Em 2021, a Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina viu algo inédito acontecer: depois de 89 anos, finalmente uma mulher foi eleita presidente da instituição. O que, visto de longe, parece uma conquista importante, é bem mais complexo por dentro. Assim que a advogada Cláudia Prudêncio anunciou sua candidatura, uma ex-funcionária usou as redes sociais para acusá-la de praticar assédio moral dentro da OAB, com direito a gritos, xingamentos e ameaças.
O relato foi confirmado por três ex-funcionárias da Ordem ouvidas pelo Intercept. Na época, a denúncia mereceu registro da imprensa local, mas não a ponto de impedir a vitória de Prudêncio na eleição. A família de uma ex-funcionária levou o caso para o Ministério Público do Trabalho, que está investigando a denúncia.
Advogada há 22 anos, Prudêncio tem uma carreira proeminente na OAB. Ela já foi conselheira estadual, secretária-geral adjunta e, entre 2019 até 2021, presidente da Caixa de Assistência dos Advogados de Santa Catarina, a Caasc. É nesse último período que existe a suspeita de assédio. Um detalhe chama a atenção: a advogada já deu palestras sobre assédio moral no ambiente do trabalho.
“O assédio no ambiente de trabalho contra as mulheres, seja ele moral ou sexual, é recorrente e com implicações psicológicas e sociais profundas, em alguns casos até mesmo irreversíveis”, disse Prudêncio antes de uma palestra na III Conferência Nacional da Mulher Advogada, em 2020. O tema da conferência era “Igualdade, Liberdade e Sororidade”. Em 2022, ela voltou a falar sobre o assunto em uma palestra em Brasília.
A principal acusação parte da coordenadora de eventos Lia Bueno, que trabalhou por mais de seis anos na Caasc, braço da OAB que se dedica a auxiliar os advogados com questões como auxílio-maternidade e convênio médico. Seu primeiro contato com Prudêncio foi em 2019, quando a advogada foi eleita presidente da Caixa de Assistência.
“Ela [Prudêncio] se apresentou, disse que ia ser tudo lindo, foi super simpática. E depois disso foi só ladeira abaixo. Só grosseria, só grito”, relata Bueno. “O que mais marca são os gritos por telefone. Ela sempre afirmava ‘eu sou a presidente, eu que sei'”, ela me disse.
A coordenadora de eventos Bueno recorda o clima de tensão. “Quando diziam ‘a dra. Claudia está vindo’, ninguém conseguia trabalhar. Quem não fumava, passou a fumar. Todos ficavam nervosos”, narra.
As primeiras denúncias foram divulgadas por Bueno e sua família em meio às eleições para a OAB de Santa Catarina. Na época, a então candidata fez um vídeo denunciando os “ataques criminosos” que estava sofrendo. Um colunista local, do Diarinho, chamou o conteúdo da denúncia de “falso”, “difamatório” e “força de baixaria” contra a chapa encabeçada por Prudêncio. “A outra chapa usou o vídeo, sim, para as eleições”, conta Bueno. “Mas não considero baixaria porque são fatos, atitudes que ela teve com o apoio da chapa dela, que ignorou a gravidade”.
O MPT, inicialmente, havia indeferido o pedido de investigação, alegando que Prudêncio estava no fim de seu mandato na Caixa de Assistência. Mas a ex-funcionária recorreu e, agora, a Câmara de Coordenação e Revisão do MPT, em Brasília, determinou que a conduta da presidente da OAB seja investigada em Santa Catarina.
‘Tu é louca?’
Lia Bueno diz ter entrado em depressão e que ainda vive um período complicado. Ela tem muita dificuldade para falar sobre o período final em que trabalhou na Caasc. Durante mais de uma hora de entrevista com o Intercept, chorou na maior parte do tempo. Ao relembrar da convivência com Prudêncio, diz que escutava com frequência a mesma indagação: “Tu é louca?”. E que, na maioria das vezes, tudo acontecia entre quatro paredes. “Ela cuidava muito para não fazer isso em público. Em um evento ou outro, ela gritou na frente de todo mundo, mas, dentro da OAB, ela fazia isso sempre dentro da sala dela”, relata Bueno.
Uma outra lembrança ainda ressoa com força. “Ela tinha muito aquela coisa de ‘Eu vou arrancar teu cabelo se isso não der certo’. Em uma das vezes eu até respondi brincando para descontrair: ‘Não, doutora, não arranca meu cabelo’. E ela falou: ‘Estás rindo, é? Tu vai ver só se eu não te arranco todo esse cabelo aí’ e saiu bufando. Então, ali, eu vi que, realmente, o negócio não era um jeito de falar, de ser. Era abuso”.
Ao longo das semanas, Bueno passou a desenvolver sintomas de exaustão. Diz que sentia tontura, dificuldade de respirar e tinha muita insônia. “Eu chorava por qualquer coisa, não tinha vontade de nada. Comecei a me sentir muito inútil, burra, incompetente, que era o que ela fazia a gente se sentir. Tudo que a gente fazia era errado. Então, minha autoestima foi lá embaixo”.
‘Eles trabalhavam o tempo todo nessa aflição, com medo de serem coagidos, de serem mandados embora’.
A gota d’água teria sido durante um evento para os delegados da OAB. Prudêncio, que aparentemente não gostou de um dos estandes organizados por Bueno, a repreendeu por telefone. “Ela me ligou e disse: ‘Olha o que tu fez, tua bocuda. Tu estragou todo meu estande, destruiu todo meu trabalho”, rememora a coordenadora. Nesse dia, ela diz, sua mãe pediu para que ela largasse o emprego por não aguentar mais ver a filha daquele jeito. “Na segunda-feira depois desses eventos, eu fui na psiquiatra e peguei 15 dias de atestado. Quando voltei, trabalhei dois ou três dias e fui demitida”.
Segundo o laudo psiquiátrico, a coordenadora de eventos sofreu um “transtorno de ansiedade caracterizado por sintomas emocionais ou comportamentais em resposta a um estressor ou estressores identificáveis”. Desde então, Bueno afirma fazer tratamento psiquiátrico e psicológico.
Respaldada pelo irmão, João Lima, que é advogado, ela recorreu à Justiça e fez uma denúncia ao Ministério Público do Trabalho, que, por sua vez, autorizou a apuração do caso. “Tornar pública essa história é uma forma de dar um basta nesse absurdo e barrar essa cultura de abusos que a OAB internalizou”, diz o advogado.
“Temos a certeza de que o MPT irá atuar para que essa violência que maltrata, adoece e deprime não seja parte de uma instituição tão relevante para a advocacia e para o país”. Segundo os denunciantes, a cúpula da OAB local foi avisada sobre a conduta da presidente, mas nenhuma providência foi tomada.
Prudêncio pediu o arquivamento da investigação – o que foi negado pelo órgão trabalhista. Atualmente, o caso está na mão do procurador Luiz Carlos Rodrigues Ferreira, de Florianópolis, que instaurou um inquérito civil no dia 24 de maio para dar seguimento à investigação.
O pânico tomava conta
Helen trabalhou na Caasc por mais de seis anos e diz que, até a chegada de Prudêncio, nunca teve nenhum problema com seus superiores. Assim como Lia Bueno, ela afirma ter sido uma das vítimas da presidente, que descreve como “uma pessoa autoritária, que precisa sempre se sentir superior diante dos funcionários”.
“Ela nos tratava com constrangimento, gritos, como se fossemos incompetentes. O que me fez achar até que eu não seria competente para um novo trabalho”, recorda. “Certa vez, estávamos somente eu e ela na sala de reuniões. Ela chegou a falar para mim ‘Queres que eu te coloque para a rua?’, enquanto eu chorava”.
Apesar de não ter presenciado nenhuma situação de abuso contra Bueno, Helen afirma ter visto a colega “em prantos, tremendo e muito nervosa” dentro da Caasc. Ela também confirma que “o pânico tomava conta da maioria dos funcionários” quando anunciavam a ida de Prudêncio ao escritório.
Depois de ser demitida, em 2020, Helen diz que chegou a cogitar formalizar uma denúncia. Mas, por medo, não seguiu em frente.
Priscila, outra funcionária da Caasc demitida durante a gestão de Cláudia Prudêncio, confirma que o ambiente de trabalho não era saudável. “O clima era de medo, muita pressão e ameaças”, fala. Sônia, ex-dirigente da OAB catarinense, conta que, desde que Prudêncio assumiu a gestão, reclamações entre os funcionários passaram a ser recorrentes. “Eles passavam constrangimento, eram xingados, humilhados. Quando ela fazia reuniões, eles ficavam totalmente apreensivos porque não sabiam como ia estar o humor dela. Eles trabalhavam o tempo todo nessa aflição, com medo de serem coagidos, de serem mandados embora. Ela criou um ambiente de desespero e pânico entre eles [funcionários]”.
Em nota enviada após a publicação deste texto, a OAB-SC afirmou que a acusação contra Claudia Prudêncio é falsa e nunca foi formalizada em processo judicial. “Ela foi protocolada no MPT, três dias antes da última eleição para a diretoria da OAB-SC, por adversários políticos derrotados em sucessivos pleitos eleitorais, e não pela ex-funcionária ou sua família, que jamais haviam feito qualquer reclamação a respeito. Serão adotadas as medidas cabíveis com relação a essas pessoas para reparação dos enormes prejuízos causados”, disse a Ordem.
Atualização: 13 de junho de 2022, 10h27
O texto foi atualizado para incluir o posicionamento da OAB-SC.
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