Um pequeno risco marrom que rasga o verde da mata. É assim que uma pista de pouso construída no meio da floresta se parece quando vista por imagens de satélite. Lá embaixo, no chão da Amazônia, são estradinhas de às vezes meros 300 metros de extensão e uns 20 metros de largura, o suficiente para pousos e decolagens de aeronaves de pequeno porte.
Esses aviões, que pousam carregados de combustível e mantimentos, são peças-chave para compreender como garimpos do tamanho de dezenas de campos de futebol surgem em poucos meses no meio da maior floresta tropical do planeta. Esse é o começo de uma cadeia que termina em grandes mercados internacionais de ouro, com empresas globais de tecnologia na clientela.
Na Amazônia Legal, há 362 pistas de pouso e decolagem clandestinas — ou seja, sem registro na Agência Nacional de Aviação, a Anac —, em volta das quais há rastros de desmatamento por mineração de ouro. Mas o número mais do que triplica se considerarmos todas as pistas abertas sem autorização e registro na Amazônia Legal: 1.269 vias para pouso e decolagem. Esse número supera o de pistas registradas na região, que chegou a 1.26o em abril deste ano. Os dados foram consolidados em 1º de maio.
O levantamento inédito de pistas clandestinas na Amazônia é resultado de uma colaboração do Intercept com o Pulitzer Center e a organização não-governamental americana Earthrise Media, que reuniu os dados a partir de imagens de satélite da Amazônia Legal coletadas em 2021.
O número a que chegamos também inclui pistas encontradas na plataforma de mapas OpenStreetMap, pela ONG Instituto Socioambiental e por investigações policiais, além de estruturas identificadas visualmente ao longo da apuração. Consideramos para o número total todas as pistas que apresentaram indicação visual de que foram usadas em 2021 e 2022. Os dados foram analisados pelo Intercept em parceria com repórteres do jornal The New York Times, parceiro nesta publicação.
A demanda da mineração na Amazônia por transporte aéreo tem relação direta com a dificuldade de acesso aos locais onde são feitos os barrancos, como são chamados os garimpos. Uma viagem de estrada ou barco, que pode demorar dias ou semanas, é transformada em um trajeto de minutos ou um par de horas em pequenas aeronaves.
Onde tem ouro, tem pista
Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso, os três municípios do Pará que concentram a maior parte das permissões de lavra garimpeira, as PLGs, utilizadas para esquentamento de ouro, também reúnem a maior quantidade de pistas clandestinas relacionadas a desmatamento por mineração.
O cruzamento das coordenadas geográficas das pistas com alertas de desmatamento por mineração da plataforma Amazon Mining Watch, produzida pelo Pulitzer Center com a Earthrise Media, permite constatar que, das 234 pistas existentes nessas três localidades, há rastro de desmatamento por mineração em um raio de 20 quilômetros de 224 delas. Ou nada menos que 95,7% do total.
Não à toa, a região lidera o ranking brasileiro de destruição de áreas de mata nativa por garimpos de ouro. Segundo um levantamento da organização Mapbiomas, em 2020, Itaituba e Jacareacanga eram os líderes nacionais em desmatamento por mineradores, com 54.340 hectares tomados pela exploração de ouro, área maior que a de Maceió, capital de Alagoas. Em apenas 36 hectares se trata de mineração industrial. Considerando apenas os números de garimpo de ouro, as duas cidades paraenses somam mais de 50% da área desmatada em todo o país para essa finalidade.
Em 2021, a Agência Nacional de Mineração, a ANM, responsável por regular e disciplinar a exploração de jazidas minerais no Brasil, recebeu a declaração de R$ 4,6 bilhões em ouro extraído em Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso — 17% de todo o ouro declarado no país naquele ano. No entanto, como uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais e inquéritos da Polícia Federal já indicaram, nem todo esse ouro saiu de minas legalizadas. Para manter esse negócio bilionário funcionando, pistas sem registro são utilizadas largamente.
A antropóloga Luísa Molina pesquisa os avanços das atividades ilegais do garimpo em povos indígenas do Médio Tapajós, no sudoeste paraense. Ela me explicou como o produtor ilegal de ouro exerce seu poder na região e cobrou ações dos órgãos de controle. “Não são trabalhadores humildes que usam essas pistas, são grandes empresários. Se o governo quiser combater de verdade o negócio do ouro ilegal, tem que fiscalizar a cadeia logística por terra, rio e ar. Até porque essa logística não serve apenas para a economia do ouro ilegal, mas também para tráfico de drogas e armas”, afirmou Molina.
Esta reportagem faz parte do projeto Pistas do Desmatamento, que investiga os impactos ambientais relacionados a pistas de pouso clandestinas na Amazônia e conta com o apoio da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center. Saiba mais.
Anac acelera permissões de pistas
A Agência Nacional de Aviação Civil, a Anac, responsável por regular o setor no país, não parece disposta a fiscalizar as pistas irregulares. Até dezembro de 2021, o Código Brasileiro de Aeronáutica exigia que a construção de aeródromos demandava autorização prévia da agência, sob pena de multa – mas a agência pouco atuou para fazer valer a lei. De acordo com uma resposta que recebi em julho do ano passado, após um pedido feito por Lei de Acesso à Informação, a LAI, a Anac só emitiu seis multas por construção de pistas irregulares em todo país entre 2016 e 2021, nenhuma delas na Amazônia Legal.
Em nota enviada no início de julho, a Anac me informou que recebeu 49 denúncias sobre pistas clandestinas, operadores de aeronaves e pilotos na área da Amazônia Legal entre 2018 e 2021, e mais nove nos primeiros seis meses de 2022. De acordo com a agência, todos os casos passaram por apuração. Porém, considerando a resposta sobre multas aplicadas que recebi via LAI, nenhum dos 49 casos de 2018 a 2021 resultou em punição. Questionada sobre esses dados, a Anac mudou de discurso. As denúncias apuradas, aí, não seriam apenas sobre pistas clandestinas, mas também de aeronaves e pilotos que operavam voos irregulares.
A medida provisória 1.089/2021 do governo Bolsonaro deixou a vida de donos de pistas clandestinas ainda mais fácil. Desde 29 de dezembro, a Anac foi liberada do fardo que não parecia disposta a carregar. O artigo que exigia a autorização prévia da agência para a construção de pistas de pouso foi revogado na MP. A medida virou lei com a aprovação do Congresso, em maio, e a sanção presidencial no mês seguinte.
Questionei a Anac sobre as mudanças, e a agência reguladora me respondeu que “a autorização prévia para construção de aeródromo de uso público e privado continuam a vigorar, de acordo com a Resolução nº 158, de 13 de julho de 2010, que dispõe sobre a autorização prévia para a construção de aeródromos e seu cadastramento junto à ANAC”. No entanto, a mesma nota deixa escapar como a legislação ficou mais frágil: “Eventual ajuste regulamentar decorrente da ausência de exigência legal será estudado e passará por todo o rito normativo adequado”.
A alteração na legislação não afetou a exigência de que os voos precisam ser regulados pela autoridade aeronáutica. Mas até nisso o governo deu um jeitinho. O governo retirou indefinidamente as restrições de pouso e decolagem de vias sem registro na Anac, um presente para quem utiliza pistas clandestinas na Amazônia Legal. A mudança havia sido aplicada em julho do ano passado, por causa da pandemia de covid-19, para facilitar o atendimento de saúde de comunidades indígenas e ribeirinhas localizadas em regiões afastadas. Agora, virou definitiva.
Para o governo Bolsonaro, aliado de primeira hora do garimpo ilegal, o acesso livre a pistas clandestinas na Amazônia promove “o fomento regional, a integração social, o atendimento humanitário, o acesso à saúde e o apoio a operações de segurança”, que “precisam ser mantidos independentemente do caráter excepcional”.
Mas a realidade é bem diferente. Ao longo do trecho da BR-230, a Rodovia Transamazônica, entre Itaituba e Jacareacanga, é possível ver ao menos cinco pistas ativas de pouso e decolagem de pequenos aviões utilizados há anos por pilotos de garimpo. Três delas foram registradas pela Anac, no ano passado, após décadas na clandestinidade.
A mais antiga é conhecida como pista do 180, em referência à quilometragem da rodovia. A pista obteve o aval da Anac em agosto de 2021, mas opera desde a década de 1980 e, até hoje, funciona como uma escala para voos rumo a localidades mais afastadas para dezenas de pilotos de garimpo. Há até pousadas ao lado dela.
Em outubro do ano passado, quando estive no local para entrevistar pilotos para o mini-documentário Pilotos da Amazônia, do Intercept, vi ao menos 20 pousos e decolagens em apenas um dia, movimento equivalente ao do aeroporto de Maringá, no Paraná, cidade com 436 mil habitantes, Índice de Desenvolvimento Humano muito alto e o 50º maior PIB municipal do Brasil.
Pistas como a do 180 estão entre as 213 registradas pela Anac na Amazônia Legal em 2021, maior número de permissões da última década. É o triplo do total de novas pistas permitidas pela Anac em 2018, último ano do governo Temer, quando foram registradas 66 estruturas.
O governo Bolsonaro precisou de apenas quatro meses para superar esse número. Entre janeiro e abril de 2022, a Anac autorizou 76 pistas na Amazônia Legal. Uma das empresas que contou com as graças da agência foi a Gana Gold, que, após dois anos usando uma pista clandestina, conseguiu regularizá-la em janeiro sem precisar pagar qualquer multa à Anac. A pista serve de apoio a uma mina que foi embargada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama, e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o ICMBio, confirmados em decisões da Justiça Federal do Pará.
O procurador da República Gustavo Alcântara, do Ministério Público Federal de Santarém, lembra que pistas utilizadas pela Secretaria Especial de Saúde Indígena, a Sesai, seguem sem registro na Anac. Enquanto isso, pistas perto de locais com extração ilegal foram autorizadas pela agência.
“Existe um problema administrativo no governo federal, pois não parece haver um critério de avaliação sobre a função que a pista vai ter antes de ela ser aprovada pela Anac”, afirmou o procurador.
Mineradoras, políticos e lobistas
O cruzamento das localizações das 1.269 pistas clandestinas com dados públicos do Deter, o sistema de alertas de desmatamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, mostra que 72% das áreas desmatadas pelo garimpo estão onde sequer existe requerimento de mineração para ouro. Em outras palavras, se trata de garimpo ilegal, crime ambiental segundo o artigo 55 da lei 9.605/1998. Mesmo nos outros 28% em que a mineração teria chance de ser autorizada, em metade dos casos há irregularidades, com desmatamento fora do período autorizado pela ANM.
Consideramos neste levantamento a existência de desmatamento num raio de 20 quilômetros contado a partir do centro das pistas de pouso. Das 362 que se encaixam neste parâmetro, um dos casos mais graves é o da devastação de 10.541 hectares, o equivalente a mais de 14 mil campos de futebol juntos. Parte da área é objeto do requerimento minerário de número 850240/2003, feito em nome de André dos Santos. Ele chegou a obter uma autorização de pesquisa na área entre setembro de 2015 e setembro de 2018. Mas o Deter registrou alertas de desmatamento na região em março de 2021.
Além desse, há outros seis processos minerários em nome de Santos no perímetro de 20 quilômetros ao redor da pista. Todos têm ou já tiveram permissão da ANM para exploração, mas é possível verificar por imagens de satélite que o desmatamento ocorreu antes ou depois do período autorizado.
Com trânsito livre em Brasília, lobista atuou pelo licenciamento da Gana Gold, que extraiu R$ 1,1 bilhão em ouro de uma mina irregular no Pará.
Considerando todos os processos minerários para ouro em nome de Santos em Itaituba, município do sudoeste do Pará que lidera a produção do metal por atividade garimpeira no Brasil, o número de requerimentos sobe para 16. No site da ANM, o minerador protocolou um documento informando como seus telefones e e-mail os dados de um lobista da mineração, o engenheiro florestal Guilherme Aggens.
Por telefone, Aggens me disse que representa André dos Santos em medidas administrativas na ANM, e que por isso o seu telefone celular foi indicado por Santos. Aggens afirmou, ainda que “não tem conhecimento” sobre a pista de pouso.
Com trânsito livre em Brasília, Aggens atuou diretamente no licenciamento irregular da empresa Gana Gold, que extraiu R$ 1,1 bilhão em ouro de uma mina irregular instalada na Área de Proteção Ambiental do Tapajós, uma unidade de conservação federal localizada entre os municípios de Itaituba, Jacareacanga e Trairão.
O Intercept revelou o caso com exclusividade em setembro do ano passado. Poucos dias depois, o ICMBio embargou a mina. No final de março, voltei a reportar sobre a Gana Gold, desta vez mostrando a pressão política feita por ocupantes de cargos do alto escalão no governo Bolsonaro, em Brasília, para liberar a mineradora dos embargos ambientais de que fora alvo. Também mostrei como a empresa descumpria as sanções ambientais impostas em setembro. Em julho, uma nova operação da PF cumpriu mandados contra a Gana Gold, que teve as suas atividades suspensas e R$ 1,1 bi em bens bloqueados, além da prisão de seus sócios.
Na região do Tapajós, ao menos 105 pistas clandestinas estão localizadas não apenas perto de áreas com processos minerários para pesquisar ou explorar comercialmente reservas de ouro, mas dentro das áreas requeridas para mineração. Porém, ainda que seja um indício importante, isso não é suficiente para comprovar que os donos dos processos na ANM operam pousos e decolagens nessas pistas.
Dono de duas aeronaves, João Ivan Bezerra de Almeida tem cinco requerimentos em Itaituba para garimpar em áreas que já contam com pistas de pouso. Empresário do ramo da construção civil, Almeida disputou as últimas duas eleições municipais em Itaituba por PSDB e PL, respectivamente – queria ser prefeito. Ele perdeu, mas estava sempre acompanhado de empresários do setor aurífero.
Em 2016, Almeida recebeu uma doação de R$ 130 mil para sua campanha de Dirceu Frederico Sobrinho – 30% de total declarado pelo candidato à Justiça Eleitoral. Em 2020, Almeida teve como candidato a vice-prefeito Roselito Soares da Silva Filho, filho do ex-prefeito Roselito Soares. Pai e filho são sócios de empresas ligadas ao grupo da Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários Ourominas, a Ourominas DTVM.
Até mesmo mineradoras conhecidas assinam requerimentos de mineração em áreas já devastadas para a abertura de pistas clandestinas. Desde 1993, a gigante canadense Belo Sun é dona de um requerimento de lavra garimpeira na APA Tapajós. Na região, está a comunidade garimpeira Patrocínio, cuja abertura remonta à década de 1960. O processo minerário da Belo Sun teve autorização de lavra da ANM entre 2007 e 2014, mas isso não impediu que o garimpo seguisse aumentando nos anos seguintes, ao lado de uma pista de 800 metros de comprimento.
O requerimento minerário da Belo Sun na ANM registra, em outubro de 2020, que a empresa apresentou um pedido de cessão total de direitos, ou seja, a entrega da concessão que havia obtido a outra pessoa ou empresa. Ainda assim, o processo continua sob responsabilidade do grupo canadense, que tem como principal projeto no Brasil a exploração de uma mina de ouro entre Altamira e Senador José Porfírio, no Pará.
Belo Sun é uma das seis mineradoras signatárias de um acordo firmado com o governo paraense para beneficiar o ouro que extrai em uma refinadora recém-construída em Belém, capital do estado. O Intercept mostrou, em fevereiro, que um dos principais investidores na refinaria é um empresário belga condenado por fraude e lavagem de dinheiro em seu país – em negócios com ouro. No mês seguinte à publicação da reportagem, duas empresas ligadas ao empresário belga receberam sanções da Secretaria de Tesouro dos EUA.
Outra signatária do acordo com a refinaria de Belém que também pleiteia minerar em áreas com pistas sem registro é a mineradora Brazauro, que desde de 2010 pertence a grupos canadenses. Na região do Tapajós, oito pistas clandestinas estão localizadas em terras delimitadas em requerimentos minerários da empresa.
Enviei perguntas às duas mineradoras sobre as pistas clandestinas em áreas de requerimentos minerários pertencentes a elas, mas nenhuma respondeu até a publicação desta reportagem.
De garimpeiro a empresário da aviação
A Piquiatuba Táxi Aéreo é uma das empresas de aviação regional com maior volume de pagamentos em contratos com o governo federal para transporte na Amazônia Legal. O fundador, Armando Amâncio da Silva, que morreu em outubro de 2020, começou seus negócios como garimpeiro no final dos anos 1980. Dali, construiu uma das maiores empresas de táxi aéreo do país.
O Portal da Transparência informa que, desde 2014, a Piquiatuba já faturou mais de R$ 143 milhões em contratos com o governo federal. A maior fatia desse montante, R$ 107 milhões, é fruto de pagamentos feitos pela gestão Bolsonaro. Os serviços prestados pela empresa vão do transporte de equipes de saúde para atendimento em comunidades indígenas a apoio logístico às Forças Armadas.
Mas o governo federal não é o único cliente da Piquiatuba. A empresa também empregou seus aviões no apoio logístico a um garimpo ilegal do próprio Amâncio em Almeirim, norte do Pará. O barranco conhecido como garimpo do Limão fica em uma unidade de conservação de proteção integral, a Reserva Biológica Maicuru, e a apenas 10 quilômetros de distância de uma das bordas do território indígena Rio Paru d’Este. A informação é de uma investigação da Polícia Federal, a PF, deflagrada em outubro de 2020, poucos dias antes da morte do dono da Piquiatuba. Na operação, a polícia apreendeu na casa de Amâncio quase 45 quilos de ouro sem origem comprovada.
“Além de estar desacompanhado de documentação de origem, o modus operandi do requerido Armando Amâncio da Silva e o fato de ele ser responsável pela extração ilegal de ouro no Garimpo do Limão corroboram o caráter ilegal do ouro apreendido na residência do requerido”, afirma o Ministério Público Federal, o MPF, em ação civil pública apresentada no ano passado.
Para servidores federais que trabalham em órgãos de controle, proteção a terras indígenas e ao meio ambiente, a suspeita de que empresas contratadas pelo governo também prestem serviços a criminosos cria mal-estar e desconfiança em operações mais sensíveis.
“A Piquiatuba é a empresa contratada para fazer voos da Funai e de Saúde indígena em determinadas regiões do Pará, mas sabemos que ela também voa a serviço de garimpos. Se precisamos fazer um sobrevoo para identificar um garimpo ilegal dentro de terras indígenas, preferimos não chamar a Piquiatuba e tentar uma carona em aeronaves de outras instituições, pois sabemos que há um conflito de interesse envolvido”, me explicou um servidor da Fundação Nacional do Índio. Ele preferiu não ter o nome revelado para evitar represálias do governo.
A PF investigou os aviões que pousaram numa pista próxima ao garimpo chamado de Limão, entre 2015 e 2018. “Ao menos 182 voos” para a mina ilegal foram operados pela Piquiatuba, afirmam os policiais.
‘Piquiatuba Táxi Aéreo funciona como aparato fundamental da atividade criminosa, prestando apoio ao garimpo’.
Dois meses após a operação, a Justiça Federal atendeu a um pedido do MPF e bloqueou provisoriamente R$ 268 milhões do espólio da Piquiatuba e de seu fundador, para garantir o ressarcimento dos danos ambientais causados pelo esquema de garimpo ilegal. Mais de cem quilos de ouro foram retirados da mina ilegal, segundo a investigação.
Em fevereiro do ano passado, o procurador Gustavo Alcântara, do MPF, apresentou ação civil pública em que pede que a Piquiatuba e Amâncio sejam condenados a pagar quase R$ 400 milhões por venda ilegal de ouro, danos ambientais pela extração ilegal e danos coletivos aos povos indígenas da terra Paru D’Este. Na ação, o procurador explica como a empresa de táxi-aéreo que ganha milhões do governo federal também prestou serviços ao garimpo.
“Armando Amâncio da Silva fez com que sua empresa aérea, a Piquiatuba Táxi Aéreo, funcionasse como aparato fundamental da atividade criminosa, tendo sido registrada elevada atividade de aviões da companhia para a pista de pouso de apoio ao garimpo do Limão”, ele escreveu, na denúncia.
Conversei com o procurador Alcântara por telefone, e ele apontou um problema no combate a atividades ilegais que usam aeronaves na Amazônia: os equipamentos muitas vezes permanecem com os donos mesmo após operações de órgãos de controle.
“Há jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre a perda de qualquer bem que seja utilizado para crime ambiental. Aeronaves que forem apreendidas em situação que se configure crime ambiental, como é um garimpo ilegal, deveriam ser tomadas imediatamente do dono. Mas nem sempre isso acontece”, disse o procurador.
Para a defesa de Amâncio e da Piquiatuba Táxi Aéreo, um conhecido escritório de advogacia de Brasília foi acionado: o Catta Preta Advogados. Entre seus clientes, o advogado Paulo Emílio Catta Preta de Godoy tem Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro no caso das rachadinhas. Ele também representou legalmente o miliciano Adriano da Nóbrega, morto em 2020, um dos suspeitos por ter participado do assassinato da vereadora Marielle Franco e de Anderson Gomes em março de 2018.
Catta Pretta me respondeu que todo o ouro de Amâncio foi “regularmente extraído de áreas com as necessárias PLGs”. Ele disse ainda que a Piquiatuba Táxi Aéreo não tem relação com negócios de ouro com DTVMs, e que o bloqueio judicial nas contas da Piquiatuba e do espólio de Amâncio foi reduzido a R$ 13 milhões.
Sobre os 182 voos de aeronaves da Piquiatuba para a operação de garimpos ilegais, o advogado afirmou que a empresa “não exerce ou contribui com nenhuma atividade relacionada ao garimpo”. Em janeiro de 2021, ainda durante a investigação, a defesa de Amâncio e da Piquiatuba chegou a se manifestar na justiça informando que as viagens identificadas pela PF seriam para “pistas não homologadas localizadas em aldeias indígenas, na execução de contratos públicos de transporte no interesse da saúde indigenista”.
As regras de aviação brasileira não permitem planos de voos para pistas não homologadas. Apesar do garimpo do Limão ser ilegal, a pista próxima ao barranco chegou a ter homologação ativa na Anac entre 2011 e 2018, então poderia receber voos oficiais. Segundo a defesa, a empresa indicava essa pista nos planos de voos, mas as viagens seriam para as pistas sem homologação em terras indígenas na região. Porém, na ação do MPF, o procurador Alcântara explicou que a defesa da Piquiatuba seria “manifestadamente improcedente”, pois o contrato para atendimento nas terras indígenas na região só foi assinado em agosto de 2018, após o período analisado pela PF.
Onde tem pista, o garimpo é maior
Chefe do núcleo de perícia criminal da Polícia Federal no oeste do Pará, onde trabalha desde 2015, Gustavo Geiser participou das investigações sobre o garimpo do Limão e de vários outros casos relacionados à exploração ilegal de ouro na região do Tapajós. De acordo com Geiser, uma pista de pouso é um dos principais indicativos do tamanho da operação em um garimpo.
“Sempre que você imagina uma operação em um lugar como a floresta amazônica, é preciso pensar na logística da atividade. Construir e manter uma pista custa caro, então só há pistas em locais onde a extração [de ouro] é grande”, explicou o perito.
Na ação apresentada à justiça, o MPF afirma que o ouro extraído no Limão era declarado à ANM como oriundo de garimpos legais em Itaituba e Almeirim. Para isso, o ex-garimpeiro tornado empresário da aviação Amâncio contou com a colaboração da Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários Ourominas. A empresa é alvo de denúncias anteriores do MPF sobre esquentamento de ouro e chegou a ter R$ 72 milhões bloqueados pela Justiça Federal do Pará em 2018.
No esquema, o minério extraído em garimpo ilegal é levado até uma distribuidora de títulos mobiliários como a Ourominas, que declara em uma nota fiscal preenchida à mão ter comprado o metal precioso de donos de processos minerários de permissão de lavra garimpeira válidos na ANM.
Por incrível que pareça, essa declaração de compra manuscrita é tudo o que exige a Receita Federal, cuja norma sobre o tema tem mais de 20 anos. A informação consta num relatório produzido pela 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do Meio Ambiente e Patrimônio Cultural da Procuradoria da República, que auxilia procuradores do MPF em processos ambientais.
Publicado em 2020, o relatório menciona que a norma exige como documentos fiscais da cadeia do ouro apenas papel preenchido à caneta ou “papel-carbonado”. O MPF critica a fragilidade no controle nessa fase inicial do comércio do ouro e relaciona isso à “incidência de sonegação fiscal e lavagem de dinheiro no setor”.
Nas investigações sobre o garimpo do Limão, a PF identificou pelo menos cinco processos minerários legalizados de Itaituba e Almeirim em negociações entre Amâncio e a Ourominas. Imagens de satélite demonstraram não haver qualquer sinal de exploração nas áreas dos processos minerários informados como a origem do ouro negociado. Ou seja: o ouro vinha de outro lugar.
A escolha por minas intocadas em Itaituba e Almeirim para esquentar ouro parece não ter sido ao acaso. Entre 2019 e 2020, Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso concentraram 85,7% dos processos de lavra garimpeira de todo país utilizados para comércio pirata de ouro com indicação de origem em áreas que estão intocadas, com mata nativa, conforme apontou o estudo Legalidade da produção de ouro no Brasil, feito por pesquisadores da UFMG.
De acordo com a pesquisa, mais de um quarto das 174 toneladas de ouro produzidas pelo Brasil em 2019 e 2020 tem indício de origem ilegal, gerando um possível prejuízo ambiental de R$ 31,4 bilhões para o país. Esse documento foi utilizado pelo MPF para apresentar ações bilionárias contra as três principais distribuidoras de títulos mobiliários que atuam na região: Ourominas, FD’Gold e Carol DTVM.
Nas ações, os procuradores pedem condenações que somam R$ 10,6 bilhões e indicam que as três empresas negociaram 4,3 toneladas de ouro com origem falsa nos dois anos analisados pelos pesquisadores.
Do garimpo ao Vale do Silício
Para o esquentamento do ouro ser possível, é preciso que os donos das minas legalizadas de fachada colaborem. O que a Polícia Federal encontrou em muitos casos foram contratos de gavetas entre eles e as distribuidoras de valores mobiliários.
Ao comparar informações do inquérito sobre o garimpo do Limão e dados recentes da pesquisa sobre PLGs intocadas da UFMG,encontrei pelo menos dois donos de minas de fachada que declararam ter vendido para a Ourominas entre 2015 e 2018, período em que a empresa comprou ouro ilegal de Armando Amâncio da Silva, e que aparecem como vendedoras para a FD’Gold nos dois anos seguintes.
Durante as investigações sobre o garimpo do Limão, a PF apreendeu mais de 3 mil notas fiscais de compra de ouro realizadas pela Ourominas entre 2015 e 2018. Requerimentos de garimpo em nome de Edilene Bezerra Feitosa e José Antunes aparecem em 734 notas fiscais para a Ourominas. Elas totalizam quase R$ 11 milhões em negócios, segundo a investigação da PF.
Um das PLGs em nome de Feitosa, de número 851197/2013, nunca foi explorada, mas já rendeu R$ 3,2 milhões para a Ourominas, entre 2017 e 2018. Nos dois anos seguintes, o mesmo processo minerário de Feitosa rendeu R$ 8,4 milhões para a FD’Gold. Os dados de 2019 e 2020 são da pesquisa da UFMG e da denúncia apresentada pelo MPF do Pará no ano passado. Não consegui localizar Feitosa e Antunes. Não há qualquer número de telefone ou endereço de e-mail nos documentos de processos minerários deles na ANM.
Em nota, a Ourominas DTVM comunicou que não vai se manifestar porque “não figura no polo passivo (como réu) nas operações policiais citadas” nas perguntas que encaminhei no caso do Garimpo do Limão. Mas não é bem assim. Um posto de compra da empresa de ouro da Ourominas é citado nas investigações do Limão, e as mesmas notas fiscais de compra e venda de ouro serviram de base para uma ação civil pública do MPF contra a Ourominas DTVM, em maio de 2019.
As três empresas recordistas em compra de ouro com origem falsa são integrantes da Associação Nacional do Ouro, a Anoro. O presidente da Anoro e sócio-fundador da FD’Gold é Dirceu Frederico Sobrinho, figura conhecida no setor minerador e que é dono ou responsável legal de três requerimentos de mineração de ouro sobrepostos a duas pistas clandestinas do nosso levantamento.
No começo de maio, a PF apreendeu 78 kg de ouro em Sorocaba, no interior de São Paulo, com suspeita de origem ilegal. A carga, avaliada em R$ 23 milhões, foi transportada em um avião pequeno e estava sob escolta de policiais militares de SP. Dois dias depois, Frederico declarou que o ouro era de sua empresa, a FD’Gold, mas negou que a carga fosse ilegal.
Frederico tem bom trânsito no governo Bolsonaro, e sua ligação com políticos poderosos não para por aí. Em 2018, ele tentou ser o suplente do senador e candidato à reeleição Flexa Ribeiro, do PSDB do Pará. Ribeiro não se elegeu, mas não ficou desamparado. Ele ocupa atualmente um cargo de consultor na Anoro. Para o agora especialista em mineração, o Ibama tem que “educar” garimpeiros em locais de extração ilegal, não apenas multar.
Frederico também tem sociedade em uma mineradora, a Ouro Roxo, e teve participação direta na Marsam Refinadora de Metais até 2019. A empresa atualmente conta com a filha dele, Sarah Frederico Westphal, no quadro societário.
A Marsam Refinadora foi fundada em 1997, mas uma outra empresa de nome Marsam Metais S/A, de comércio e exportação de minério, havia sido criada em 1966. No começo dos anos 2000, José Inácio Cortellazzi Franco e Roberto José Steinfeld, primeiros diretores da empresa exportadora de minério, foram condenados por envolvimento no caso do socorro do governo de Fernando Henrique Cardoso a bancos durante a crise cambial de 1999.
É através de refinadoras como a Marsam que o ouro de origem duvidosa chega a empresas globais de tecnologia.
Steinfeld, ex-diretor do banco FonteCindam, foi condenado pelo Tribunal de Contas da União a devolver quase R$ 5 bilhões aos cofres públicos em conjunto com outras pessoas. Franco, então diretor do banco FonteCindam, foi condenado por crimes contra o sistema financeiro na segunda instância da Justiça Federal. A Receita Federal informa que a Marsam Metais fechou as portas em 2018, mas Franco atualmente é sócio de Frederico na Ouro Roxo.
Através das comercializadoras de ouro Reserva Metais e BP Trading, ambas ligadas a Frederico e suas empresas, a Marsam Refinadora presta serviços para a Casa da Moeda há pelo menos seis anos, refinando inclusive parte do ouro que foi utilizado para a fabricação das medalhas da Olimpíada do Rio em 2016.
Até agosto do ano passado, o site da Reserva Metais informava que o ouro comercializado pela empresa era uma “transação com a FD’Gold DTVM”, indicando como origem do metal vendido a empresa de Dirceu Frederico Sobrinho. Além disso, frisava que todas as barras eram fundidas pela Marsam Metais.
O trabalho de uma refinadora como a Marsam é fundir o ouro, retirando impurezas até que a barra esteja com 99,9% de metal puro. Dessa forma, o ouro vira um ativo financeiro e pode ser comercializado em todo o mundo. É assim que a mercadoria da FD’Gold, que tem origem duvidosa segundo o MPF, passa pela Marsam e chega a empresas globais de tecnologia.
Enviei perguntas a Frederico sobre as acusações da PF a respeito de suas empresas e negócios com ouro no Brasil, mas ele não me respondeu até a publicação desta matéria. Questionada sobre a relação com a FDGold, a Marsam informou em nota que “presta serviço para empresa na qual o Frederico é sócio”. A empresa também confirmou que tem entre seus clientes a BP Trading, a Reserva Metais e a Casa da Moeda. Sobre as acusações do MPF de que a FD’Gold compraria ouro de garimpos ilegais na Amazônia, a Marsam respondeu que “não emite opiniões sobre terceiros, sejam eles clientes ou não”.
A Marsam aparece na lista de fornecedores de empresas listadas na bolsa de valores dos EUA. Encontrei 388 documentos protocolados por empresas listadas que citam a Marsam como fornecedora de ouro entre 2020 e 2021. Entre elas, estão Apple, Google, Ford, Amazon e LG. Em anos anteriores, Tesla e o grupo Disney também adquiriram ouro da Marsam.
Em 1º de julho, a Apple me respondeu que possui padrões que “proíbem estritamente o uso de minerais extraídos ilegalmente”, e que por isso já removeu “mais de 150 refinarias da sua cadeia de fornecimento desde 2009”. A empresa também informou que acompanhava investigações em andamento sobre seus fornecedores. Três semanas depois, a Apple enviou uma nova nota, dessa vez para comunicar que a Marsam não faz mais parte da sua lista de fornecedores de ouro.
A Amazon também chegou a encaminhar uma resposta, mas apenas para informar que não iria se manifestar sobre o tema. As outras empresas não responderam aos pedidos de informações.
‘Nossos povos estão morrendo’
Localizado entre Itaituba e Jacareacanga, o território indígena Munduruku tem ao menos 21 pistas clandestinas, sendo 19 com rastro de desmatamento no perímetro de 20 quilômetros. Imagens de satélite revelam que nada menos que 12 dessas pistas foram construídas a partir de dezembro de 2018, quando Jair Bolsonaro já estava eleito e prestes a assumir a Presidência da República.
Terras indígenas são protegidas pela Constituição, e qualquer tipo de atividade mineradora nelas é ilegal. Bolsonaro se esforça para mudar isso desde fevereiro de 2020, quando apresentou ao Congresso Nacional o PL 191/2020, que prevê a possibilidade de exploração de terras indígenas.
Com o apoio de Brasília, o garimpo ilegal avançou. Um estudo do Instituto Socioambiental, o ISA, aponta que, entre 2019 e 2021, a terra Munduruku perdeu 2.264,8 hectares para a mineração ilegal, um aumento de 363% em comparação com os anos anteriores. Em muitos dos casos, o interesse do setor minerador recebe a complacência do governo.
De acordo com o projeto Amazônia Minada, um mapa que monitora em tempo real os requerimentos de mineração que afetam terras indígenas da Amazônia Legal, há mais de 2,5 mil processos minerários sobrepostos a territórios indígenas na região. Ignorando a Constituição e decisões judiciais, a ANM permite que esses processos continuem tramitando.
As principais vítimas são os povos indígenas. A líder indígena Maria Leusa Kaba Munduruku passa a maior parte do tempo escondida com os cinco filhos e outros familiares. Ela é presidente da Associação de Mulheres Indígenas Munduruku Wakoborun, sediada em Jacareacanga, e teve a casa incendiada por garimpeiros.
Sem revelar onde vive por causa das constantes ameaças, Maria Leusa me relatou, em agosto do ano passado, por telefone, como vê o aumento da pressão da exploração de ouro sobre territórios indígenas no Tapajós.
“Aumentou bastante o número de garimpeiros em toda a região. Eles oferecem 10% do lucro, e muitos parentes indígenas acabam aceitando a exploração em suas terras. Mas o garimpo só traz doenças, polui os nossos rios. Se a gente resiste, eles atacam as comunidades indígenas, como fizeram com a minha casa”, ela contou.
Os povos da etnia Munduruku somam estimadas 14 mil pessoas. Toda a terra indígena em que eles vivem é alvo da cobiça dos garimpeiros. Um vídeo publicado pelo Intercept em dezembro passado mostrou o estrago feito por um garimpo formado em menos de dois anos na Sai-Cinza.
A líder Alessandra Munduruku, da terra indígena Sawré-Muybu, que ainda não teve o território homologado, afirma que os povos da região passaram a ver aviões de pequeno porte com mais frequência nos últimos anos e cobra uma atuação do governo federal.
“Nós conversamos com os parentes e muitos relatam que hoje está passando avião em regiões onde não passavam antes. Eles já sabem que isso significa que tem garimpo novo na região. Isso é mais uma ameaça para o nosso povo, porque, assim como chega mais combustível e mantimentos para os garimpeiros, também chegam armas e drogas por essas pistas. O governo deveria proibir isso, mas faz o oposto”, disse Alessandra, que também vive sob constantes ameaças de garimpeiros.
Na terra indígena Yanomami, em Roraima, Ibama e Polícia Federal apreenderam em 2021 nada menos que 111 aeronaves utilizadas para abastecimento de garimpos ilegais. Elas usavam pelo menos 87 pistas clandestinas. Um relatório produzido pelo ISA em parceria com a Hutukara Associação Yanomami aponta que as áreas de garimpo na região aumentaram 46% em 2021 em comparação com o ano anterior. O texto ainda cita que 273 comunidades indígenas da área foram afetadas de alguma forma pela mineração.
As doenças chegam junto com a cobiça pelo ouro. Pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz, a Fiocruz, realizam estudos sobre os efeitos do mercúrio — usado para separar o ouro do barro — na saúde das comunidades indígenas. Na terra Munduruku, se analisaram as amostras de cabelo de 200 pessoas, quase 60% das quais apresentaram níveis altos de contaminação. Em uma aldeia da terra Sawré-Muybu, o percentual de contaminados chegou próximo a 90%. O mercúrio causa diversos efeitos nas pessoas contaminadas, de náuseas a problemas neurológicos.
“O processo de uso do mercúrio é rudimentar, até por ser ilegal, e por isso o desperdício é maior. Estima-se que, para cada quilo de ouro encontrado, o garimpeiro vai utilizar três quilos de mercúrio. Ou seja, dois quilos de mercúrio vão ser despejados nos rios, entrar na cadeia alimentar de peixes, principal proteína consumida pelas comunidades da região”, explicou Paulo Basta, coordenador do grupo de pesquisa Ambiente, Diversidade e Saúde da Fiocruz.
Ele lembrou que todo o mercúrio industrial utilizado no país é importado, e só chega nos garimpos pela falta de controle do governo. “Mesmo se o Brasil parar de usar mercúrio hoje em garimpos, esse metal vai permanecer na natureza por até 100 anos”, disse Basta.
“O mercúrio ultrapassa a barreira placentária em mulheres grávidas e afeta o cérebro de um bebê até sete vezes mais do que em um adulto. E isso não tem cura, a criança depois se desenvolve com problemas de aprendizado”, alertou o pesquisador.
Não é, tampouco, um problema novo. No inquérito sobre o garimpo do Limão, um relatório técnico produzido em 1984 pela Funai já dava conta da pressão de garimpeiros na terra indígena Rio Paru d’Este. O documento relatava que algumas comunidades haviam abandonado suas moradias em algumas bacias hidrográficas por causa das doenças provocadas pelos rios contaminados por mercúrio.
“O garimpo não vai melhorar a saúde do nosso povo. As crianças ficam doentes, a água está suja para consumo e os animais estão se afastando. Este ano, houve até um caso de uma criança Yanomami que foi estuprada por um garimpeiro e acabou morrendo”, disse Alessandra Munduruku. “Para esse governo, a nossa vida vale menos que o minério”.
Correção: 2 de agosto, 19h50
Uma versão anterior deste texto informava incorretamente que mercúrio foi encontrado em 90% das amostras de sangue de indígenas Munduruku e Sawré-Muybu. Na verdade, a pesquisa coletou amostras de cabelo dos indígenas. O texto foi corrigido.
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