“A sua tatuagem foi feita na cadeia?”. Essa foi a pergunta ouvida por Jorge Cardoso, motorista da Uber, após aceitar uma corrida de quatro turistas brancas em Salvador, Bahia. Cardoso, que tem uma tatuagem com a palavra “fé” nas costas, conta que parou por alguns segundos para entender aquele questionamento e, em seguida, respondeu: “Não, por quê?”.
A passageira seguiu rindo da situação, mesmo sendo alertada pela amiga sobre o comportamento. “Eu fiquei bastante constrangido. Não consegui dar nenhum tipo de resposta e finalizei a viagem normalmente. Eu fiquei me perguntando: ‘Será que eu tenho cara de criminoso? Por que ela acha que fiz a minha tatuagem na cadeia? Porque eu sou negro?’”, me disse o motorista.
Ele narra que a atitude seguinte foi reportar o que havia acontecido no aplicativo da Uber, relatando o comportamento racista. A solução da empresa: enviar uma mensagem dizendo que faria com que ele não se encontrasse mais com a passageira. “Eu acredito que isso não é suficiente para um caso de violência racial”, opinou.
Há um ano, a Uber lançou uma campanha publicitária antirracista. “Se você é racista, a Uber não é para você”, dizia o slogan, que dá a entender uma política de tolerância zero com violência racial. Na prática, porém, não é bem assim. Em 2021, passei oito meses mapeando como o racismo se manifesta entre motoristas e passageiros da Uber. No Rio de Janeiro, recorte da pesquisa, entrevistei 43 pessoas, sendo sete motoristas e 36 usuários da Uber negros. Entre os entrevistados, 56% afirmaram já ter vivido algum tipo de experiência racista na plataforma.
Os resultados serão publicados na tese “A experiência negra de ranqueamento social na Uber: uma reflexão racializada da vigilância contemporânea”, realizada no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a Uerj. A experiência, no entanto, não se restringe aos fluminenses.
Notas baixas sem explicação
O motorista Marcondes Junior, de Recife, Pernambuco, trabalhou como Uber por um ano. Em 2018, ele foi notificado por e-mail sobre “o fim da parceria”. O motivo: sua nota. De acordo com o Código da Comunidade Uber, cada cidade tem uma avaliação média mínima. Usuários e motoristas parceiros que não se mantenham acima dela podem perder o acesso à plataforma (e, consequentemente, ao seu ganha-pão). Marcondes Junior atribui a baixa pontuação a problemas na hora do pagamento e a sua cor de pele.
O sistema de ranqueamento é feito de motoristas para passageiros e vice-versa. Ambos podem ser avaliados anonimamente em notas que variam de 1 a 5. A nota é calculada com uma média das avaliações, e motoristas e passageiros mal avaliados podem ser banidos da plataforma. Os motoristas melhor avaliados podem ter benefícios, como bônus financeiros.
Na minha pesquisa, no entanto, constatei que entre motoristas e passageiros negros as notas baixas sem explicação são comuns. São vários os casos de usuários e motoristas que recebem notas baixas, mesmo com comportamentos de acordo com os esperados no Código de Conduta estabelecido internamente pela empresa.
Augusto, usuário da Uber que se autodeclara negro, por exemplo, não concorda com a sua nota no aplicativo: 4,75. “Pego Uber todo dia. Sou educado com os motoristas e não vejo comportamento para uma nota baixa”, diz ele. Pela média de avaliações, é possível perceber que Augusto recebeu algumas avaliações negativas de motoristas.
Notas entre 5 e 4,8 são consideradas boas. A nota 4,7 é mediana. Abaixo de 4,6, a nota é considerada baixa – e pode motivar expulsão. O objetivo, para a empresa, é “fomentar o respeito mútuo e melhorar cada vez mais as experiências de todos os envolvidos na plataforma”.
O sistema, no entanto, pode reproduzir a dinâmica do racismo estrutural – e aplicá-la a uma lógica de punição dentro da plataforma. Pedro, também negro e usuário da Uber, afirma acreditar que critérios como gênero e raça interferem diretamente nas notas: “Percebo isso em comparação com as notas de amigos próximos”. A nota dele é 4,72.
A Uber afirma não ter em suas métricas variáveis de raça e gênero para avaliações negativas, pois não questiona a origem étnica dos motoristas. Mas, para Bianca Kremer, professora, pesquisadora e ativista de direitos digitais da população negra no Brasil, o sistema de avaliação da empresa para a população negra é uma forma de reforçar o ideário social racista, e ele apresenta vieses discriminatórios. Na sua perspectiva, a população negra é mais marginalizada na Uber por conta dos estereótipos, já que a pontuação é abstrata e subjetiva de quem está avaliando.
“Se não houver cuidado com uma ferramenta que avalia a qualidade de serviço, se abre um leque de possibilidades para que o subjetivo e imaginário racista que permeia as relações sociais no Brasil sejam reforçados no uso da ferramenta de avaliação. E, assim, as notas podem reproduzir esses ideários”, enfatiza Kremer.
‘Me sinto muito mal, como se tivesse cometido um crime. A Uber nunca me deu a oportunidade de voltar.’
Denise Carvalho, pesquisadora em Estudos da Mídia e membro do Grupo de Pesquisa Laboratório de Identidade Digital e Diversidade da UFRJ, diz que as tecnologias “podem perpetuar estruturas ideológicas e de subjugação de gênero, raça, classe e território”.
A pesquisadora também evidenciou que o sistema de avaliação e classificação de indivíduos, como o usado pela Uber, pode reproduzir exclusões, assimetrias e desigualdades em relação aos indivíduos que não se encaixam no perfil lido como compatível com uma avaliação positiva; nesse caso, as pessoas negras.
Assim, pessoas de grupos que são historicamente excluídos socialmente podem deixar de ter acesso a bens específicos – a crédito, por exemplo e, no caso da Uber, ser banido do aplicativo e perder sua fonte de renda. Carvalho diz que é preciso treinar os profissionais envolvidos no tratamento desses dados – muitos deles sensíveis – para que os envolvidos estejam cientes do impacto social que eles podem causar. Assim, podem evitar que essas tecnologias reproduzam opressões.
Para o motorista Marcondes Junior, a empresa deveria aplicar treinamentos e dar uma chance para os motoristas melhorarem suas notas. “Tem pessoas que dependem disso para sobreviver. Me sinto muito mal, como se tivesse cometido um crime. A Uber nunca me deu a oportunidade de voltar”, afirmou.
Essa reportagem é resultado das Bolsas de Tecnoinvestigações para Repórteres Negros, uma parceria do Intercept com a Data Privacy Brasil, Conectas Direitos Humanos e Data Labe.
Assédio e objetificação
Marcelo, motorista negro, me disse que muitos usuários escondiam bolsas quando entravam em seu carro e demonstravam preocupação com a chegada ao destino final. A nota dele é 4. Felipe, usuário do app autodeclarado pardo e também nota 4, teve a mesma percepção. “Já me senti constrangido algumas vezes quando tive de pegar um Uber à noite e o motorista fazia comentários sobre roubos ou assaltos assim que eu entrava”. Fernando, negro, motorista da Uber nota 4, me relatou que, em uma discussão com uma passageira, no desembarque, chegou a ser chamado de “macaco”.
Já motoristas e passageiras mulheres compartilharam casos que cruzam racismo e machismo. Gabriela, motorista da Uber negra nota 4,4, enxerga racismo na avaliação e machismo na interação com os homens. “Um homem branco achou que, por eu ser mulher e negra, motorista, eu podia também fazer programa, e fez várias insinuações durante o trajeto, me constrangendo e me assediando. Não o deixei na estrada porque era uma corrida boa, e eu precisava da grana naquele dia”, ela me relatou.
‘O motorista insinuou que eu e minha namorada, duas mulheres negras, íamos assaltá-lo.’
Já Helena, usuária da Uber, foi assediada pelo motorista. “Acredito que o fato de ser uma mulher negra por si só faz com que os homens achem que sou pública, que podem falar o que quiserem e tudo bem. Eu não reclamei. Mas deveria ter feito uma reclamação. Não vou mais deixar passar”. A nota dela é 4,67.
Nas minhas entrevistas, também observei casos de racismo velado, ou seja, quando o racismo não é expressado verbalmente, mas simbolicamente. São situações em que, por exemplo, motoristas e passageiros são tratados com pouca cordialidade, sentem diferença de tratamento de acordo com as roupas que vestem, percebem olhares de indiferença ou são ignorados pelos motoristas.
“Os motoristas muitas vezes olham com indiferença quando veem uma mulher negra esperando Uber. Muitas vezes, ignoram o fato de ser eu mesma que estou ali esperando o serviço e passam direto, mesmo que eu esteja com o celular na mão e tenha mandado mensagem dizendo exatamente a minha localização”, me relatou Bruna, usuária negra da Uber, nota 4,77.
Os relatos dos motoristas e passageiros podem ser classificados em dois tipos penais: injúria racial e racismo. “Injúria racial é quando alguém se vale de elementos como raça, cor, etnia, origem, religião, entre outros, para atacar a honra. Como exemplo, quando alguém é chamado de ‘macaco’, explicou o advogado Filipe Lopes. Já o racismo se refere a um ataque à coletividade. “É um tipo de discriminação que ataca de maneira integral a origem racial da pessoa. Um exemplo, quando o [motorista da] Uber deixa de levar um passageiro porque ele é negro”.
O advogado recomenda que as vítimas, além de reportarem o caso à própria Uber, procurem a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, a Decradi, especializada nesse tipo de atendimento.
Programa de fachada
No caso de Natalia Ferreira dos Santos e Maria Luiza Santana Meneses, mulheres negras da cidade de Taubaté, interior de São Paulo, o racismo foi do motorista com elas. Elas relatam que foram confundidas com assaltantes quando solicitaram que o motorista da Uber alterasse o caminho durante uma corrida.
“O motorista insinuou que eu e minha namorada, duas mulheres negras, íamos assaltá-lo. Uma amiga branca estava presente e viu a situação. Ele se recusou a seguir a rota que indicamos, primeiramente para buscar essa amiga e depois para seguir até o destino final. Quando pedimos que fizesse outra rota, começou a dizer que havia sido assaltado havia poucas semanas logo após um cliente pedir para ele desviar a rota, que a Uber acompanhava a localização dele pelo GPS e que se saísse da rota a empresa ligaria para ele imediatamente, informações que sabíamos que não procediam”, relatou formalmente Menezes na descrição do ocorrido enviado à Uber.
Para Menezes, o programa antirracista da Uber é fachada. As vítimas tiveram que fazer a reclamação inúmeras vezes, para diferentes atendentes via chat, recebendo respostas genéricas, e não foram notificadas de nenhuma atitude contundente da Uber até o momento, como a apuração do caso e o desligamento do motorista.
Ao Intercept, a Uber enviou uma nota de repúdio padrão e afirmou ter desativado o motorista da plataforma. A empresa também afirmou permanecer à disposição para colaborar com as autoridades.
Racismo automatizado
Desde 2019, a Uber tem uma parceria com a Serpro, empresa de tecnologia da informação do governo federal, para uso da ferramenta de validação biométrica Datavalid. Funciona assim: com autorização do Denatran, o Departamento Nacional de Trânsito, o software verifica informações da CNH e documentos dos carros dos motoristas que querem ou já atuam na empresa. Os dados do serviço público – incluindo as fotos – são cruzados com a base de dados da Uber para verificar as informações.
São checados desde o nome até o endereço do motorista em potencial, e a validação biométrica facial compara a foto do aplicativo à do banco de dados do governo federal. A finalidade, de acordo com a empresa, é garantir que a pessoa que está usando a Uber é de fato a que cadastrou a conta.
Para Bianca Kremer, a parceria reforça que a Uber não pode ser olhada apenas como um serviço de transporte urbano. A empresa é detentora de um expressivo banco de dados com informações relativas à mobilidade de um enorme volume de usuários.
‘A população negra vivencia o que as empresas chamam de “erros e falhas”.’
“Não é por acaso que a Uber tem a parceria com a Serpro. Existe um projeto político de mapeamento de práticas de mercado. Quando as pessoas pagam em dinheiro, elas estão apartadas da observação e fiscalização do sistema financeiro tradicional, seja no âmbito privado ou público. É importante fazer outros questionamentos: por que uma empresa pública como a Serpro, detentora de dados da sociedade como um todo, tem parceria com a Uber? Para quem elas querem aplicar segurança? O que eles entendem por segurança?”, questionou Kremer.
Em 23 de maio, a Uber ainda anunciou que usará a ferramenta U-Selfie, ainda em formato piloto, para pedir uma selfie aos usuários que efetuarem corridas com pagamento em dinheiro. De acordo com o blog oficial da empresa, é uma forma de aprimorar a segurança, em resposta a uma solicitação dos motoristas. A Uber diz que as selfies coletadas ficarão registradas nos servidores internos e não serão compartilhadas com os motoristas.
A empresa, no entanto, já responde a processos por falhas em seus sistemas de reconhecimento facial no Reino Unido. No ano passado, um ex-motorista que trabalhou na empresa entre 2016 e 2021 naquele país processou a Uber após ser desligado injustamente. Segundo a ação, o algoritmo de reconhecimento facial automatizado alegou que ele não era ele mesmo – e cancelou sua conta.
Segundo o Sindicato dos Trabalhadores Independentes da Grã-Bretanha, que apoiou a denúncia do ex-motorista, outros 35 foram desligados pelo mesmo tipo de erro, segundo reportou o jornalThe Guardian. Ao jornal britânico, no entanto, a Uber refutou veementemente a acusação de racismo, que chama de “infundada”, e afirma que os motoristas podem escolher uma verificação humana para suas contas via plataforma da empresa. Segundo a empresa, ao optar pela detecção automática, pelo menos duas pessoas revisam a decisão antes de remover alguém.
Para Bianca Kremer, os riscos de emprego dessas tecnologias biométricas existem porque elas são produzidas e treinadas em ambientes herméticos, ou seja, sem interferências sociais. Assim, quando encontram o cenário social, que tem pré-compreensões de mundo, diversidades étnicas, preconceitos e opressões, há efeitos na experiência do usuário na ponta – sobretudo para grupos minoritários.
“No geral, a população negra no contexto da tecnologia não tem lugar político de enunciação, seja na produção ou no poder de decisão. Então essa população vivencia o que as empresas chamam de ‘erros e falhas’. E chamo de vieses, pois essas pessoas não são levadas em consideração desde o processo de produção, e isso explica por que as biometrias faciais são problemáticas”, explica Kremer.
Essa reportagem é fruto das Bolsas de Tecnoinvestigações para Repórteres Negros, uma iniciativa do Intercept em parceria com Conectas, Data Privacy Brasil e Data Labe.
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