A Igreja Universal do Reino de Deus, liderada pelo bispo Edir Macedo, recebeu R$ 33 bilhões somente em doações bancárias, entre 1º de janeiro de 2011 e 31 de julho de 2015. Em valores corrigidos pela inflação, a soma chega a R$ 42 bilhões.
As informações constam em relatório elaborado pelo Laboratório de Tecnologia contra Lavagem de Dinheiro, subordinado ao Centro de Apoio Operacional à Execução Ministério Público de São Paulo. O CAEx, como é chamado, reuniu os dados após a quebra de sigilo bancário da Universal, no âmbito de um inquérito policial aberto em 2014. O documento era desconhecido do público até agora.
Determinada pela 4ª Vara Criminal de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, a quebra de sigilo fez parte de uma investigação sobre lavagem de dinheiro, associação criminosa, estelionato, sonegação fiscal e crimes contra a ordem econômica e relações de consumo. A apuração tinha como alvo principal um empresário ligado à Universal: Michel Pierre de Souza Cintra. Em entrevista exclusiva ao Intercept, ele afirmou ter operado um esquema de lavagem de dinheiro para a igreja.
Uma outra investigação derivada que tinha como foco o fluxo financeiro da Universal foi arquivada no ano passado.
O relatório mostra que a Universal movimentou R$ 33,3 bilhões em operações de crédito e R$ 33,3 bilhões em transações de débito. As maiores movimentações registradas são relacionadas ao Banco Renner – hoje Digimais –, também do bispo Edir Macedo.
O relatório do CAEx, é bom observar, contabilizou apenas as movimentações bancárias da Universal. No total de R$ 33 bilhões depositados entre janeiro de 2011 a julho de 2015 não estão incluídas as doações em dinheiro vivo dos fiéis, a maior parte arrecadada nos dízimos e ofertas. A maioria dos seguidores da Universal é de origem humilde e não tem conta bancária, segundo ex-bispos e pastores da instituição ouvidos pelo Intercept.
A Universal foi procurada para comentar as informações do relatório, mas não respondeu aos questionamentos do Intercept.
Tavolaro e os Crivella
O relatório do CAEx traz uma análise técnica da movimentação bancária da Igreja Universal, do empresário Michel Pierre de Souza Cintra, de sua esposa Viviane Boffi Emílio e de outros sócios e “laranjas” de suas 12 empresas criadas entre os anos de 2005 a 2015.
Condenado em diversas ações a mais de 70 anos de prisão, Cintra cumpre pena no presídio de Tremembé, na região do Vale do Paraíba, no interior paulista, desde 2016. Ele disse ao Intercept, em entrevista na cadeia, que doou mais de R$ 20 milhões à igreja desde 2005.
O empresário disse que cometeu os crimes pelos quais foi condenado “sob a influência” do império de Edir Macedo. Agora, ele move uma ação estimada em R$ 22 milhões contra a Universal, pedindo a anulação de suas doações e uma indenização por danos morais. No processo, Cintra afirmou que todos os atos pelos quais foi responsabilizado teriam sido “pensados, planejados, arquitetados, organizados e colocados em prática pela Igreja Universal do Reino de Deus ou por ordem dessa”.
O relatório do CAEx dá uma ideia de como funcionam as grandes movimentações financeiras da igreja. O maior beneficiário de recursos vindos da Universal foi o Banco Renner, hoje batizado como Digimais: foram R$ 16,8 milhões enviados à instituição no período analisado.
A quebra de sigilo detectou ainda na conta da Universal depósitos da TV Record do Rio de Janeiro, no valor de R$ 1,36 milhão; da Rádio Record de Campos, de R$ 27 mil; do jornalista Douglas Tavolaro, ex-vice-presidente da TV Record, de R$ 13,8 mil; e de Eris Bezerra Crivella – irmã de Edir Macedo e mãe do bispo da Universal e ex-prefeito do Rio, Marcelo Crivella –, de R$ 12,8 mil.
Também aparece na lista um depósito de R$ 12 mil da empresa Crivella Produções Artísticas e Culturais, da filha do ex-prefeito do Rio, Rachel Jane Crivella, e vários outros de empresas ligadas ao grupo Universal.
O império econômico de Edir Macedo reúne mais de 100 empresas, entre rádios e TVs, portal, jornais, banco, seguradora, financeira, hospital, plano de saúde, logística em transporte, segurança patrimonial, bebidas e outras.
Com um atraente e repetitivo discurso aos fiéis que mescla autoajuda e empreendedorismo, a Universal é adepta da Teologia da Prosperidade, doutrina segundo a qual os discursos de defesa da prosperidade e as doações a Deus aumentam a riqueza material. O cristão, de acordo com essa tese, não foi colocado no mundo para ser um sujeito pobre, infeliz ou sofredor, pois Jesus veio à terra não para fazê-lo sofrer, mas para enriquecê-lo, trazendo prosperidade e abundância.
O que entra, sai
Cintra afirmou ao Intercept que doou mais de R$ 20 milhões à igreja desde 2005. O Judiciário comprovou um total de R$ 2,7 milhões em doações feitas por ele entre 2011 e 2015. O empresário, no entanto, diz que esse valor chega a R$ 4,2 milhões, incluindo outras doações de duas de suas empresas. Segundo Cintra, essas operações seriam uma forma de lavar dinheiro.
A quebra de sigilo mostra que as empresas de Michel de Souza Cintra chegaram a faturar R$ 250 milhões em quatro anos. A maior delas,a D&L – razão social da Pank, um site de comércio pela internet que vendia produtos eletrônicos –, fez um depósito na conta da Universal de R$ 1,68 milhão. A D&L também enviou R$ 156 mil para a Rádio e TV Record, além de R$ 18,8 mil para a Universal Computer 156 Ltda, empresa que nunca foi listada no grupo de companhias ligadas ao grupo Universal.
A mulher de Michel, Viviane Emílio, fez um depósito mais modesto para a igreja, no valor de R$ 20,9 mil.
A denúncia do Ministério Público de São Paulo e a sentença do juiz Lúcio Alberto Enéas da Silva Ferreira também mencionam que Cintra doou à Universal 14 veículos – nove deles de luxo e zero quilômetro, de marcas como BMW, Mercedes-Benz, Audi e Land Rover –, além de dinheiro vivo.
Na sentença, Ferreira fez menção a uma suspeita do Ministério Público de São Paulo de que o empresário receberia de volta parte do dinheiro que doava para a Igreja Universal. As investigações não avançaram, segundo Cintra, e essa suspeita não foi comprovada.
Cintra garante que os valores em espécie arrecadados pela Universal são ‘infinitamente maiores’.
Cintra negou receber parte dos valores de volta. Disse que recebia apenas “bonificações”, entre R$ 10 e R$ 20 mil, para custear suas despesas em viagens a templos da Universal que visitava pelo país, incentivando outros fiéis a fazer doações.
“O que eu fazia era lavagem de dinheiro. Mas eu fui condenado sozinho e a Universal, não”, reclamou o empresário ao Intercept.
O empresário chamou atenção para o fato de que nenhum valor arrecadado pela Universal permanecia em sua conta bancária. O que entrava, saía. “É a única empresa no mundo que arrecada 33 bilhões e 384 milhões de reais e gasta incríveis 33 bilhões e 379 milhões de reais. Ou seja, ela tem um caixa só de 80 milhões de reais no positivo. Se ela aplicasse todo o dinheiro, não precisaria mais arrecadar nada e viver de doação. No extrato do CAEx, tem créditos e débitos. A gente não sabe para onde vai isso”, comentou.
Cintra ainda garantiu que os valores em espécie arrecadados pela Universal são “infinitamente maiores” e ainda desconhecidos. “Como a maioria dos membros [fiéis] é gente simples e dá suas ofertas em espécie, parte desses valores permanece na igreja captadora e outra parte é remetida às catedrais de cada estado e transportada depois por pastores com escolta armada privada”.
Autor da denúncia contra o empresário, o promotor Aroldo Costa Filho explicou que a investigação sobre eventuais crimes praticados pela Igreja Universal foi encaminhada, a seu pedido, ao Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado, o Gaeco. Um inquérito foi aberto e acabou arquivado em 2021, “entre outras justificativas, porque o Michel nada quis declarar sobre a sua relação com a igreja”, disse o promotor, por meio da assessoria de comunicação do Ministério Público de São Paulo. Costa Filho não forneceu detalhes nem fez qualquer comentário sobre o relatório de movimentação financeira elaborado pelo Ministério Público.
O bispo mais rico do Brasil
Edir Macedo já respondeu a uma ação referente a lavagem de dinheiro que tramitou na 2ª Vara Federal Criminal de São Paulo até setembro de 2019, quando os crimes prescreveram. Segundo denúncia feita em 2011 pelo procurador da República Silvio Luis Martins de Oliveira e aceita no mesmo ano, Macedo e outros líderes da instituição religiosa – o bispo e ex-deputado federal João Batista Ramos da Silva, o ex-bispo Paulo Roberto Gomes da Conceição e a executiva do grupo Universal Alba Maria da Costa –, haviam formado uma quadrilha para lavar dinheiro da igreja.
Os líderes da Universal foram acusados ainda por evasão de divisas, associação criminosa, estelionato e falsidade ideológica. Em setembro de 2019, todos os crimes atribuídos não só a Macedo, mas também aJoão Batista da Silva prescreveram. Em fevereiro do ano seguinte, a justiça inocentou Paulo Roberto Conceição e Alba Maria.
Na época, a Universal atribuiu a ação à perseguição de autoridades judiciárias, considerou-as “completamente equivocadas” e “quase idênticas a outras que deram origem a processos e inquéritos julgados e arquivados”.
Entre 2003 e 2006, segundo o Ministério Público Federal, a Universal declarou ter recebido R$ 5 bilhões de doações – R$ 16 bilhões em valores corrigidos pela inflação. Apesar de ter imunidade tributária, ou seja, de não precisar pagar impostos, a igreja de Macedo declararia apenas parte do que arrecada, observou à época o MPF.
A Universal injeta anualmente grandes somas de recursos na TV Record, emissora de seu líder. Entre 2013 e 2016, os repasses variaram entre R$ 500 milhões e R$ 575 milhões. A igreja aluga o horário das madrugadas da emissora para veicular suas mensagens religiosas.
A revista norte-americana Forbes apontou Macedo como o bispo evangélico mais rico do Brasil, com um patrimônio de 1,1 bilhão de dólares em 2015. A Record, segunda maior rede de TV brasileira, teve o seu valor estimado pelo próprio Macedo em 2 bilhões de dólares.
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