Com a pompa e o ufanismo dos tempos da ditadura, um grupo formado basicamente por militares da reserva – inclusive gente que bate ponto no Palácio do Planalto, como o vice-presidente Hamilton Mourão e seu possível sucessor Walter Braga Netto – lançou há alguns dias um documento intitulado Projeto de Nação.
Como o repórter Marcelo Godoy contou no Estadão, se trata de um amontoado de sandices espalhadas em meras 93 páginas. Ali se defende, por exemplo, acabar com “restrições da legislação indígena e ambiental que se conclua serem radicais nas áreas atrativas do agronegócio e da mineração”, a cobrança pelo atendimento no Sistema Único de Saúde e nas universidades federais e a “desideologização” do ensino superior público.
“Desideologização” a ser comandada, é lógico, por gente como o general de pijamas Luiz Eduardo Rocha Paiva, coordenador do “Projeto de Nação” e ex-presidente do fã-clube do torturador condenado Carlos Alberto Brilhante Ustra. Gente fina da melhor qualidade.
O Intercept acompanha há quase um ano a elaboração do “Projeto de Nação” da turma que dorme sonhando que irá acordar em 13 de dezembro de 1968. Em julho de 2021, contei aos assinantes da nossa newsletter semanal que o general Valério Stumpf Trindade, comandante militar do Sul, mandou um coronel pedir – usando e-mail oficial do Exército – que colaboradores de seu Núcleo de Estudos Estratégicos contribuíssem com a o que viria a ser o “Projeto de Nação”. No grupo que recebeu o e-mail há, inclusive, professores e acadêmicos civis.
Stumpf é um general de quatro estrelas que nasceu e fez boa parte da carreira no Sul do país – ou no Terceiro Reich, jargão interno usado para se referir a militares do Terceiro Exército, atual Comando Militar do Sul. Quando Sérgio Etchegoyen deixou o cargo de chefe do Estado-Maior do Exército para ser ministro do recriado Gabinete de Segurança Institucional de Michel Temer, logo chamaria Stumpf para ser seu braço direito.
Etchegoyen, por sua vez, era chefe do Estado-Maior (espécie de número dois do Exército) sob Eduardo Villas Bôas, que será lembrado pela história como o tuiteiro que ameaçou o Supremo Tribunal Federal na véspera do julgamento de um habeas corpus que poderia dar a Luiz Inácio Lula da Silva o direito de disputar a eleição de 2018. Os dois são também amigos desde os primeiros anos da infância passada em Cruz Alta, Rio Grande do Sul.
Quando Villas Bôas perdeu o controle do próprio corpo, acometido pela terrível esclerose lateral amiotrófica, Etchegoyen tomou para si também o papel de cuidar da imagem e da biografia do amigo. E Villas Bôas, como se sabe, lançou um instituto que leva o próprio nome para se manter influente mesmo na reserva.
Foi o Instituto Villas Boas quem deu alguma credibilidade ao “Projeto de Nação”, concebido originalmente por um político varzeano de Curitiba e o novo negócio de Rocha Paiva, o Instituto Sagres. O aval do ex-comandante do Exército à sandice foi o suficiente para que Hamilton Mourão incumbisse, em setembro passado, o então ministro do Turismo, o mau sanfoneiro e lobista anti-indígena Gilson Machado, de “pedir” a seus funcionários que participassem da elaboração do “Projeto de Nação”. O ofício assinado por Mauro Fialho de Lima e Souza, assessor especial de Machado, foi bem pouco sutil a respeito: a participação é voluntária, porém importante termos representatividade no Projeto (o grifo é do documento original).
Na lista de destinatários da mensagem estavam todos os órgãos públicos que, na balbúrdia administrativa do governo Bolsonaro, acabaram sob o guarda-chuva do Turismo, inclusive as secretarias de Cultura, do Audiovisual, da Economia Criativa e Diversidade Cultural, de Fomento e Incentivo à Cultura, de Desenvolvimento Cultural e de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual. Servidores que deveriam cuidar do desenvolvimento da cultura brasileira sendo coagidos a dar legitimidade ao mundo dos sonhos de um grupo de militares.
A nossa editora Tatiana Dias perguntou, via Lei de Acesso à Informação, se foi firmado algum tipo de acordo ou convênio entre os autores do “Projeto de Nação” e o Ministério do Turismo. Resposta: não. Ou seja – tudo foi feito na base do “quem manda aqui sou eu”.
Daí se vê que houve uma preocupação de dar ao “Projeto de Nação” a legitimidade de um documento nascido de dentro da sociedade civil brasileira. Agora que conhecemos o conteúdo dele, convém levar a sério. Os personagens envolvidos são responsáveis por tirar a democracia dos trilhos nos últimos anos. E fizeram carreira numa corporação especializada em golpes de estado, o Exército brasileiro.
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