Em apenas 15 dias, a maior cidade do interior brasileiro, Campinas, foi alvo de dois ataques nazifascistas, um tipo de violência que cresce no país encorajado pelo discurso de ódio da extrema direita e de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro.
Entre o final de abril e o começo de maio, o Instituto de Filosofia e Ciência Humanas da Unicamp foi pichado com símbolos nazistas e os trabalhadores e clientes de um bar próximo à universidade sofreram agressões físicas e insultos racistas. Um dos agressores chegou a atirar com arma de fogo, segundo testemunhas, e ostentava uma suástica.
A repercussão dos ataques estimulou 22 dos 33 vereadores campineiros a criarem uma Comissão Parlamentar de Inquérito, batizada de CPI Antifascista. Ela foi instalada em 6 de junho.
“A gente está falando de grupos que pregam o extermínio, fazem ações violentas e têm crescido no Brasil. A gente precisa dar uma resposta política, achar o nexo entre as coisas”, me disse a vereadora Mariana Conti, do Psol, eleita presidente da CPI.
A comissão investiga as estruturas, membros, atuação dos grupos extremistas e, principalmente, se eles mantêm vínculos com partidos políticos e movimentos de extrema direita.
Em entrevista ao Intercept, a parlamentar avaliou que esses grupos saíram das sombras e se organizam em um movimento reacionário contra o avanço da representatividade de lideranças LGBTQIA+, feministas e negras.
“O bolsonarismo fez isso. Bolsonaro organizou isso, porque ele canaliza e organiza politicamente esse conjunto de grupos que têm diferentes formas de manifestação na extrema direita”, afirmou Conti.
A CPI deve se apoiar nos estudos da pesquisadora Adriana Dias, uma das principais especialistas no tema. Foi ela quem encontrou uma carta do então deputado Jair Bolsonaro replicada em um site nazista, como o Intercept revelou no ano passado.
Pelas regras da Câmara de Campinas, a CPI não tem poder de realizar quebras de sigilo ou determinar busca e apreensão. Por isso, irá buscar o apoio das polícias e do Ministério Público.
‘A gente sabe que existe essa tendência no Brasil [da violência], mas com o governo Bolsonaro isso tem respaldo institucional.’
Apesar de reconhecer que terá dificuldades devido à contaminação desses órgãos pelo bolsonarismo, Conti falou que mantém contato com policiais dispostos a apoiar a investigação e que estabelecerá uma relação institucional com as forças de segurança. A CPI é composta por sete vereadores e tem duração de 90 dias, que podem ser prorrogados por igual período.
No último dia 22 de junho, após a entrevista e na véspera da primeira audiência da CPI, um homem ligou para o gabinete da vereadora para ameaçar a parlamentar e suas auxiliares. Segundo ela, o agressor costuma frequentar a Câmara. Ela suspeita que ele tenha transtornos mentais e faça ameaças orientado por vereadores da extrema direita. Conti me disse que, por orientação de sua advogada, não revelaria o nome do agressor e dos parlamentares com que ele tem relação.
“Ele ligou no gabinete e fez as ameaças, falando que se não parasse de falar mal do Bolsonaro o bicho ia pegar para o meu lado”, disse a vereadora. Como esta mesma pessoa já ameaçou o gabinete de Conti, ela estuda quais medidas legais tomará.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Intercept – A CPI foi criada para investigar grupos neonazistas e fascistas em Campinas, autores de ataques na Unicamp. O que significam esses atos?
Mariana Conti – Essas ações não são isoladas. Campinas tem um histórico de outras ações, de pichação no Taquaral [principal parque da cidade] de símbolos que remetem ao nazismo e fascismo, muitas vezes menos conhecidos. Essa é uma estratégia que os grupos têm adotado, ao invés da suástica, que é o símbolo mais conhecido. A gente já teve pichações na própria Unicamp, em 2018, na biblioteca do IEL [Instituto de Estudos de Linguagem].
As pesquisas da professora Adriana Dias têm mostrado e mapeado o aumento desses grupos. Para além disso, houve situações na Câmara. Durante uma manifestação antivacina [no ano passado], a gente viu cartazes com símbolos do QAnon, um grupo supremacista branco [dos Estados Unidos], racista. A gente sabe que o fascismo e nazismo tem esse conteúdo. É uma miríade de elementos que se organizam nesses grupos de extrema direita. Não são movimentos desorganizados. Eles têm ideologia, sentido, pauta. Isso é o que queremos averiguar, achar o nexo entre essas ações e as possíveis relações políticas que existem entre esses grupos e partidos e figuras da política campineira.
Por que os alvos são a Unicamp e locais próximos de uma das principais universidades do país?
O conteúdo desses grupos têm vários elementos, mas existem pontos em comum: o ataque à esquerda, o anticomunismo, o ataque a grupos sociais como os da negritude, os LGBTQIA+, as mulheres. Na universidade, onde houve um grande movimento para adotar cotas raciais, há um processo de popularização e diversificação da comunidade. Isso faz dela um alvo na medida em que se torna mais plural. O fato de a universidade ter movimento por cotas [para pessoas] trans diversifica o ambiente da universidade e traz grupos sociais que são marginalizados para o protagonismo. Isso incomoda grupos que, na verdade, pregam o extermínio de quem veem como inimigos: mulheres, pessoas LGBTQIA+, migrantes, imigrantes, negros, indígenas. Não é à toa que o ataque [a tiros] no Bar do Ademir, em frente à moradia estudantil, foi dirigido contra trabalhadores que atuam no bar e são imigrantes haitianos. Os relatos que temos é de que as pessoas [autoras dos ataques] imitaram macacos. São ataques racistas. É um movimento reacionário ao fato de que, graças ao processo de luta, de organização, a universidade está passando por um processo de diversificação e dando protagonismo a esses grupos sociais.
A Unicamp mostrou disposição em colaborar com a CPI? Os casos que aconteceram ali podem ser de autoria de alunos da própria universidade?
Uma das deliberações da CPI foi fazer uma conversa institucional com a reitoria e com a Comissão de Direitos Humanos da Unicamp. Pessoalmente, penso que a Unicamp precisa ser mais incisiva na posição que ela assume com relação a esses ataques. É bem possível que sejam de membros da comunidade universitária. Porque a gente sabe que ela é plural, tem uma série de posições políticas.
Vocês partem de uma lista de nomes de organizações suspeitas para começar este trabalho?
A gente parte das pesquisas que já existem. Queremos chamar uma série de grupos para estarem com a gente, o movimento negro, dos terreiros, dos LGBTQIA+, grupos feministas, comunidades haitianas, nordestinas, ciganas. Queremos convidar, inclusive, a comunidade judaica.
A CPI vai se debruçar sobre o financiamento desses grupos de ódio?
Sim, e também como eles conseguem estar nas redes sociais, como acontece o recrutamento, quem são as pessoas recrutadas. E colaborar com as investigações que já existem no Ministério Público e na Polícia Civil.
Há limitações jurídicas e legais para a atuação da CPI. Por isso é importante o apoio das polícias e do Ministério Público, dois órgãos muito contaminados pelo bolsonarismo. Vocês já tiveram contato com essas autoridades? Há dificuldades ou ajuda?
Uma CPI municipal não tem o poder de fazer quebra de sigilo telefônico e de sigilo bancário. Isso dificulta o trabalho, porque vai exigir que pensemos estratégias de atuação. Ao mesmo tempo, se tivéssemos esse poder, penso que seria muito difícil aprovar uma CPI com esse caráter. Tanto que é inédito, não vi outro lugar em que tenha sido instalada uma CPI para investigar grupos fascistas, embora a gente saiba que [casos] acontecem no Brasil inteiro.
Mas que tipo de apoio vocês esperam das polícias e do Ministério Público?
A gente sabe que houve uma grande contaminação das forças de segurança em geral pela ideologia da extrema direita. O bolsonarismo fez isso. Bolsonaro canaliza e organiza politicamente esse conjunto de grupos que têm diferentes formas de manifestação na extrema direita. A gente sabe que existe essa tendência no Brasil [da violência], mas com o governo Bolsonaro isso tem respaldo institucional.
Isso pode ser uma dificuldade para CPI?
Pode, com certeza. Mas conhecemos e temos relações com grupos de policiais antifascistas. E é claro que policiais que discordam dessa abordagem, que questionam, se incomodam com essa ação de violência, estão em uma posição defensiva internamente na corporação. Existem perseguições e uma série de coisas que acontecem dentro das corporações. Vamos ter que elaborar uma estratégia de fazer uma relação institucional com a Polícia Civil, vamos procurar o delegado responsável pelos casos, fazer uma visita institucional. A extrema direita não é uma unanimidade. A polícia que mais mata é também a que mais morre no mundo.
Para fazer a CPI, vocês conseguiram a assinatura de 22 dos 33 vereadores campineiros. Por que um terço deles não assinou o requerimento?
Muitas vezes não tem justificativa, né? Teve um argumento de que vereador não é investigador de polícia. A manifestação pública que aconteceu contra a CPI foi de um vereador, o Marcelo Silva, que é declaradamente bolsonarista. Ele falou que era uma propaganda da esquerda.
É curioso que ele [o vereador Marcelo] é de origem judaica. Usou isso como argumento, como se só ele tivesse legitimidade para fazer algo. A professora Adriana Dias, que também é de descendência judaica, já explicou que esse argumento é usado como forma de se legitimar.
A extrema direita é o ponto do espectro político em que fascistas e neonazistas se encaixam. Em Campinas, há uma representação muito forte da extrema direita, principalmente com a família Santini, que tem um secretário [do Ministério da Justiça] em Brasília e tinha um vereador na cidade. Esses grupos de extrema direita ligados ao bolsonarismo trabalharam contra a criação da CPI?
Os vereadores declaradamente bolsonaristas não assinaram a CPI. São três: Major Jaime [do Progressistas], Marcelo Silva e Nelson Hossri [ambos do PSD]. E o Marcelo falou contra a CPI na tribuna. Mas foi curioso, um acaso, que no dia em que o requerimento da CPI foi lido, havia um ato organizado pelos bolsonaristas contra o passaporte sanitário. A esquerda foi xingada. Eles estavam raivosos, protestaram, xingaram, mas a CPI foi instalada.
A gente vê que o movimento antivacina, organizado e orquestrado pelo governo Bolsonaro, serviu como elemento de organização da extrema direita. E isso que precisamos identificar: existe vínculo entre grupos que estão cometendo violência fascistas, usando símbolos nazistas, com esses grupos? Estão se organizando politicamente para disputar pautas na cidade? Existe vínculo? Qual é?
Com a extrema direita é dado que esses grupos são identificados, mas com grupos políticos mais tradicionais, conservadores, já é possível identificar ligações?
São hipóteses, isso que a gente quer verificar.
As hipóteses levam a esses grupos conservadores, bolsonaristas?
A gente parte do mapeamento que a professora Adriana Dias colocou. E ela mesma disse, em uma entrevista ao Intercept, que encontrou um site de cunho neofascista que tinha um banner para o site do Bolsonaro. O que acho surpreendente é como essas questões são tratadas como menores, não é dada a devida importância para esses fatos da política, das instituições. Um dos motivos pelo qual pedi a abertura dessa CPI é porque incomoda muito que você não tenha respostas políticas. A gente está falando de grupos que pregam extermínio, fazem ações violentas e têm crescido no Brasil. As aproximações deles com grupos políticos organizados, com canais legais, está aí. A gente precisa dar uma resposta política, achar o nexo entre as coisas. As instituições não respondem, esse silêncio é muito grave.
Vai ser um desafio a gente caminhar nesse sentido. Com as limitações legais que tem uma CPI municipal, com as resistências que existem, ameaças e intimidações.
Em Campinas, está a Escola de Cadetes do Exército, onde Bolsonaro estudou por algum tempo e boa parte dos militares estudam antes de ir à Academia das Agulhas Negras. De alguma maneira a CPI tem interesse em olhar para o Exército? Vai procurar ouvir a Escola de Cadetes?
É uma hipótese, não havíamos pensado nisso ainda. Mas é uma possibilidade. A gente sabe que no Exército há núcleos de extrema direita. O próprio Bolsonaro é de um grupo que não queria o fim da ditadura, que atuou contra a transição, a anistia, faz saudações à tortura, a torturadores. A gente sabe que ali é vespeiro. Vamos ver o que a gente consegue.
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