O ginecologista Raphael Câmara se utilizou mais uma vez de seu cargo como secretário de Atenção Primária do Ministério da Saúde para avançar suas pautas anti-mulheres. Há um mês, Câmara, que também é conselheiro no Conselho Federal de Medicina, incentivou a violência obstétrica no lançamento da nova caderneta da gestante. Agora, ele edita um novo manual que afirma que as pessoas que recorrem ao aborto nos casos permitidos em lei devem ser investigadas.
A página 14 do documento, intitulado Atenção Técnica Para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento, é clara: “Todo aborto é um crime, mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido”. Ainda mais clara é a tentativa de Câmara, conhecido militante antiaborto, de desestimular o procedimento nos caso previstos em lei – quando a gravidez decorre de estupro, representa risco à vida da gestante ou há anencefalia do feto.
Esse movimento é especialmente preocupante levando em consideração que, segundo um levantamento da revista IstoÉ de 2016, apenas 3% das denúncias de estupro acabam em condenação no Brasil. Ou seja: as mulheres investigadas por fazerem abortos após um abuso têm chances enormes de não conseguirem provar que o procedimento realmente aconteceu em uma gestação decorrente de estupro.
Ao menos nos últimos 20 anos, não houve um incentivo documentado do Ministério da Saúde à investigação de mulheres que recorrem ao chamado aborto legal. Pelo contrário: embora nem sempre fossem seguidas, as normas do ministério e as leis convergiam no entendimento de que a palavra da vítima de estupro era suficiente para que o procedimento fosse realizado, havendo ou não registro de ocorrência, e de que os serviços de saúde tinham o dever de acolher a vítima sem julgamentos e prestar atendimento humanizado. Nenhuma palavra se dizia sobre investigações posteriores.
Uma janela para a legitimação dessa visão persecutória se abriu no Ministério da Saúde, porém, quando a pasta tornou obrigatória a comunicação dos casos de violência sexual à polícia, três meses após Raphael Câmara assumir como secretário. A portaria 2.561, de setembro de 2020, afirma que a notificação compulsória era necessária já que os crimes contra a liberdade sexual passaram a ser de ação pública incondicionada – ou seja, uma vez que as autoridades tomam conhecimento de um estupro, por exemplo, elas devem investigá-lo e dar início à ação penal independentemente da vontade da vítima. Antes, a polícia só era acionada caso a vítima desejasse, e as notificações feitas ao Ministério da Saúde não tinham dados que a identificassem.
Uma vez que todo caso de estupro relatado aos profissionais de saúde passou a ser comunicado à polícia – supostamente, com o objetivo de ajudar na investigação do abuso – era questão de tempo até que se estimulasse a utilização desses dados para a investigação das vítimas de estupro que procuram os serviços de saúde em busca do aborto legal.
É o que estamos vendo no manual da Secretaria de Atenção Primária à Saúde. A agenda antiaborto de seu líder é a única explicação possível para a inclusão de trechos que negam que o aborto seja um problema de saúde pública, como é feito na página 7, e de parágrafos como o seguinte, presente na página 22 do guia:
O documento foi divulgado nesta terça-feira, 7 de junho, pelo jornal bolsonarista Gazeta do Povo, que teve acesso a uma versão preliminar do guia. Segundo o jornal, ele ainda deve ser discutido em audiência pública no mês de julho, podendo sofrer alterações. Caso continue como está, no entanto, podemos contar mais uma vitória de Raphael Câmara em sua cruzada contra as mulheres.
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