O encontro que Bolsonaro teve com embaixadores, em que ele atacou o STF e as urnas eletrônicas, fez acender o sinal vermelho para alguns setores da sociedade que até então se calavam diante do golpismo do presidente. Dois manifestos, um criado pela Faculdade de Direito da USP e outro pela Fiesp, estão circulando na internet e angariando assinaturas. Os textos dos manifestos têm teor semelhante e defendem de maneira dura os mesmos princípios: o respeito ao sistema eleitoral, às instituições da República e à democracia.
Os nomes e entidades que assinam os manifestos dão ao movimento uma importância gigantesca, representando talvez o ato mais importante já feito contra os ataques do bolsonarismo à democracia. A carta da USP recebeu rapidamente mais de 700 mil assinaturas e até a publicação deste texto provavelmente já terá ultrapassado 1 milhão. Entre os assinantes estão grandes empresários e banqueiros como Roberto Setubal, Candido Bracher e Pedro Moreira Salles, do Itaú Unibanco; Guilherme Leal, da Natura; Walter Schalka, da Suzano; Eduardo Vassimon, da Votorantim, e Horácio Lafer Piva, da Klabin.
Não é pouca coisa. O grande capital, que até então estava calado ou no máximo fazia reclamações tímidas, parece que finalmente entendeu que a degradação das instituições não faz bem para os negócios. Além dos empresários, o manifesto reúne ex-ministros de FHC, de Lula, de Dilma e de Temer, subprocuradores-gerais da República, membros do MPF e uma série de intelectuais e personalidades. O texto do manifesto afirma que o país está “passando por um momento de imenso perigo para a normalidade democrática, risco às instituições da República e insinuações de desacato ao resultado das eleições”. E manda um recado para o presidente que tem preparado o terreno para que um episódio como a invasão do Capitólio aconteça no Brasil: “Lá [EUA] as tentativas de desestabilizar a democracia e a confiança do povo na lisura das eleições não tiveram êxito, aqui também não terão.”
O documento da Fiesp é muito parecido e reúne entidades empresariais e da sociedade civil como universidades, ONGs e sindicatos. Febraban, UNE, Câmara Americana de Comércio e as maiores centrais sindicais estão entre os assinantes. A carta é clara ao defender o STF e o TSE, duas instituições sob ataque permanente do presidente e sua horda golpista nos últimos anos.
Diz o texto: “As entidades da sociedade civil e os cidadãos que subscrevem este ato destacam o papel do Judiciário brasileiro, em especial do Supremo Tribunal Federal, guardião último da Constituição, e do Tribunal Superior Eleitoral, que tem conduzido com plena segurança, eficiência e integridade nossas eleições respeitadas internacionalmente, e de todos os magistrados, reconhecendo o seu inestimável papel, ao longo de nossa história, como poder pacificador de desacordos e instância de proteção dos direitos fundamentais.” Também enfatiza a confiança dos assinantes nas urnas eletrônicas: “o processo de apuração no país tem servido de exemplo no mundo, com respeito aos resultados e transição republicana de governo”.
As principais entidades sindicais do país, que juntas somam mais de 60 milhões de trabalhadores, decidiram assinar a carta da Fiesp. Representantes da Força Sindical, CUT e UGT se reuniram na última quarta-feira com Josué Gomes de Alencar, presidente da Fiesp. Após a reunião, os sindicalistas saudaram a posição da entidade patronal na defesa da democracia.
O golpismo bolsonarista conseguiu a proeza de juntar sindicalistas com o alto empresariado em um manifesto político em defesa da democracia. Também não é pouca coisa. Evidentemente não se trata de uma aliança política, de uma frente ampla ou algo parecido. Os embates entre trabalho e capital continuam, os interesses permanecem inconciliáveis, mas há o entendimento geral de que as instituições democráticas devem ser preservadas e de que qualquer tentativa de golpe fará todo mundo perder.
Ao ver o alto empresariado quase que unanimemente abandonando de vez o barco, Bolsonaro demonstrou ter sentido o peso do golpe. Mesmo sem ter seu nome citado nos manifestos, o presidente vestiu a carapuça que foi feita sob medida para ele. Reagiu com agressividade e deboche: “Esse pessoal que assina esse manifesto é cara de pau, sem caráter.”
A reação raivosa do bolsonarismo mostra a importância desse movimento organizado por diversos setores sociais, muitos deles antagônicos entre si.
Em outro momento, chamou o manifesto de “cartinha” e afirmou que se trata de uma nota política feita em ano eleitoral. Bolsonaro se reuniria na próxima semana com empresários em São Paulo e participaria de uma sabatina na Fiesp, mas ficou tão ofendido com a “cartinha” que decidiu cancelar ambos os compromissos com esse “pessoal sem caráter”. A revolta de Bolsonaro com o manifesto mostra que ele se sente traído pelo grande capital, que teria abandonado a trincheira na guerra contra o “comunismo”.
Em culto organizado pela bancada evangélica no Congresso na última quarta-feira, Bolsonaro voltou a ironizar a carta: “Nenhum de vocês que assinaram cartinhas por aí se manifestaram naquele momento”. O momento referido é a pandemia, quando governadores e prefeitos tomaram medidas para contar a crise do coronavírus.
Nos delírios do presidente isso, sim, representou um verdadeiro ataque contra a democracia. Os delírios continuaram durante o culto: “Peço a Deus que meu povo, nosso povo, não sinta as dores do comunismo. Nós somos a maioria, nós somos do bem, e tenho certeza que venceremos essa batalha”.
Em outro momento, Bolsonaro passou a descredibilizar a carta ao reduzi-la como uma iniciativa de banqueiros: “Você pode ver, esse negócio de carta aos brasileiros, à democracia, os banqueiros estão patrocinando. É o Pix que eu dei paulada neles, os bancos digitais que nós facilitamos”, disse ao gado que fica no cercadinho do Palácio da Alvorada. A conclusão dele é que a carta foi escrita depois que ele “acabou com o monopólio dos bancos”.
Essas mentiras são facilmente desmascaras. O Pix é uma criação do governo Temer. Aliás, até poucos meses atrás, Bolsonaro não sabia nem o que era Pix. Quando foi perguntado pelo gado no cercadinho, disse não saber o que era essa nova modalidade de transferência bancária. A outra mentira é de que os bancos estariam perdendo dinheiro depois do Pix. Os grandes banqueiros nunca ganharam tanto dinheiro como durante o governo Bolsonaro, tendo batido o recorde de lucro neste ano.
A tropa de choque da seita bolsonarista sustentou os delírios do seu messias. O parajornalista Alexandre Garcia, da empresa de parajornalismo Jovem Pan, também reduziu os manifestos que contam com amplos setores da sociedade a uma iniciativa exclusiva de banqueiros: “Uma micro elite brasileira está levando a sério um manifesto pela democracia assinada por banqueiros”.
Outros jornalistas e comentaristas da Jovem Pan se dedicaram a descredibilizar os manifestos em favor da democracia ao longo da programação. O comentarista bolsonarista Caio Coppola atacou a carta em defesa da democracia ao dizer que os assinantes estão a serviço de Lula, inclusive os banqueiros.
O ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, que antes de fazer parte do governo chamava Bolsonaro de “fascista”, também atribuiu a carta a uma iniciativa de banqueiros revoltados com uma suposta perda de arrecadação dos bancos. A deputada federal, Carla Zambelli, foi outra que ajudou a alimentar a boiada nas redes sociais com a mentira dita pelo presidente:
Banqueiros assinam carta em defesa das urnas e da "democracia".
Não precisa explicar, é só ligar os pontos dos prints abaixo.@JairBolsonaro manda um abraço por PIX pra eles.
Lembrando que o custo do PIX é R$0,00 – causando prejuízo BILIONÁRIO para banqueiros. pic.twitter.com/9mAEZDYFys
— Carla Zambelli (@Zambelli2210) July 26, 2022
Acuado, Bolsonaro tem percebido que o preço a se pagar por uma tentativa de golpe está ficando cada vez mais caro. Um dos motivos que fazem Bolsonaro fazer ameaças golpistas é a possibilidade de acabar na cadeia se perder o mandato. Ocorre que vai ficando cada vez mais claro que uma tentativa de golpe frustrada poderá acelerar a sua prisão. Ele está sozinho e conta apenas com os mesmos setores de sempre, como os militares, alguns integrantes do Centrão e do governo e pastores neopentescostais obscuros. Isso é muito pouco para quem planeja dar um golpe na democracia.
A reação raivosa do bolsonarismo mostra a importância desse movimento organizado por diversos setores sociais, muitos deles antagônicos entre si. Apesar de tardio, o recado é claro: Bolsonaro está sozinho em sua empreitada golpista. Ao contrário do que prega o bolsonarismo, está claro que não se trata de um ato partidário, mas de uma ação política cuja única pauta é a defesa das instituições, das eleições e da democracia.
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