Sexta-feira, fim de tarde. Entrei no Parque da Jaqueira, localizado entre bairros de alta renda, na zona norte do Recife. Quase simultaneamente, um grupo formado por sete jovens também chegou ao local e passou um pouco à minha frente. Olhei para eles, sorridentes e barulhentos, e percebi uma outra movimentação quase ao meu lado. Eram dois guardas municipais responsáveis pela segurança da área. Passaram a acompanhar os adolescentes. Apressei só um pouco o passo e cheguei mais perto deles. Todos usavam o uniforme do ensino público do estado.
Me apresentei, disse que era jornalista e questionei se eles tinham reparado na aproximação dos guardas. Beatriz, a única garota da turma, olhou para trás e riu, com cara de pouca surpresa. “Ah, é assim toda vez que a gente entra aqui.” Os seus colegas também não ficaram incomodados com os dois homens fardados que, ao perceberem que falávamos sobre eles, pararam por um instante e depois continuaram a caminhar mais lento. Chegamos na pista de corrida do parque. Peguei o número de Beatriz, ela anotou o meu, falamos mais um pouco sobre o episódio e nos separamos ali.
Fazia tempo que eu queria escrever sobre a relação entre farda da escola pública e desigualdade. Ter presenciado esse “ao vivo” foi o estalo para discutir uma questão apresentada há tempos para mim: em uma disciplina sobre reportagem que ministrei no curso de Comunicação Social da UFPE, onde atuo como professora e pesquisadora, a aluna Sarah Teodósio realizou em 2019 uma investigação sobre preconceito e uniforme escolar a partir de sua própria experiência. Na adolescência, ela foi impedida de entrar em um colégio particular em Recife, o Americano Batista, o mesmo no qual ela havia estudado durante dois anos, antes de ir para o ensino público estadual.
Até hoje, Sarah, autodeclarada parda, lembra quando a segurança tentou barrar sua chegada, gritando em alto e bom som que ela não poderia acessar o interior da instituição “com aquela farda”. Era fim do horário escolar e pessoas com fardamento de escolas particulares circulavam no local tranquilamente. “Entendi que o meu uniforme não era só uma identificação da escola, mas também um marcador social”.
Ela pediu para ir até o banheiro para trocar de blusa: havia aprendido o hábito de carregar outra peça de roupa na bolsa, algo bem comum entre estudantes de escolas públicas, como veremos a seguir segundo o relato da própria Sarah:
“Quando ingressei na rede estadual de ensino, uma das primeiras coisas que percebi foi um certo tipo de ritual envolvendo a farda: os ‘novatos’ esperavam o recebimento do material escolar e podiam frequentar as aulas usando camiseta branca, enquanto os veteranos usavam o uniforme dentro da escola. Mas havia algo curioso: durante os primeiros dias, percebi que, no horário da saída, os banheiros ficavam abarrotados de gente para trocar de roupa. Com o passar dos dias, fui observando a existência da ‘roupa para sair’, que nem sempre estava guardada dentro das bolsas. Elas apareciam amarradas nas alças das mochilas ou usadas por baixo da farda para facilitar o processo de troca. Este era – e é – um hábito pouco comentado. Eu tinha 12 anos e fui entendendo que a minha farda não era bem-vinda nos lugares. Ninguém me falou nada sobre isso: eu simplesmente aprendi. Um episódio que me fez refletir bastante aconteceu quando fui a uma papelaria com um grupo de amigos. Todos estávamos de farda de escola pública. Chegando no estabelecimento, ouvimos o barulho vindo de um grupo de estudantes de outra escola, privada. Havia um segurança posicionado na entrada. Me distraí olhando os produtos e de repente uma amiga me puxou. ‘Vamos embora, rápido’. Eu não havia entendido bem a situação até perceber que o segurança estava atrás de nós com rádio na mão e um outro acabava de chegar para nos ‘acompanhar’. O outro grupo de estudantes, em maior quantidade que nós, continuava a falar alto. Eles usavam uma farda azul como a nossa, mas, enfim, elas não eram as mesmas. Eram 9 escolas em um bairro nobre, Graças, e só havia uma escola pública. Fomos embora. Pouco foi dito entre nós, mas não precisava. Entendemos que usar a farda era perigoso.
Pessoalmente, percebi que o problema não era uma camisa de algodão com as cores da bandeira do estado: o problema era o lugar que eu ocupava agora. Durante os cinco anos que estudei em escolas públicas, presenciei e vivi diversas situações no mínimo vexatórias e algumas caberiam em um processo judicial. É tudo muito sutil: te cercam, te seguem, passam rádio. Mas também pedem para olhar tua mochila. Na rua, as pessoas atravessam, colam a bolsa no corpo. Se tem muitos estudantes ‘do estado’ juntos, já entendem como um arrastão. Fazer algo contra isso era quase impossível. Por isso, antes de sair de casa com meus cadernos, livros e canetas, colocava também uma blusa na bolsa. Era mais seguro assim.”
(…)
O que Sarah e os colegas perceberam bem era que o uniforme feito para padronizar e identificar crianças e jovens dos estabelecimentos de ensino público também carregava uma outra característica: o estigma. Por isso, para se livrar do peso dele, uma boa estratégia era (e continua sendo, entre muitas pessoas) só usar o fardamento dentro dos muros da escola, uma vez que, lá fora, ele funciona como uma espécie de marca-texto fluorescente, destacando quem o usa aos olhos de policiais, seguranças, transeuntes etc.
É interessante nesse sentido observar como esse estigma também pode diferenciar mesmo pessoas que carregam fenótipos associados às classes mais abastadas, aquelas que a polícia não costuma importunar, como relatou a modelo e atriz Isabella Santoni, ex-estudante de escola pública. Nascida na Baixada Fluminense, estudou em Copacabana, ambas no estado do Rio. “Quando ia pegar um ônibus [uniformizada] o motorista não parava; quando ia no shopping, a vendedora não atendia”, conta ela aqui.
Se uma garota branca e loura é rechaçada por sua aparente condição de pobreza – aquilo o que é sugerido, para muitos, pela blusa do colégio público –, podemos imaginar o que acontece no cotidiano de estudantes negras e negros. Aliás: não precisamos supor, como nos lembra o terrível episódio envolvendo um jovem de 14 anos no mesmo Rio de Janeiro. Falo a respeito logo mais.
Professora em duas instituições de ensino municipal e estadual pernambucanas, Jaqueline Silva também lembra dos tratamentos diferenciados e preconceituosos por conta do fardamento, boa parte deles vindos de estudantes de escolas privadas. “Quando encontrávamos alunos de escolas como o Nóbrega [instituição jesuíta privada e tradicional no Recife] nos pontos de ônibus, eles faziam piada conosco, falando que nas escolas deles não havia ‘esse negócio de greve’. Era uma coisa de classe mesmo: a escola privada significava um poder aquisitivo maior.”
Eram os anos 90, e ela estudava na Escola Estadual João Barbalho (onde dois de meus irmãos também estudaram), no centro de Recife. Hoje, como professora, lida diariamente com atos e relatos de estudantes, crianças e adolescentes, que às vezes alegam ser “um mico” usar o fardamento. A professora também associa o não uso do uniforme a uma vaidade que, segundo ela, é mais percebida entre as meninas, que optam diversas vezes por uniformes mais ajustados, conectados a uma moda, digamos, extra-classe. “Sou pessoalmente contra o uso obrigatório dos fardamentos”, diz ela, que não é acompanhada por diversos colegas. Um dos argumentos dos últimos para manter a obrigatoriedade é a segurança das/os estudantes, melhor identificados ao estarem com o fardamento (algo que não salvou o jovem Marcos Vinícius, como veremos). Uma outra questão – que também esbarra nos marcadores de classe – é que a farda consegue neutralizar parte das diferenciações calcadas nos hábitos de consumo da população estudantil: pelo menos em relação às blusas, todo mundo veste uma marca só.
Nas redes e nas galerias
Atualmente, uma série de fenômenos tem impulsionado de diferentes formas uma espécie de “rebranding” do fardamento escolar no imaginário nacional: nas redes sociais TikTok e Instagram (com destaque para a primeira), os vídeos de Luiz Henrique Galvão (@luiizof__) e Anthony Tralha (@anthonytralha) tornaram o uniforme do ensino público pernambucano em verdadeira celebridade, como escreveu o repórter Emmanuel Bento neste texto aqui.
Luiz, um jovem de Caruaru, percebeu que seus vídeos dançando o passinho viralizavam ainda mais quando ele estava usando o uniforme escolar. Já Tralha, outro mestre da mesma dança, também ajudou a impulsionar a roupa usando-a em seus vídeos super compartilhados –mesmo não estudando mais na escola pública, ele entendeu o peso simbólico da camisa.
Outro vídeo, este gravado em agosto do ano passado no interior de uma escola do Sertão de Pernambuco e disseminado para milhões de pessoas, mostra uma dupla de estudantes (Hugo Moreira e Thamires Lacerda) usando a farda escolar ao som de “Rolê”, hit de Tarcísio do Acordeon e Marcynho Sensação. Foram mais de 50 milhões de visualizações só no TikTok. O peso do fardamento é tão grande nas redes que a blusa já ficou conhecida como “A farda do TikTok”, como mostra esse vídeo de Victor Melo.
Essa visibilidade positiva fez com que, também fora das redes, o uniforme ganhasse um status importante principalmente para pessoas que se sentiam, como Sarah, alijadas socialmente justamente por usarem a farda da escola pública. É o caso de Bruno Barboza de Souza, o Brunox, 19 anos, que mora em Ibimirim, no Sertão pernambucano, e estudou durante toda a vida em escolas públicas. Uma prática comum, conta ele, era passar a farda de irmão para irmão. “Onde moro, 90% das famílias que conheço tem uma dessas em casa. Se não tem, doou para alguém carente. Dificilmente você vai ver alguma farda dessa jogada, a não ser que ela esteja muito acabada mesmo. Terminei meus estudos aos 17 anos e até hoje tenho a minha blusa guardada”. Em suas redes, ele usa, como centenas de jovens que miram a fama através da internet, o uniforme “da moda” para gravar conteúdo. “É a camisa mais bonita do Brasil”, escreveu ele no Instagram.
É preciso dizer que os uniformes escolares ganharam o debate público bem antes do boom entre jovens tiktokers, logo após o fardamento do ensino municipal do Rio de Janeiro passar a ser objeto de desejo de turistas. Em 2019, um vídeo que mostrava um rapaz comprando uma camisa distribuída gratuitamente para estudantes por R$ 150 viralizou. Em 2018, uma matéria mostrou que fardamentos dos ensinos municipal e estadual do Rio eram vendidos em uma feira em Assunção, no Paraguai. Uma busca rápida em sites mostra que as fardas cariocas continuam sendo objeto de desejo, sendo, por exemplo, vendidas entre entre R$ 19,90 e R$ 32 em uma loja na Shopee. Na OLX, camisas do ensino público pernambucano também se tornaram comuns.
Com o episódio do turista, um debate importante foi levantado: como pensar o uso do fardamento enquanto elemento “cool” por pessoas que o utilizam não no cotidiano, mas como uma espécie de performance fashionista (levando em consideração aqui o valor político da última)? Melhor dizendo: existe um abismo entre o corpo que precisa usar o fardamento cotidianamente e aquele que pode escolher quando e como usá-lo, e não só: em que ambientes esse fardamento circulará. O que ele significa em uma adolescente negra caminhando em um shopping não é o que ele significa em um rapaz branco dançando em uma festa da classe média.
É impossível não relacionar esse ponto ao estudante Marcos Vinicius da Silva, de 14 anos, morto durante uma operação no Complexo da Maré, em 2018. Ele usava justamente a blusa desejada pelos turistas e se dirigia para a escola quando, assustado com tiros disparados durante a operação, resolveu voltar para casa. No seu caminho, no entanto, havia um blindado da PM. Foi de lá que saiu o disparo que matou o jovem.
Levado ainda consciente para o hospital, o adolescente perguntou para a mãe, Bruna da Silva: “Ele não viu que eu estava com roupa de escola?”. No sepultamento do jovem, ela, com a farda em punho, declarou: “Vou fazer desse pedaço de pano um instrumento de Justiça.”
A tensão entre corpos pretos, fardamentos escolares e violência foi discutida pelo artista Maxwell Alexandre, artista que iniciou sua carreira na Rocinha, Rio, e lá realizou sua primeira exposição, Pardo é papel. Em 2017, ele iniciou a série “Reprovados”, nas quais vemos jovens usando justamente o uniforme do ensino municipal carioca interagindo com a (temida) polícia.
Mas, no imaginário do artista – que aponta, nunca esqueçamos, para uma possibilidade de existências reais –, esses garotos são cuidados, protegidos. Nos quadros de Maxwell, aqueles meninos ficcionais estão vivos e possuem um futuro, assim como os vemos, na realidade, dançando e se divertindo nas centenas de vídeos que eles postam agora. Que possam caminhar pelo parque em paz.
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