Antônio passou quatro anos como rodoviário na capital do Rio de Janeiro. Familiarizado com as rotas do BRT, ele não aguentava mais os horários de trabalho – que às vezes ultrapassavam 14 horas por dia – e queria pedir demissão. Durante o processo, descobriu que a empresa não havia pago o FGTS e o INSS e decidiu entrar na justiça. Ganhou a ação, mas desde então não consegue mais nenhum emprego na área.
Seus problemas são ainda anteriores à demissão. O motorista contou ao Intercept sobre a rotina de abusos: desde horas e folgas não pagas, passando por desconto no contracheque por assaltos aos ônibus e chantagens. “Quem reclama toma três dias de suspensão”.
O relato de Antônio foi editado para fins de clareza.
Eu sou motorista rodoviário na cidade do Rio. Na verdade, eu era. Desde que coloquei na justiça a empresa em que eu trabalhava, nunca mais consegui emprego no setor. Eles não pagaram o fundo de garantia, o FGTS. Nos quatro anos que passei lá, só tive um depósito no INSS. Quando saí, não tinha nada a receber.
Eu sempre falo para os meus outros amigos que são rodoviários não colocarem as empresas na justiça. Tem que aguentar, segurar a onda. Se não, fecham as portas para o trabalho. Até hoje, não voltei devido a isso, foi meu fim como rodoviário. No Rio de Janeiro, pelo o que sei de relatos de colegas acontece assim.
Mas não foi só na hora de sair que os problemas começaram. Era para a gente trabalhar sete horas por dia, mas frequentemente esse número passava de 10, 12 ou até 14 horas. Não tem como você largar com sete horas de trabalho, eles te obrigam, não tem como você render o carro. Se você está na agenda, é obrigado a fazer.
‘Qualquer avaria no carro, você paga quando chegar na garagem. Quebrou o vidro? O cara vai lá, anota, e no outro mês vem descontado no teu salário.’
Eu pegava 7h40 da manhã e, às vezes, quando saía para dar minha última viagem, eram 17h30. Entrava na garagem às 21h30 ou 22h. E não pode reclamar – se você reclama ou falta, toma três dias de suspensão.
Mas na carteira de trabalho só registravam sete horas – e eles não pagam hora extra. Quando vira o mês, o que eles fazem? Se você tem 40 horas extras, na virada do mês, zera tudo. Você perde essas 40 horas, eles não te pagam. Eles te dão folga, mas só uma. Isso ocorre em todas as empresas de transporte urbano, é normal aqui no Rio.
A gente tem um cartão do rodoviário, o Riocard. Quando você inicia o trabalho, você passa direto em um validador. Ali tem o horário de entrada e o horário de saída, mas essa relação fica na empresa, eles não nos dão acesso.
Quando você vai na maquininha para validar e começar a trabalhar, passamos o cartão e aparece na tela: “novo mula”.
O sistema chama a gente de mula, porque a mula é a que carrega. Eu penso que é isso. Eles tratam a gente como animais. É descarada a parada, isso é um preconceito muito sério para mim. É uma humilhação.
Os rodoviários não se ligam, nenhum rodoviário se liga, mas eu me ligo nessas coisas, sou muito atento aos detalhes. Aparece “novo mula”, a nova mula que vai puxar o carro. Nós somos o animal irracional, entende?
E tem raça e classe envolvidas nisso também. Se a gente fizer um levantamento, vamos ver mais motoristas negros do que branquinhos. E eu queria fazer faculdade. Quando eu chegava para eles dizendo que queria isso, eles falavam: “então você não pode ser rodoviário, procura outra profissão, pede demissão”. Então, você não tem direito a tentar melhorar, a tentar buscar conhecimento.
E tem outra covardia que eles fazem. No ônibus, eu sou obrigado a ser segurança, motorista e trocador. Qualquer avaria no carro, você paga quando chegar na garagem. Quebrou o vidro? O cara vai lá, anota, e no outro mês vem descontado no teu salário.
Aqui no Rio, temos as áreas de risco. Aqui, algumas pessoas são um pouco vândalas – claro que não todas, é a minoria. Chegam no carro e quebram, por exemplo, o meu retrovisor traseiro. Eu chegava na empresa no final do dia, os inspetores tomavam nota daquele retrovisor e descontavam do salário depois. Vinha R$ 250, R$ 300 de desconto. Isso eu acho uma injustiça e uma covardia. Porque então, se eles querem a segurança do carro, eles que coloquem um segurança privado. Como é que eu vou dirigir e vigiar o carro? Não tem como.
Fora as outras situações de invasão às estações do BRT. Quando você vai parar na plataforma, você tem que ter o maior cuidado, porque com esses carros grandes, quando você faz a curva, você não vê a pessoa invadindo a plataforma lá atrás.
Às vezes, você para na estação para pegar passageiros e tem um passageiro para descer, aí você abre a porta traseira para ele. Tem pessoas que entram pela parte de trás para não pagar passagem. Normalmente, isso ocorre nas áreas mais carentes, as mais de risco.
Eu cheguei a pagar mais de 60 passagens para cobrir esses passageiros que invadiram. Acho isso também um absurdo. Não existe você ter que pagar a passagem de pessoas que invadem. Eu ser obrigado a pagar é uma coisa surreal.
E quando tem assalto também: a empresa arca com o custo de 10 passagens, e o resto do prejuízo você paga. Eu já trabalhei com ônibus executivo, que tem a passagem mais cara, e pedi para sair, porque depois de alguns assaltos, já era um prejuízo de mais de R$ 2 mil na minha conta.
E quando tem greve de rodoviários, alguns amigos meus vão, e sempre comentam que tem desconto no salário. Eles dizem que não ganham a cesta básica. E, se você faltou um dia para ir para a greve, desconta três. Mas isso é em todas as empresas, a norma deles é essa.
E no BRT: todo dia eu evitava morte naquilo ali, era um delírio. A pista é pequena, não tem a infraestrutura correta. A projeção de distância que você precisa de um carro para o outro não existe. Não tem espaço para fazer curva com carro articulado. Quando um motorista está passando pelo outro na pista em curva, um segura para o outro abrir e poder passar, porque não tem como passar os dois juntos.
E alguns carros estão muito precários. Eu entrei num atrito com um inspetor, porque eu sou responsável pelas vidas que eu carrego. O inspetor que está lá na garagem só libera o ônibus e se exime do resto. Desde o momento em que eu me sentei ali no banco do motorista, eu estou assumindo uma responsabilidade.
‘Eu falei que iria segurar o gancho, porque eu não queria botar aquele carro na pista, porque eu não quero matar ninguém.’
Tinha um carro com o qual eu me recusava a trabalhar, que eu não ia trabalhar com o tempo de chuva com aquele pneu no arame. O carro era articulado, se a traseira deslizasse eu matava todo mundo lá atrás. Mas me disseram: “não, tem que ir, é a ordem do chefe, é obrigado, se você não for, você vai ter que segurar o gancho [suspensão]”. E eu falei que iria segurar o gancho, porque eu não queria botar aquele carro na pista, porque eu não quero matar ninguém. A vida é muito importante para mim. Aí, eles mandaram eu assinar a dispensa e me colocaram de suspensão por uma semana.
Depois, quando voltei a trabalhar, tive o mesmo problema. No final de semana, eles botam você para trabalhar em outra linha. Você trabalha de segunda a sexta no BRT e, no final de semana, ou você vai rebocar os ônibus quebrados, ou você vai trabalhar nos ônibus normais urbanos.
Os carros são péssimos. Eu fui dar a primeira viagem em um deles, e a roda estalou quando fiz a curva e parecia que ia cair. A gente carrega muita gente: em uma das minhas viagens, um percurso de uma hora e meia, eu carregava de 1.100 a 1.200 passageiros. É muita gente, é um perigo.
Então, fui recolher o carro. Fiz só uma viagem com ele e depois o carro foi para a garagem. Falei que não ia mais carregar ninguém naquele ônibus, porque se aquela roda caísse, eu mataria os outros. Fiquei com medo, mesmo. Eu já tinha dado nota desse carro, já tinha falado dele. Dois dias depois, o carro foi para a linha de novo e deu um acidente grave com um colega. Falei que ia sair e nunca mais voltaria.
Eu já não aguentava mais. Decidi sair, porque eles me botaram no BRT, e lá eu trabalhava 14 horas por dia. E eu queria estudar, tenho um sonho de me formar, mas o horário não estava batendo. Mas aí pedi para mudarem o horário, fiquei seis meses pedindo, mas eles não mudaram. Pedia para me tirarem do BRT, me botarem em outro carro e nada.
Aí eu pedi para sair, achando que ia conseguir outro trabalho de rodoviário. Só que eu coloquei eles na justiça porque, antes de pedir minha demissão, descobri que eles me pagaram só uma parcela do INSS e nenhuma do FGTS. Quando eu acionei eles judicialmente, aí foi meu fim como rodoviário no Rio de Janeiro.
Depois que botei eles na justiça eles começaram a me massacrar, entende? Continuei trabalhando por quatro meses sem folga, porque chegava na minha vez de folgar no domingo e o inspetor me ligava às 7h30 da manhã. “Poxa, tem como você vir? Porque outro funcionário não veio, vai me quebrar aqui, vai me deixar na mão”, ele me dizia. Como eu sempre fui responsável, tinha que ir.
Até porque, se eles me chamam uma vez, chamam duas, chamam três e eu não vou, na terceira eles começam a me maltratar. Então, é preferível você fazer o jogo da empresa, ir lá. Eu ia trabalhar no domingo. E eu falava como isso era uma injustiça, porque a empresa me deixou uma semana de gancho, porque eu me recusei a trabalhar com o carro quebrado, mas quando me ligava nos domingos às 7h30, eu deixava a minha família em casa e ia trabalhar.
Eles esperam você sair, eles fazem de tudo para você sair, mas não te mandam embora. Vão te minando, te pressionando. Aí chegou num momento que eu não aguentei.
A prova maior disso tudo é a sentença que o juiz deu. Eu ganhei a causa na justiça. Mas não consigo mais trabalhar. Eu chego nas empresas, faço entrevista e passo. Aí quando chega na hora de entregar o documento, os caras falam que eu tenho uma ação judicial e, por isso, é “complicado”. Pergunta para qualquer rodoviário do Rio, e ele vai te dizer que se você processar a empresa não consegue mais trabalhar no setor. É assim que funciona esse sistema aqui.
Alguns amigos meus têm caminhão, eles me ajudam, quebram galho. Eu vou recolher entulho com eles, vou lá e faço um servicinho, e eles me dão uma parte. É assim que eu estou me virando até conseguir alguma coisa. Mas trabalho de rodoviário eu não tenho mais, não, não me deixam voltar.
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