João Filho

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Ratanabá: o delírio de uma extrema direita desesperada

Nova fake news bolsonarista compartilhada por ministros quer desviar o foco de uma Amazônia entregue ao crime.

Ratanabá: o delírio de uma extrema direita desesperada

Ratanabá: o delírio de uma extrema direita desesperada

Ilustração: Rodrigo Bento/The Intercept Brasil

Enquanto os olhos do mundo estavam voltados para o desaparecimento de Dom Phillips e Bruno Pereira na Amazônia, o bolsonarismo embalava mais uma teoria da conspiração sobre a região. A tese é das mais mirabolantes: há uma cidade perdida na Amazônia que foi a capital do mundo há 450 milhões de anos. Trata-se de Ratanabá, que abrigou a primeira civilização do planeta, que dominava tecnologias muito avançadas.

Em Ratanabá há tanta riqueza escondida, mas tanta, que seria o suficiente para transformar o Brasil no país mais rico do mundo. Esse delírio, claro, não encontra o mínimo respaldo entre arqueólogos que estudam a região e cientistas em geral. Há 450 milhões a humanidade nem existia e só viria existir algumas centenas de milhões de anos depois. É uma conspiração grotesca como todas as que fazem a cabeça dos bolsonaristas.

Não se trata de mais uma mamadeira de piroca fabricada pelo gabinete do ódio, mas de uma conspiração criada há alguns anos que vem ganhando adeptos. A descoberta de araque foi feita por um cientista de araque. Urandir de Oliveira é o picareta por trás de Ratanabá.

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Ele ficou famoso no Brasil primeiro como paranormal nos anos 90, quando aparecia em programas de auditório entortando garfos com a força do pensamento. Mais tarde, graças ao espaço dado por emissoras ávidas por audiência a qualquer custo, ele ficaria ainda mais famoso como ufólogo ao criar a farsa do ET Bilú — uma mentira ainda mais primária, evidente e constrangedora que a gravidez de Taubaté.

Neste ano eleitoral, a história de Ratanabá virou febre na internet e passou a circular nas mesmas redes que difundiram negacionismo científico durante a pandemia. Essa é uma conspiração que, em um primeiro momento aparenta ser inocente e inofensiva, mas não é bem assim.

Urandir defende outras conspirações caras ao bolsonarismo. Ele é antivacina, jura que a Terra não é redonda como desconfiava Olavo de Carvalho e, assim como o presidente, afirma que a floresta amazônica não queima. A lenda de Ratanabá também abarca outra conspiração bolsonarista: a de que muitos países do mundo, através de ONGs internacionais em defesa da Amazônia e direitos dos povos indígenas, têm, na verdade, o objetivo de dominar e roubar as riquezas dessa região do Brasil. Eles estariam de olho no ouro que abunda em Ratanabá. A luta pela preservação da Amazônia e pelos direitos indígenas seria, portanto, uma fachada para estrangeiros que querem nos saquear.

O recente sucesso da lenda não é apenas coisa de gente maluca na internet, mas fruto de um movimento organizado.

Não é uma coincidência o fato de Ratanabá ter virado um dos assuntos mais comentados do Brasil nas últimas semanas. O impulsionamento repentino do assunto nas redes da extrema direita se deu justamente durante o desaparecimento do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, que estavam na linha de frente da luta pela preservação da Amazônia e pelos direitos dos povos indígenas.

O recente sucesso da lenda não é apenas coisa de gente maluca na internet, mas fruto de um movimento organizado. Segundo a ferramenta Google Trends, a palavra “Ratanabá” começou a ser pesquisada em grande volume no Google a partir do dia 5 de junho, atingindo o pico no dia 12. Antes disso, havia pouquíssima procura. Não é coincidência o fato que 5 de junho seja justamente o dia em que começou a ser noticiado o desaparecimento de Dom e Bruno na Amazônia. Não é difícil imaginar como uma mente lavada pelo bolsonarismo possa juntar os pontos e cravar que o jornalista e o indigenista estavam a serviço de ONGs estrangeiras em busca do ouro de Ratanabá.

“Busquem conhecimento”, aconselhou o ET Bilú à humanidade. Foi o que Urandir fez ao criar o Ecossistema Dakila, um instituto de pesquisas presidido por ele que se apresenta como o centro que descobriu Ratanabá. A entidade não é composta por cientistas, mas por amadores dispostos a provar as conspirações malucas de Urandir.  É uma organização que não tem vínculos com nenhuma universidade, órgãos oficiais de pesquisas e não encontra respaldo na comunidade científica.

Apesar disso, a turma de Dakila sofre de uma megalomania própria dos picaretas. Segundo o seu site, Dakila é “o farol do desenvolvimento na fronteira tecnológica mundial e a luz pioneira que levará a humanidade pelo caminho do esclarecimento cientifico-tecnológico”.

O alinhamento com a ideologia bolsonarista do instituto ficou clara durante a pandemia. O Dakila impulsionou o movimento antivacina e promoveu cloroquina e ivermectina para o tratamento de covid. Para Urandir, não há comprovação científica que as vacinas combatem covid. Segundo ele, “a tal pandemia se tornou uma arma biológica contra a população, além de muitos estarem tirando proveito financeiro da situação. Pessoas desinformadas estão caindo na armadilha, pois a lavagem cerebral é muito bem feita através de vários meios de comunicação”.

Em agosto de 2020, no auge da pandemia, o governo Bolsonaro, representado pelo então secretário de Cultura Mário Frias, recebeu o farsante do ET Bilú em seu gabinete com todo respeito e seriedade do mundo. Quem o levou foi o deputado bolsonarista Roberto Alves de Lucena, do Republicanos, pastor evangélico muito próximo do presidente. Bolsonaro o recebeu muitas vezes no Planalto e já o convidou para integrar uma comitiva de uma viagem presidencial. Na reunião, Urandir pediu apoio dos órgãos governamentais. Mário Frias demonstrou grande interesse nas pesquisas fajutas do Dakila e prometeu ajudar.

Nesta semana, dois anos depois da reunião, Frias aproveitou o boom do assunto nas redes para divulgar mais uma vez a reunião feita com Urandir. Numa série de postagens no Twitter, Frias garantiu que os estudos de Dakila podem revelar “a maior descoberta dos últimos tempos!” e que o instituto contou “com todo apoio do Exército, das Forças Aéreas, da Defesa Civil, do Ministério da Defesa e até do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional)”.

O ex-secretário de Cultura ainda usou seu mau português para dizer, no entanto, que não há verbas públicas patrocinando os delírios de Urandir: “não houveram [sic] aportes financeiros do governo federal”. Como se sabe, estamos em ano eleitoral e o ex-canastrão de Malhação concorrerá a uma vaga de deputado federal. Ele não poderia perder a chance de surfar no algoritmo do assunto do momento.

Urandir não é apenas mais um picareta que espalha conspirações. É um empresário que usa o seu instituto para alcançar visibilidade e alavancar seus negócios em diversas áreas. O chamado Ecossistema Dakila abarca uma série de empreendimentos de Urandir, como a Pantanal Trading, uma “trading para facilitar a exportação e importação nos Emirados Árabes Unidos”; a Air Pantanal, uma suposta companhia aérea de luxo; a 067 Vinhos, uma marca de vinhos, a Kion Cosmetics, que comercializa cosméticos feitos a partir de uma argila especial.

Ele é também o fundador de Zigurats, uma comunidade da cidade de Corguinho, Mato Grosso do Sul, voltada para estudos sobre alienígenas e sobre a Terra convexa. A moeda oficial da comunidade é o BDM, uma criptomoeda altamente suspeita. A empresa BDM Digital é a empresa que cuida dos negócios com bitcoin de Urandir. Além dessas há outras empresas, todas com a mesma aparência duvidosa e a credibilidade conferida pelo inventor do ET Bilú.

Mário Frias, portanto, não abriu as portas do governo federal apenas para a conspiração de Ratanabá, mas também para os negócios de Urandir. A imprensa também vendeu espaço a divulgar essas empresas duvidosas. O portal G1, do grupo Globo, vendeu grandes espaços publicitários para os negócios. Só o seu bitcoin recebeu 12 informes publicitários, escritos com linguagem jornalística. Apesar do aviso de que se trata de um espaço publicitário, o tom jornalístico do texto certamente faz com que muitos incautos acreditem que se trata de uma reportagem. E é justamente esse o público-alvo do empresário bolsonarista.

Urandir possui contatos com muitos políticos aliados do presidente, principalmente os do Mato Grosso do Sul, onde ganhou o título de cidadão campo-grandense. Na cerimônia, o vereador bolsonarista Antonio Cruz, autor da homenagem, afirmou que o pai do ET Bilú “é um homem de visão futurista que vem criando empreendimentos que geram renda e postos de trabalho e que vem tendo seu trabalho reconhecido por diversos organismos públicos, entre os quais câmaras de vereadores de vários municípios”.

Grandes influencers e páginas de fofoca, claramente brifados, passaram quase que simultaneamente a divulgar a história da cidade perdida. Não sejamos inocentes. A coisa é direcionada e, muito provavelmente, financiada. Famosos bolsonaristas, como o ator Sandro Rocha, passaram a divulgar a conspiração de Urandir em suas redes. Rocha ganhou fama no papel de miliciano em Tropa de Elite e, mais tarde, aproveitaria a visibilidade para ser um dos principais divulgadores de pirâmides financeiras como a Telexfree e a BBom. Ele também é alvo de uma investigação por um golpe milionário dado através de uma suposta empresa de compra e venda de diamantes.

Esse homem bom é um dos principais divulgadores da picaretagem da cidade inventada por Urandir. Ele já gravou uma live com os pesquisadores do Instituto Dakila e tem produzido uma série de vídeos sobre Ratanabá em seu canal, além de ter dado entrevistas para grandes canais para divulgar o delírio. Em uma delas, perguntou “você acha que a Amazônia é a busca incessante do mundo inteiro por quê? Por causa das queimadas? Por causa das florestas?”, numa clara insinuação de que a busca pela Amazônia é por causa da riqueza de Ratanabá que, segundo ele, “daria pra deixar todo brasileiro milionário”.

O impulsionamento recente da lenda de Urandir contribuiu para reforçar a retórica bolsonarista sobre a região amazônica. Quem poderá salvar Ratanabá e a Amazônia das garras das ONGs estrangeiras? Certamente o mito, o messias, o grande patriota que há anos vem nos alertando sobre os interesses internacionais sobre a região.

Além de servir como uma luva aos interesses eleitorais do presidente, colocar Ratanabá em pauta nesse momento ajuda a ofuscar a omissão do governo nas investigações dos assassinatos do jornalista inglês e do indigenista brasileiro. Serve também para atender aos interesses eleitoreiros de políticos bolsonaristas e conferir grande visibilidade aos negócios do empresário Urandir.

Ratanabá é o puro suco de lisergia bolsonarista. Neste sábado, Jair Bolsonaro desfilará sorridente em uma motociata na capital do Amazonas, poucos dias depois da confirmação dos assassinatos de Dom Phillips e Bruno. É um tipo de sadismo que deve fazer Olavo de Carvalho sorrir no inferno.

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