O delegado Orlando Zaccone olhou para o relógio de pulso e conferiu a data: 21 de julho. “Hoje deve estar começando um corre-corre danado nas delegacias por produtividade. Depois do dia 20 é sempre assim”, me disse. Quanto mais prisões e crimes resolvidos num mês, com autores indiciados e inquéritos finalizados, maior a pontuação de cada delegacia. Embora os pontos não tragam retorno financeiro, é o bom resultado dessa soma que garante que delegados sigam à frente de suas unidades e possam montar seu time de policiais. Se houver baixa resolução de crimes, o delegado deixa o comando da unidade.
Em dezembro passado, Allan Turnowski, secretário de Polícia Civil do Rio de Janeiro, definiu pontuações para cada tipo de crime elucidado – até então, todos tinham o mesmo peso. O mais valioso, ao contrário do que se poderia imaginar, não são os crimes contra a vida. É a lavagem de dinheiro, que rende seis pontos. Em seguida, vêm homicídios, feminicídios, latrocínios e formação de milícias, cuja elucidação é recompensada com cinco pontos.
Na tabela de produtividade da polícia do Rio, solucionar um caso de estupro, crime hediondo, merece a mesma recompensa que resolver um roubo de celular: 3,5 pontos. Fechar investigações sem conclusão – mesmo que se descubra não ter havido crime, o que faz parte do trabalho policial – não vale muito a pena. Rende 0,3 pontos. Antes da inovação produzida pelo secretário Turnowski, o governo do Rio não premiava esses inquéritos.
A hierarquia de crimes causa estranheza. E premiar a quantidade de inquéritos encerrados em vez de avaliar a investigação e os métodos empregados nela não favorece a qualidade do trabalho policial. “Se você finaliza um inquérito dizendo que não houve crime ou que o investigado não é o autor, não vale nada. É uma besteira isso”, criticou Zaccone, um dos nomes mais conhecidos do grupo Policiais Antifascismo.
Jacqueline Muniz, doutora em Segurança Pública e professora da Universidade Federal Fluminense, a UFF, concorda com o delegado. “É como avaliar um jornalista pela quantidade de palavras que escreve, e não pela qualidade das matérias. Trabalho de polícia não é produto, é processo”, ela afirmou.
Procurada por meio de sua assessoria de imprensa, a Secretaria de Polícia Civil do Rio não respondeu às questões levantadas pelo Intercept sobre as regras de pontuação.
“O critério da produtividade é o ponto chave de problemas como o reconhecimento fotográfico ser usado como única prova. Se a vítima aponta alguém e entrega de imediato a autoria, a polícia resolve a questão”, explicou Zaccone.
“A lógica da pontuação significa a criminalização a qualquer custo. Atendemos o pai de um rapaz acusado de trocar tiros com a polícia. Ele argumentou: ‘Não era ele. É só pegar as câmeras, o cartão do metrô. Ele estava em outro lugar’. Mas não adiantou, o que valeu foi a palavra da polícia”, lamentou Guilherme Pimentel, ouvidor da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
Basta fazer as contas: indiciar alguém por envolvimento com organizações criminosas vale 4 pontos. Mas, se concluir que essa pessoa cometeu o crime e não encontrar outros suspeitos, a delegacia ganha apenas 0,8 ponto. Como as delegacias não pontuam por policiais irem atrás de provas ou por fazerem uma investigação aprofundada, abre-se caminho para se garantir boas pontuações da maneira mais fácil – mesmo que às custas da prisão de inocentes.
A gincana das delegacias
Orlando Zaccone se lembra da correria para cumprir mandados de prisão na época em que comandava delegacias. “A gente ia cumprir mandado de prisão de pessoas que já estavam presas, só para colocar na conta”. A estratégia era preguiçosa, mas não ilegal. Fazia parte do jogo da pontuação.
Foi só em outubro de 2018 que Rivaldo Barbosa, delegado-chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, acabou com a farra ao assinar uma portaria estabelecendo que “não serão considerados os registros de cumprimentos de ordem judicial de prisão ou busca e apreensão de adolescente infrator de pessoa que já se encontre presa ou apreendida”.
A corrida atrás das prisões decorrentes de investigações da Polícia Civil, no entanto, continua, porque ainda conta pontos. “É uma gincana, não dá conta da natureza do trabalho complexo de polícia”, reclamou Muniz, da UFF.
Nesse jogo, quanto mais crimes complexos a delegacia solucionar, mais pontos leva. Não importa como. É por isso que, segundo Zaccone, crimes como violência doméstica, por exemplo, valem menos pontos – e menos esforço da polícia. Afinal, o autor usualmente é identificado já no registro da ocorrência. Portanto, ao menos em teoria, o crime tende a ser de mais fácil solução, o que explicaria a baixíssima pontuação de 1,25.
“É um ranking simples, uma tabela simplória. Para medir desempenho, você precisa ter métricas. Como vou mensurar o que é um litro de leite, se não sei quanto é o litro?”, comparou a professora Muniz. “Se não há como avaliar, não há como controlar. E a polícia precisa de controle”.
Evitar crimes vale dinheiro
A investigação, em si, e o resultado dela não rendem nenhum ganho financeiro aos policiais. Na prática, o ranking serve só para contabilizar o que os governos consideram um trabalho policial bem-sucedido. É o que garante aos delegados avaliações e cargos mais importantes. Como numa empresa, se as vendas aumentam, o gestor fica no cargo; caso contrário, tchau. No caso das delegacias, o gestor é o delegado, e os produtos à venda são os casos fechados, com suspeitos indiciados.
“Aferir a qualidade policial pela produtividade é um critério de avaliação que vem da lógica das fábricas. Você pode avaliar uma fábrica de automóveis pela quantidade de carros produzidos por mês, mas a polícia não faz produto, a polícia presta um serviço”, contestou Zaccone.
Bônus mesmo só vem se os batalhões e delegacias de uma mesma Região Integrada de Segurança Pública ou Área Integrada de Segurança Pública baterem metas para evitar crimes. Ou seja: se o policiamento preventivo funcionar. Mas também não vale para todo e qualquer tipo de crime. Só contam aqueles que o governador considera prioritários “por impactarem mais fortemente a sensação de segurança”.
Em 2020,o governador Cláudio Castro, do PL, mesmo partido de Jair Bolsonaro definiu quais eram eles no Rio de Janeiro: homicídio doloso, morte por intervenção de agente do estado, latrocínio, lesão corporal seguida de morte, roubos de carga, veículos ou objetos. Isso quer dizer que os índices desses crimes são classificados como “indicadores estratégicos de criminalidade” – e, por isso, precisam ser monitorados e controlados.
Aqui, valem duas observações. Em primeiro lugar, soa como chacota o governador responsável por três das quatro maiores chacinas da história do Rio de Janeiro se dizer preocupado em reduzir as mortes causadas pelas suas polícias. Além disso, há uma grande preocupação com crimes patrimoniais (como o roubos de celulares), mas nenhuma menção a crimes de gênero, como estupros, feminicídio ou violência doméstica.
De volta aos critérios de avaliação do trabalho policial, num exemplo hipotético, funcionaria assim: determinada região costuma ter 100 casos de roubo de celulares por mês, então, com base nesses dados, traça-se uma meta de redução dos índices (algo do tipo: no máximo, 90 celulares roubados roubados por ali). As metas variam de região para região – afinal, não dá para comparar as realidades da baixada fluminense com as da zona sul carioca, só para citar dois casos.
E aí vem a parte do retorno financeiro. Se, juntos, os batalhões e delegacias de uma mesma Região Integrada de Segurança Pública ou Área Integrada de Segurança Pública cumprirem essas metas (ou seja, se controlarem ou reduzirem os seis tipos de crimes priorizados por Castro), ganham um bônus semestral no salário. E nessa, entra uma disputa: as regiões e áreas que se destacarem, com melhores índices de desempenho de metas, maior a premiação em grana no fim do semestre.
Anos atrás, os “policiais campeões” tiravam uma grana boa. Segundo Zaccone, cada um podia tirar até R$ 13 mil em bonificação semestral, mas hoje o valor não passa dos R$ 3 mil para cada policial da região com maior pontuação – e chega com atraso. Em junho deste ano, Castro anunciou a distribuição de R$ 59 milhões entre 25 mil policiais.
Só que, mais uma vez, assim como na gincana de pontos da Civil, esse índice tampouco mensura a qualidade do trabalho policial. Tomemos como exemplo a queda na taxa de homicídios. Quando ela cai, é comum que aumente o número de desaparecidos – como aconteceu recentemente no Rio, que registrou queda de 15% nos homicídios e alta de 37% nos desaparecimentos no primeiro semestre deste ano.
Mas, segundo os dados do próprio governo, as metas prioritárias do governador Castro para devolver a “sensação de segurança” têm sido cumpridas. Além da queda nos homicídios, os roubos, no geral, caíram. Já os estupros, segundo o Instituto de Segurança Pública, aumentaram 9% no primeiro semestre de 2022 em comparação com o mesmo período do ano passado.
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