma, mas não nos comunicou de prazos efetivos.
Diante do exposto, solicitamos o envio, por e-mail, de um cronograma que pudesse orientar nossas ações. O cronograma nunca foi enviado e, por isso, seguimos nosso trabalho de pesquisa com o MST e seus fotógrafos, iniciado no começo de fevereiro mediante autorização e ciência do MASP. O contato com esses sujeitos/movimentos, realizado com o acompanhamento do Museu, foi iniciado, portanto, cinco meses antes da abertura prevista de Histórias Brasileiras. No dia 13 de abril, recebemos e-mail do interlocutor designado pela instituição para acompanhar o desenvolvimento do Retomadas, o assistente de pesquisa do Museu, informando que, a partir dali, haveria uma semana para fecharmos os pedidos relativos ao MST.
No dia seguinte, 14 de abril — portanto, ainda no começo do prazo estipulado —, respondemos o e-mail com a indicação de todo o material que representaria as retomadas: peças físicas e digitais advindas do acervo do MST e fotografias digitais de André Vilaron, João Zinclar e Edgar Kanaykõ. O prazo estipulado e informado pela instituição foi, portanto, integralmente atendido. Para nossa surpresa, a equipe de produção informou que o conjunto das peças não poderia ter sua solicitação de empréstimo formalizada pelo MASP porque o prazo teria expirado, embora jamais tivéssemos sido informadas a seu respeito. Não houve um e- mail, uma ligação ou uma mensagem nos informando deste suposto prazo.
Exigir o cumprimento do cronograma seria, portanto, nos atrelar a uma obrigação impossível, pois o desconhecíamos. Por sua vez, impor a nós as consequências por este suposto descumprimento de prazo, com a restrição à exibição de materiais centrais ao desenvolvimento do Retomadas, seria sujeitar o núcleo à desconfiguração conceitual, ética e política por omissão da instituição em nos comunicar o prazo final para conclusão da pesquisa, realizada durante meses junto ao MST e seus fotógrafos. A nota do MASP desconsidera estas circunstâncias e a isonomia que deveria ter sido dispensada no tratamento de todos os núcleos da mostra. Afinal, ao alegar que “outros curadores também tiveram que cancelar empréstimos por esse mesmo motivo [o descumprimento de prazos institucionais]”, o MASP pretende equiparar cancelamentos eventualmente provocados pela extrapolação do cronograma à restrição infligida ao Retomadas, fruto da abrupta recusa de material pelo vencimento de prazo que desconhecíamos ou do arrependimento da instituição em estendê-lo, após reconhecer o “equívoco” na comunicação, como explicado abaixo.
Sobre intransigência institucional
Diante do impedimento anunciado pelo Museu, iniciamos uma negociação com sua equipe de produção que, depois de reconhecer, que nos foi passada de “maneira equivocada uma data limite para recebimento do material do MST”, informou que seguiria somente com o empréstimo de metade do conjunto — os cartazes e outros documentos vindos do arquivo do MST —, excluindo, portanto, todas as fotografias. Reiteradas vezes, buscamos explicar ao MASP a importância da manutenção da totalidade do conjunto. As tentativas foram em vão. O Museu se manteve irredutível e não permitiu a formalização do empréstimo das 6 fotografias, apesar de a inclusão das referidas imagens sequer envolver transporte ou seguro, pois se tratava de cópias de exibição produzidas mediante a impressão de arquivos digitais. Defrontadas com a intransigência da instituição — que reconheceu o “equívoco” institucional, mas optou por incluir apenas os cartazes, deixando de fora as fotografias que compunham o coração do Retomadas —, nos vimos impelidas a cancelar o núcleo pela impossibilidade de ele vir a representar respeitosa e responsavelmente os processos políticos que justificam sua proposição e existência.
Somos curadoras experientes, com uma trajetória de trabalho institucional e realização de exposições de grande porte, todas devidamente acompanhadas por cronogramas e um constante diálogo com suas respectivas equipes de produção. É por entendermos que curadorias e instituições devem ser responsáveis, cuidadosas e comprometidas, por acreditarmos profundamente na posição política evocada pelo Retomadas e por nos identificarmos integralmente com os pressupostos éticos que o sustentam, que não podemos naturalizar o que seria a contradição de excluir, do núcleo, os sujeitos e movimentos históricos que perfazem as retomadas sob a alegação de impedimentos técnicos.
Correção, 17 de maio, 14h34:
A legenda da terceira foto erroneamente referia a imagem ao MST, mas se trata da Marcha das Mulheres Indígenas. A informação foi corrigida.
Correção, 18 de maio, 7h58:
O crédito da foto da Marcha Nacional pela Reforma Agrária estava creditada erroneamente a André Vilarón, mas é de autoria de José Zinclair. A informação foi corrigida.
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