Uma presença inesperada na campanha de Lula vem gerando desconforto entre seus aliados: o pesquisador de Harvard Hussein Kalout, respeitado especialista de relações internacionais e homem de confiança de Michel Temer – entre 2016 e 2018, ele ocupou a Secretaria de Assuntos Estratégicos do governo. Mas ele não é o único ex-integrante da gestão Temer de quem o PT se reaproximou nessas eleições. O que incomoda mesmo é sua relação com outro especialista da área – Marcos Degaut, ex-integrante do governo Bolsonaro.
Parceiro de Kalout em dezenas de artigos e segundo homem na hierarquia da secretaria durante seu mandato, Degaut foi o secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa de Bolsonaro, pasta com orçamento bilionário responsável pela compra de produtos bélicos. Uma reportagem da Folha de S.Paulo revelou que Degaut recebia em seu gabinete militares da reserva convertidos em lobistas de grandes multinacionais de armamentos. Procurado pelo Intercept, ele afirmou não ter relações com lobistas. “Um secretário de Produtos de Defesa que não tem contatos com empresários da indústria de defesa não está fazendo bem seu trabalho”, disse ele.
Com a benção de Eduardo Bolsonaro, o filho Zero Três, Degaut foi indicado pelo presidente para o cargo de embaixador do Brasil nos Emirados Árabes. O posto é estratégico. Em dezembro de 2019, o presidente assinou dois acordos de cooperação com o país na área de armamentos. Em outubro de 2021, ele ciceroneou representantes da EDGE, empresa dos Emirados Árabes especializada na fabricação de mísseis e produtos de espionagem, em uma visita a São José dos Campos, em São Paulo. A nomeação está travada no Senado.
Dagaut e Kalout também foram parceiros no Instituto Kalout-Degaut de Política Estratégica, empresa criada em 2015 e encerrada em janeiro deste ano. O fechamento veio após as primeiras tentativas de aproximação de Kalout com o PT, na viagem de Lula pela Europa, no final de 2021.
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Outra reportagem da Folha de S.Paulo, publicada em 2018, diz que Kalout era “próximo” do então candidato a vice-presidente, Hamilton Mourão, e esteve em almoço com o general e o atual ministro da Economia, Paulo Guedes. Na época, ele negou a aproximação.
Polo oposto a Amorim
Fontes próximas a Lula afirmam que Kalout foi trazido para a campanha por Cristiano Zanin, advogado do petista. O pesquisador ajudou a organizar dois encontros de Lula com embaixadores na casa de Zanin, em São Paulo. No primeiro deles, no final de julho, estiveram os representantes diplomáticos da Rússia, Índia e África do Sul, países que integram os BRICS, que conta ainda com a China. No segundo, no início de agosto, estiveram embaixadores da França, Suíça, Holanda, Polônia e Alemanha.
Foram discutidas saídas para a guerra na Ucrânia e a reinserção do Brasil no cenário internacional nos encontros, de que participaram Kalout, o ex-ministro das Relações Exteriores de Lula Celso Amorim e o coordenador do programa de governo do PT e presidente da Fundação Perseu Abramo, Aloizio Mercadante. O senador Jaques Wagner, um dos principais quadros do PT para a área de defesa, esteve apenas na reunião com os europeus.
O pesquisador de Harvard também esteve em um almoço na casa de Zanin com Mercadante e o economista americano Jeffrey Sachs em 10 de agosto. O objetivo era promover um encontro de Sachs, conhecido por suas teses de combate à miséria, com Lula. O ex-presidente, no entanto, não compareceu por causa de uma indisposição estomacal. Durante o almoço, Mercadante convidou o economista para uma apresentação de propostas para a redução da miséria na sede da Fundação Perseu Abramo, na qual Kalout também estava presente.
Segundo fontes da fundação, economistas do PT têm boas relações com Sachs, mas foi Kalout quem viabilizou financeiramente a vinda do colega de Harvard ao Brasil. Desde então, Kalout foi visto algumas vezes ao lado de Mercadante no QG do programa de governo de Lula. Segundo auxiliares, Kalout colabora pontualmente com a elaboração de propostas para Lula quando acionado por Mercadante.
Hussein Kalout colabora com propostas para Lula quando acionado por Mecadante.
Os petistas incomodados com a aproximação de Kalout enxergam na articulação a tentativa de criar um polo em contraposição a Amorim. O ex-chanceler, aos 80 anos de idade, é o senhor absoluto da pauta de política externa na campanha de Lula e deve indicar o ministro das Relações Exteriores, caso o petista seja eleito. Provavelmente, um diplomata de carreira. Por outro lado, auxiliares de Mercadante o veem se movimentando no campo das relações internacionais, principalmente no âmbito do Grupo de Puebla, que reúne líderes progressistas da América Latina e Espanha.
Hussein Kalout não quis se manifestar nesta reportagem. Na quinta-feira, dia 1º, ele me pediu que enviasse perguntas por escrito, mas depois se recusou a respondê-las. “Li detidamente as suas indagações e verifico que você está com uma visão equivocada e preconcebida sobre os assuntos. Razão pela qual deixo de me manifestar neste momento”, escreveu.
Argumentei que as perguntas não refletiam minha visão, mas a das fontes com quem falei. Ele me pediu que revelasse seus nomes. Expliquei que não poderia fazer isso, mas que,se ele quisesse me dizer quem tem a visão que expus, eu poderia identificar os interesses envolvidos e fazer o contraponto. Kalout não respondeu mais.
Marcos Degaut também não quis dar entrevista, mas disse que se afastou de Kalout em 2018. “Desconheço totalmente o assunto e não tenho o menor interesse nele. Nem em Kalout e muito menos em Lula”. Segundo ele, o afastamento aconteceu por “divergências ideológicas e políticas” quando ele saiu da Secretaria de Assuntos Estratégicos, em julho de 2018. “Desde então, não tenho contato. E nem quero ter”, escreveu o professor. Segundo ele, o Instituto Kalout-Degaut nunca chegou a funcionar.
Cristiano Zanin foi procurado por meio da assessoria de imprensa da campanha de Lula, mas também não quis se manifestar.
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