“O plenário da Câmara sente cheiro de sangue, de perfume e de medo”, refletia o deputado Arthur Lira em conversas com lideranças políticas nos jantares que promovia nas semanas finais de 2019. No amplo apartamento funcional em que morava, na quadra 302 da Asa Norte de Brasília, empregados domésticos alimentavam as discussões que avançavam madrugada adentro, após as sessões parlamentares, servindo pratos de filé mignon, peixe, massas e saladas.
Acomodado num dos sofás de sua sala, já sem o paletó, Lira alternava goles de vinhos tintos da América do Sul com as análises que reuniam aliados, assessores e jornalistas em busca de identificar qual cheiro, afinal, exalava o governo Jair Bolsonaro naquele fim de ano. Era de sangue, anunciou.
O deputado eleito pelo Progressistas de Alagoas cumpria seu terceiro mandato federal e já trabalhava para tomar a Presidência da Câmara e, antes disso, o controle de fato do Palácio do Planalto, junto a seus aliados do Centrão. O excesso de confiança permitia a Lira afrouxar a expressão sisuda e se gabar aos convidados, rindo, do nó que dera em Bolsonaro – e em um de seus generais, em particular – a partir do controle da Comissão Mista de Orçamento do Congresso. Ainda que houvesse pela frente alguma disputa sobre a versão final do Orçamento de 2020, em dezembro de 2019 já estava engatilhado o controle das verbas públicas a partir das emendas de relator e do governo. Ou seja, via orçamento secreto.
Então ministro-chefe da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos ainda era general do serviço ativo do Exército e, mesmo assim, aceitou se tornar o responsável pela articulação política do governo com o Congresso. Mas ele sempre gostou mesmo do papel de escada do presidente da República em seus périplos pelas redondezas de Brasília. De preferência, sobre motocicletas.
Assim, em 4 de dezembro de 2019, Ramos foi a uma feira popular com Bolsonaro em horário de expediente em Brasília. Naquele mesmo dia, Lira criticava ao UOL e à Folha a incompetência do militar, classificando sua articulação política como “nula”. Mal tendo completado seu primeiro ano, o governo dos militares que cantavam “se gritar pega Centrão, não fica um, meu irmão”, dos moralistas de ocasião e dos extremistas das redes sociais havia sido capturado por quem desprezava. Enquanto Ramos devorava pastéis gordurosos para paparicar o chefe, o grupo de Lira montava a lei do Orçamento, ampliando seu poder sobre o uso de dinheiro público sem que o Planalto percebesse a tempo.
O golpe de misericórdia veio com a demissão de um dos pilares do governo, o ministro da Justiça e ex-juiz Sergio Moro, em abril de 2020. Fulminado pela Vaza Jato, Moro perdeu o respeito do presidente e retirou-se do governo para não ser humilhado, mas sua saída abalou a confiança que parte da sociedade tinha nas promessas vazias de Bolsonaro. Foi quando o Centrão ofereceu ao mandatário algo ainda mais importante: um seguro contra um eventual processo de impeachment. Em troca, queria ser o governo. O acordo foi selado. Um mês depois, Progressistas, Partido Liberal e Republicanos já tinham cargos e ministérios no Executivo. Em novembro de 2021, a capitulação se oficializou: Bolsonaro, que ficou sem partido durante a maior parte de seu mandato, filiou-se ao PL, uma das grandes legendas do Centrão.
Hoje, o poder do Centrão é tamanho que o senador Ciro Nogueira, que deixou a presidência do Progressistas para ser ministro da Casa Civil, tem desde janeiro de 2022 a prerrogativa de barrar decisões orçamentárias do superministro da Economia, Paulo Guedes, outro fiador da campanha de Bolsonaro em 2018.
Sem jamais ter tido um candidato competitivo desde a volta das eleições diretas para a Presidência, em 1989, o Centrão finalmente tem um nome forte para chamar de seu. E trabalha arduamente para vender Jair Bolsonaro, a maior ameaça à democracia brasileira desde o fim da ditadura, em 1985, como algo que ele nunca foi.
O estelionato eleitoral
O primeiro problema do Centrão eram os pífios resultados do governo do capitão reformado de extrema direita. A começar pelos ministérios, formados por gente que defendeu que o Brasil se assumisse como um pária internacional (Ernesto Araújo), que o dólar alto era bom para acabar com a “festa danada” das empregadas domésticas que viajavam à Disney (Paulo Guedes) ou que cometia erros gramaticais em série no comando o Ministério da Educação (Abraham Weintraub).
Para piorar, veio a pandemia da covid-19. Aí a tragédia foi além de anedotas como “Alguém consegue fazer o lockdown dos insetos?”, do então secretário-geral da Presidência, Onyx Lorenzoni ou a inacreditável “Nem sabia o que era o SUS“, perpetrada pelo então ministro da Saúde e general da ativa do Exército Eduardo Pazuello, encarregado de comandar justamente o Sistema Único de Saúde na maior emergência sanitária dos últimos 100 anos. A fé de Bolsonaro em tratamentos sem eficácia contra o novo coronavírus se transformou em recusa em comprar vacinas. Deu no que se sabe. O Brasil tem a segunda maior taxa global de mortes pela doença – 322 óbitos a cada 100 mil habitantes. Trata-se de um provável crime contra a saúde pública ainda a ser devidamente investigado – e julgado.
Diante do quadro desolador, o Centrão trabalhou duro para fazer de Bolsonaro um candidato competitivo. Para começar, aprovou em julho uma emenda constitucional que criou um inédito estado de emergência às vésperas da eleição. Com isso, Bolsonaro foi autorizado a distribuir estimados R$ 40 bilhões em programas de assistência social temporários, que terminam dois meses após a eleição. Ele aumentou o valor pago por família beneficiada pelo Auxílio Brasil para R$ 600 e criou programas de renda extra para caminhoneiros e taxistas.
Ante a resistência da Petrobras em mexer nos preços dos combustíveis, Arthur Lira ameaçou criar uma inacreditável CPI apoiada pelo governo para investigar uma empresa estatal controlada pelo governo. No dia seguinte, o presidente da estatal se demitiu. Os preços logo começariam a baixar para os consumidores, para satisfação de Lira e do governo. A primeira parte do estelionato eleitoral estava completa. Faltava a segunda, mais difícil: criar o personagem do Bolsonaro moderado. O Jair.
O acordo
“Um 7 de setembro raivoso seria terrível para a gente”, admitiu, sem rodeios, um ministro que nos recebeu numa quarta-feira, 31 de agosto, em seu amplo gabinete com vista para o gramado suspenso nos fundos do Palácio do Planalto. Integrante do que se convencionou chamar de “ala política” do governo Bolsonaro, ou seja, do Centrão, ele conversou conosco sob a condição de não ser identificado.
Mas o “7 de setembro raivoso” – ou seja, com novos ataques virulentos dirigidos ao ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, o TSE, e alvo favorito dos chiliques golpistas de Jair Bolsonaro – havia se tornado uma possibilidade mais remota justamente naquela tarde. Moraes havia recebido no TSE o ministro da Defesa, o general do Exército Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, e concordado em acatar uma das sugestões dos militares a respeito dos testes de integridade das urnas eletrônicas.
Era a estratégia para colocar fim à celeuma iniciada quando Luís Roberto Barroso, então presidindo o TSE, ingenuamente chamou as Forças Armadas a palpitarem no que jamais deveriam. Umbilicalmente ligados a Jair Bolsonaro – e aboletados em mais de 6 mil carguinhos e cargões no governo, e de forma irregular em um terço deles, segundo órgãos de controle –, os fardados viram ali a chance de cooperar com a estratégia do presidente para desacreditar as urnas eletrônicas e causar tumulto caso perca as eleições.
O acordo entre Moraes e o caricato general-ministro Paulo Sérgio não serviu apenas aos propósitos do presidente do TSE: o Centrão também atuou e aguardava ansiosamente por ele. O ministro que nos recebeu no Palácio desenhou o cenário com que sonhava: Bolsonaro ouviria de um general de quatro estrelas que as Forças Armadas estavam em condições de lhe afiançar de que não teria a reeleição tungada nas urnas. E tiraria as críticas às urnas eletrônicas de seus discursos.
Atacar as urnas soa como mimimi de perdedor. Por isso, o Centrão quer que Bolsonaro mude de assunto.
Claro, esta hipótese leva em conta a boa fé dos militares envolvidos. E há motivos de sobra para desconfiar do republicanismo das Forças Armadas brasileiras. Trata-se, afinal, da turma que se presta ao papel de animadores de comício de Bolsonaro ao mesmo tempo que se recusa a conversar com o candidato a presidente que lidera 100% das pesquisas sérias de intenção de voto. Mas é a hipótese que cai como uma luva para a estratégia eleitoral da campanha bolsonarista.
Não existe, entre políticos de alta patente do Centrão, quem desconfie das urnas eletrônicas. O problema, segundo esse ministro, é que Bolsonaro parece acreditar piamente que só perderia a eleição em caso de fraude – impressão corroborada por uma fonte que conhece a fundo os bastidores da campanha. O presidente já deixou bem claro, no caso da hidroxicloroquina, a propensão a acreditar em evidências anedóticas – ou seja, a traçar relações de causa e consequência com base apenas na própria experiência.
Como teve covid-19, tomou hidroxicloroquina e se curou, Bolsonaro atribui o sucesso de seu caso ao medicamento. Só que a ciência já demonstrou que ele não tem efeito algum: o presidente provavelmente teve um caso leve da doença, que seria debelado pelo próprio organismo mesmo que ele tomasse apenas água durante a convalescença. O mesmo vale para as eleições: como reúne apoiadores por onde quer que passe, Bolsonaro acredita que tem o povo todo consigo. Se esquece, nesse caso, de pensar em quanta gente preferiu não ir à rua aplaudi-lo.
Jair e Bolsonaro
O problema dos ataques às urnas, segundo pesquisas qualitativas encomendadas pela campanha de Bolsonaro e do Centrão, é que o eleitorado que não compra o discurso do presidente sobre elas – ou seja, quem não é um radical fanatizado – o vê como um mau perdedor. Para quem não é bolsonarista, Bolsonaro faz mimimi quando ataca as urnas: sabe que vai perder a eleição e quer se esquivar da responsabilidade pela derrota. E, como está atrás nas pesquisas, o presidente será derrotado a menos que consiga os votos de quem o vê com reservas. É preciso, então, que ele mude de assunto. Que seja, melhor ainda, outra pessoa.
É nisso que trabalha o marqueteiro contratado do PL, Duda Lima. Ele produz filmes como o veiculado a partir de 3 de setembro no horário eleitoral na televisão e no rádio. “Esse é o Jair”, diz o locutor de sotaque nordestino, “o cara que gosta de moto, de farofa e de caldo de cana”, que “baixou o preço da gasolina” e “entendeu que o Bolsa Família ficou velho e sem valor”.
O problema é que Jair, aliás, Bolsonaro, também gosta de “todo mundo armado”, louva a tortura e os torturadores, ataca mulheres dizendo que “não as estupra porque não merecem” e, questionado sobre as mortes crescentes no início da pandemia de covid-19, deu de ombros: “Eu não sou coveiro”.
Para dar conta de encaixar o Bolsonaro real no personagem Jair, a campanha escala gente com ascendência sobre o presidente para um lento trabalho de convencimento. O filho 01 e senador Flávio, o vice e general Walter Braga Netto, o ministro da Casa Civil e cardeal do Centrão Ciro Nogueira, o presidente do PL, Valdemar da Costa Neto, entre outros, se revezam em conversas ao pé do ouvido de Bolsonaro, na tentativa de convencê-lo a falar do tema que domina o debate eleitoral em 2022: a economia.
Jair Bolsonaro, é preciso que se diga, se esforça. Voltemos à noite de 11 de agosto, uma quinta-feira, dia das lives semanais que o presidente faz do Palácio da Alvorada. Naquela manhã, em São Paulo, um ato realizado na Faculdade de Direito da USP, a mais prestigiosa do país, culminou na leitura de uma carta pela democracia assinada por mais de 1 milhão de brasileiros de diferentes correntes políticas e de um manifesto assinado por mais de 100 entidades tão díspares como a Fiesp, a Febraban – sindicatos, respectivamente, da indústria paulista e dos bancos brasileiros – e a CUT, a Central Única dos Trabalhadores, ligada ao PT. Se tratou da mais ampla manifestação conjunta pela democracia desde as Diretas Já, em 1984.
Bolsonaro começou sua live falando sobre as benesses econômicas que seu governo podia exibir, graças à emenda constitucional construída pelo Centrão, e seguiu no tema durante longos 18 minutos. Só então foi tratar da carta pela democracia. Em vez de erguer a voz, simplesmente alcançou um luxuoso exemplar da Constituição, encadernado em couro verde, e perguntou: “Alguém discorda que essa aqui é a melhor carta pela democracia?”. Em seguida, disparou: “O PT não assinou a Constituição em 1988. E agora quer assinar essa cartinha pela democracia”. Logo após a mentira, estaria de volta ao tema da economia. Naquela noite, Bolsonaro não falou uma única vez no Supremo Tribunal Federal, o STF, no TSE ou nas urnas eletrônicas.
Duas vitórias em uma
Jair Bolsonaro já discursava havia longos 48 minutos na convenção que o confirmou candidato a presidente do PL, no ginásio do Maracanãzinho, Rio de Janeiro, quando falou: “Convoco todos vocês agora para que todo mundo, no 7 de setembro, vá às ruas pela última vez”. “Estes poucos surdos de capa preta têm que entender o que é a voz do povo, que quem faz as leis é o poder Executivo e o Legislativo”, prosseguiu. Os “surdos de capa preta”, lógico, são os ministros do STF. A convocação foi o ápice do evento daquele domingo, 24 de julho, mas foi mal recebida pelo Centrão, como admitiria dias depois uma fonte próxima ao comando da campanha pela reeleição, que lamentou: “Esse é o Bolsonaro. Não dá para mudar o candidato”.
A convocação presidencial imediatamente ganhou destaque em sites, tevês, rádios, jornais – e nas redes sociais bolsonaristas. Passou-se a temer a repetição do que o Brasil havia assistido em 6 e 7 de setembro de 2021. Naqueles dias, caminhões tentaram invadir o prédio do STF, Bolsonaro gritou que Alexandre de Moraes deveria sair do Supremo e deixar de ser “canalha” e disse que não cumpriria mais decisões judiciais assinadas pelo ministro.
Como nos contou um servidor que trabalha no quarto e último andar do Palácio do Planalto, caminhoneiros seguiram vagando pelo edifício-sede da Presidência da República durante todo o dia 8, tentando em vão falar com Bolsonaro ou com ministros que trabalham ali em busca de algo a dizer a suas bases. Do lado de fora, nas redondezas dos ministérios, centenas de manifestantes recolhiam cadeiras e desmontavam barracas de acampamento, a tristeza estampada no rosto.
O 7 de setembro foi o melhor dos mundos: Jair ganhou com as imagens de multidões, e Bolsonaro, com as demonstrações de radicalismo.
Após a bravata golpista, Bolsonaro se viu isolado e obrigado a recuar, o que fez assinando uma carta rascunhada pelo antecessor Michel Temer, que viajou a Brasília para participar da operação abafa montada pelo Centrão. Foi uma ducha de água fria no bolsonarismo mais radical – na noite do dia 6, caminhoneiros gravaram um vídeo na periferia de Brasília, às lágrimas, comemorando a decretação de estado de sítio pelo presidente. Haviam sido enganados por fake news.
Como Bolsonaro reagiria no 7 de setembro de 2022 passou a ser a pergunta de 1 milhão de dólares em Brasília. A campanha e a ala política do bolsonarismo passaram a tentar convencer jornalistas de que o presidente emitia à base sinais de moderação. “É preciso saber ler Bolsonaro”, disse o ministro que nos recebeu em 31 de agosto, fazendo menção a um tuíte que o presidente havia publicado na véspera, em que dizia que o 7 de setembro seria “lindo”, “o dia de todos os brasileiros” e de “renovar nossa luta pela liberdade”.
Quando parecia que o Centrão havia vencido a disputa, em 4 de setembro, Bolsonaro acenou para sua base radical durante discurso em Novo Hamburgo. Falando sobre os empresários que fazem parte de sua base radical e foram alvo de mandados de busca e apreensão por defenderem um golpe militar, atacou o “vagabundo atrás da árvore ouvindo a nossa conversa” e acrescentou: “mais vagabundo é quem dá canetada”. Os mandados foram emitidos por Alexandre de Moraes.
O 7 de setembro, afinal, foi o melhor dos mundos para Jair e para Bolsonaro. O Centrão saiu satisfeito, porque o presidente não falou das urnas, mas principalmente por conta das multidões reunidas em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo – são imagens valiosas para a campanha se contrapor, na televisão e nas redes sociais, ao consistente segundo lugar nas pesquisas. Já o bolsonarismo fanatizado exibiu-se como sempre: houve uma profusão de faixas pedindo o fechamento do STF e a destituição de seus ministros, um golpe militar e a prisão de adversários políticos.
Jair ganhou com as imagens aéreas das multidões vestindo verde e amarelo. Bolsonaro colheu as demonstrações de lealdade e radicalismo habituais de sua horda de fanatizados. As fotos das aglomerações são tudo com que os criadores de Jair sonhavam. No close, o que vemos é puro Bolsonaro. Se isso bastará para que Jair ganhe os votos de que precisa para se reeleger conforme os planos do Centrão, ainda é cedo para dizer. Mas já dá para cravar que, caso perca as eleições, Bolsonaro tem um exército a seu dispor para tumultuar o país.
E, se Jair vencer, Bolsonaro será reeleito presidente.
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