A histĂłria se repete. Edir Macedo, lĂder da Igreja Universal do Reino de Deus, se prepara para abandonar a candidatura Ă reeleição de Jair Bolsonaro Ă PresidĂȘncia da RepĂșblica, diante de uma provĂĄvel vitĂłria do ex-presidente Luiz InĂĄcio Lula da Silva. A revelação foi feita, em conversas reservadas, por um bispo da Universal. Ex-pastores e outros religiosos confirmaram as conversas ao Intercept.
Macedo jĂĄ pulou do barco na campanha de seu entĂŁo candidato Ă PresidĂȘncia, Geraldo Alckmin, em 2018, Ă Ă©poca no PSDB. Ăs vĂ©speras do primeiro turno da Ășltima eleição, o bispo abandonou Alckmin, por acaso hoje o vice de Lula, ao intuir que Bolsonaro seria o provĂĄvel vencedor nas urnas.
A avaliação é de que a eleição não serå decidida no primeiro turno. No segundo, a igreja faria acenos aos dois lados. Macedo não quer se arriscar a perder verbas publicitårias da Record, vindas do governo federal, ao declarar apoio oficial a Lula. A emissora do bispo foi a mais beneficiada com fatias da publicidade federal no começo do governo, e, ao final de 2021, a Globo recuperou essa liderança, pois Bolsonaro precisou também da emissora carioca para divulgar suas realizaçÔes. Assim, segundo pessoas próximas à Universal, Macedo, com receio de secar a fonte, farå o jogo duplo num eventual segundo turno, liberando bispos e pastores candidatos da igreja, então jå eleitos, para pedir o voto de fiéis ao petista.
Bolsonaro, nesse caso, deixarå de ser enaltecido, e Lula não mais criticado nos meios de comunicação ligados à Universal. Dessa forma, Edir Macedo mantém o pé em duas canoas e fica bem com qualquer um que vencer a eleição.
A estratĂ©gia atribuĂda a Macedo vazou apĂłs conversas que teriam sido mantidas, em julho, por dirigentes da campanha petista com o ex-deputado federal Bispo Rodrigues, homem de confiança de Macedo e um dos poucos remanescentes do nĂșcleo fundador da Universal. Segundo religiosos prĂłximos Ă cĂșpula da igreja ouvidos pelo Intercept, o candidato do PT teria pedido um encontro com Macedo para falar sobre as eleiçÔes, mas o bispo evitou recebĂȘ-lo. Macedo teria indicado entĂŁo Rodrigues, que foi coordenador polĂtico da igreja durante muitos anos, para atender os emissĂĄrios petistas.
Rodrigues havia desaparecido da cena polĂtica. Ele foi preso em 2006 na Operação Sanguessuga, um esquema de compra de ambulĂąncias superfaturadas, e novamente em 2013, apĂłs condenação por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do mensalĂŁo. Oficialmente, Rodrigues foi afastado. Mas continua dando expediente na sede da igreja no Rio, segundo integrantes da instituição. Na coordenação polĂtica da Universal, o cargo de Rodrigues foi ocupado depois pelo bispo Marcos Pereira, deputado federal e presidente do Republicanos. Hoje, o coordenador polĂtico da igreja Ă© o bispo Alessandro Paschoal.
Foto: Bruno Miranda/Folhapress
A igreja dividida
A assessoria de comunicação de Lula disse nĂŁo ter qualquer informação sobre possĂveis contatos de membros do partido com a Universal. E afirmou nĂŁo acreditar que a informação sobre o apoio proceda, âpois seria o apoio mais disfarçado do mundo, principalmente devido a ataques da Record [emissora do bispo] Ă campanha petistaâ.
A Universal tambĂ©m negou veementemente a reaproximação. A igreja afirmou ao Intercept que “tais afirmaçÔes ou rumores, alĂ©m de ridĂculos e mentirosos, cheiram a mais uma tentativa desesperada do PT de confundir o povo evangĂ©lico, que jĂĄ acordou para o fato de que Ă© impossĂvel ser cristĂŁo e ser de esquerda”.
As fontes ouvidas pelo Intercept confirmaram as conversas e afirmaram que, publicamente, o discurso da igreja Ă© outro. Desde o começo do ano, membros da Universal adotaram um tom feroz contra o PT. Ainda em janeiro, o bispo Renato Cardoso â casado com Cristiane, a primogĂȘnita de Edir Macedo â, publicou um artigo no site da igreja dizendo que âcristĂŁo nĂŁo pode votar em partido de esquerdaâ.
Em agosto, a Universal continuou fazendo duras crĂticas a Lula e ao PT. Ainda no site da igreja, Cardoso chamou Lula de âex-presidiĂĄrioâ ao comentar declaração do petista, em uma entrevista, de que nĂŁo era candidato âde nenhuma facção religiosaâ. O genro de Macedo tambĂ©m disse que Lula âem temporada na cadeia, nĂŁo aprendeu o que Ă© facção criminosaâ. E atacou: âO Ăłdio do candidato Ă PresidĂȘncia da RepĂșblica Luiz InĂĄcio Lula da Silva contra os cristĂŁos Ă© notĂłrio. O ex-presidiĂĄrio nĂŁo consegue conter a mĂĄgoa que sente das igrejas cristĂŁs, por nĂŁo conseguir o apoio delas para o seu projeto de retorno ao poderâ.
HĂĄ uma avaliação entre religiosos prĂłximos Ă Universal de que o genro Cardoso mostra menos habilidade polĂtica neste momento ao jogar de forma extremamente dura em relação a Lula e ao PT, e nĂŁo considera a possibilidade de uma aliança em breve. NĂŁo Ă© a mesma postura do prĂłprio Edir Macedo e de outros bispos da igreja mais experientes, que jĂĄ conviveram muito bem com Lula no passado. Haveria, entĂŁo, uma divisĂŁo.
âAgora, o Macedo vai aguardar o resultado do primeiro turno, esperar para ver como o povo estĂĄ reagindo e depois âcantar a pedraâ para o lado que for mais interessante. Se o presidente Lula vencer, ele vai aparecer do lado do Lula de novo e estar na foto com o Lula. Vai ficar tudo bem e dar tudo certo para eleâ, me disse o ex-pastor da Universal Davi Vieira, sobrinho de dois bispos e dono de um canal em redes sociais em que divulga informaçÔes sobre os bastidores da igreja.
âHĂĄ uma divisĂŁo entre Bolsonaro e Lula na Universal e nas igrejas em geral. Isso vai muito da pessoa. E o Edir Macedo Ă© CentrĂŁo. Para se manter no poder, com qualquer um que ganhar, ele tem de fazer o jogo. O CentrĂŁo trabalha dessa forma. Uma parte estĂĄ com um, outra parte estĂĄ com o outro. O que se quer Ă© estar no poder, nĂŁo importa quem vençaâ, atestou o apĂłstolo MĂĄrcio LĂbano, presidente da Associação de Ministros EvangĂ©licos Interdenominacionais, a Amei, e prĂłximo da Igreja Universal.
LĂder do ministĂ©rio Luz do Mundo, de Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, LĂbano trabalhou desde os anos 2000 nas campanhas vitoriosas do bispo Marcelo Crivella, do Republicanos, sobrinho de Edir Macedo, ao Senado e Ă prefeitura do Rio, e tambĂ©m em outras campanhas derrotadas Ă prefeitura e ao governo fluminense.
âMacedo estĂĄ com o Bolsonaro, porque ele Ă© o atual presidente e estĂĄ no poder. âEstĂĄ no poder, eu estou contigo. Mas minha segunda equipe estĂĄ contra eleâ. Tem uma segunda equipe atuando, claro, tem que ter. Ă assim que o CentrĂŁo funciona. Ă a polĂtica. JĂĄ tem outros fazendo o meio de campo. Com qualquer um, ele [Macedo] ficarĂĄ bemâ, anunciou o apĂłstolo.
‘O Edir Macedo Ă© CentrĂŁo. Para se manter no poder, com qualquer um que ganhar, ele tem de fazer o jogo’.
TambĂ©m bastante atuante em campanhas envolvendo evangĂ©licos no Rio, o advogado Francisco TenĂłrio, ex-seguidor da Universal e da Deus Ă© Amor e hoje consultor e assessor de instituiçÔes religiosas, corroborou a avaliação. âOs bispos da Universal, nĂŁo todos, estĂŁo fazendo jogo duplo. Alguns deles elogiam o governo Lula. Um deles, vereador, ex-deputado e antigo na igreja, me disse em seu gabinete exatamente assim: âO governo Lula foi um governo muito bom. Ele vai voltar, com certeza, e nĂłs vamos estar ao lado para ajudarâ. Esse Ă© um dos religiosos que estĂĄ tecendo elogios ao Lula, jĂĄ apoiando e condenando atos do Bolsonaro em reuniĂ”esâ, revelou TenĂłrio.
âHĂĄ discurso por interesses. Se tiver uma verba boa agora de publicidade para a Record, podem atĂ© dar uma estocada no Lula. SenĂŁo, Ă© o jogo duplo. No segundo turno, talvez o Republicanos nĂŁo apoie expressamente o Lula, mas os bispos candidatos que forem eleitos serĂŁo liberados para apoiar o ex-presidenteâ, afirmou.
TenĂłrio lembrou que bispos que apoiam hoje a candidatura de Marcelo Crivella Ă CĂąmara dos Deputados, no Rio, declararam, em uma reuniĂŁo em fevereiro, a importĂąncia de eleger o ex-prefeito para o Republicanos formar uma boa bancada âe barganhar uma participação no governo Lula em troca do apoio no Parlamentoâ.
Ele observa ainda que vereadores ligados Ă Universal vĂȘm se aproximando nos Ășltimos meses de parlamentares mais Ă esquerda na Assembleia Legislativa e na CĂąmara Municipal do Rio. Vereadores do Republicanos, por exemplo, votaram e discursaram a favor da recente cassação do colega Gabriel Monteiro, do PL, um aliado de direita e bolsonarista, acusado de estupro de vulnerĂĄvel e suspeito de assĂ©dio sexual.
Foto: Paulo Fridman/Bloomberg via Getty Images
Com o poder sempre
Ă unĂąnime entre apoiadores e ex-integrantes da Universal que Edir Macedo nĂŁo aposta em cavalo perdedor. O bispo sempre esteve ao lado do poder e procura manter boas relaçÔes com os governantes de plantĂŁo. O lĂder da Universal apoiou as campanhas ou participou de alguma forma das gestĂ”es de todos os presidentes da RepĂșblica desde o perĂodo da redemocratização no paĂs â Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz InĂĄcio Lula da Silva, Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro â, por mais dĂspares que sejam as coloraçÔes polĂticas de cada um deles.
Se um nome da preferĂȘncia de Macedo em alguma disputa polĂtica der sinais de fraqueza e titubear, ele nĂŁo tem dĂșvidas de deixar o aliado pelo caminho.
Nas dĂ©cadas de 1980 e 1990, o bispo chamou Lula e o PT de representantes do âdemĂŽnioâ e de âsatanĂĄsâ, em uma intensa campanha classificada como ‘anti-Lula’. Depois, conviveu sem problemas com o petista e indicou representantes para ministĂ©rios nos governos Lula e Dilma Rousseff, durante os 14 anos de gestĂŁo do PT.
PT, PSDB, PMDB juntos: a inauguração do Templo de SalomĂŁo teve a presença da presidente da RepĂșblica Dilma Rousseff, de seu entĂŁo vice, Michel Temer, do entĂŁo governador Geraldo Alckmin e do prefeito de SĂŁo Paulo Fernando Haddad, entre outros polĂticos do primeiro escalĂŁo.
Foto: Reprodução/Facebook
Na eleição de Lula em 2002, o vice do petista, o senador mineiro José Alencar, foi candidato pelo PL, partido que hospedava à época a base parlamentar da Igreja Universal. Na reeleição, em 2006, Alencar foi vice novamente, pelo PRB, o partido criado com o apoio da igreja de Macedo. Hoje, é o Republicanos.
Lula surgiu no sindicalismo e na polĂtica como um forte aliado da Igreja CatĂłlica progressista e suas comunidades eclesiais de base, mas sempre conviveu bem com Edir Macedo. Quando o bispo foi preso, em 1992, acusado de supostas prĂĄticas de estelionato, charlatanismo e curandeirismo â e passou 11 dias num distrito policial na zona oeste paulistana â, o petista, apesar de ser apontado como um âdemĂŽnioâ pela Universal, foi um dos poucos polĂticos a vir a pĂșblico para manifestar solidariedade a Macedo.
âPrender sob o argumento de que ele engana as pessoas com sua religiĂŁo Ă© um absurdo. Os seguidores tĂȘm fĂ© naquilo que querem. Se nĂŁo tomarmos cuidado, daqui a pouco a polĂcia estĂĄ na sua casa, prendendo qualquer um, sem nenhum critĂ©rioâ, disse, na Ă©poca, o entĂŁo dirigente do PT.
Quando presidente, Lula ajudou tambĂ©m na expansĂŁo da Universal em paĂses africanos. O petista tinha proximidade e excelentes relaçÔes, por exemplo, com Crivella, que foi bispo na Ăfrica do Sul, depois um senador aliado e ministro da Pesca de Dilma Rousseff.
“A Universal, com certeza, jĂĄ tem setores acionados e tentĂĄculos de diĂĄlogo direto com Lula. NĂŁo haverĂĄ grandes mudanças. Macedo e outros evangĂ©licos, como o seu cunhado R.R. Soares [da Igreja Internacional da Graça de Deus], jĂĄ dialogam hĂĄ algum tempo com o lulismo e com o PT, sem dificuldade alguma. O setor evangĂ©lico hegemĂŽnico vai manter um diĂĄlogo com o poder estatal no Brasil, mesmo com a derrota de Bolsonaro e do projeto polĂtico ao qual eles estĂŁo vinculados no momentoâ, prevĂȘ o teĂłlogo protestante FĂĄbio Py, professor do programa de pĂłs-graduação em PolĂticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense.
‘A Universal nĂŁo tem posição polĂtica fixa e duradoura. Ela tem interesses a defender e busca sempre apoio polĂtico para realizĂĄ-los’.
âIsso jĂĄ foi feito no passado. NĂŁo serĂĄ novidade. JĂĄ se acusou Lula de ser filho do diabo e houve alinhamento depois. Um apoio direto nĂŁo vai acontecer agora, mas no segundo turno as armas serĂŁo recolhidas, de um lado ou de outro. A igreja vai se manter com um discurso nulo ou discurso dos dois lados. Apoiando ambos, a igreja pode negociar muito bem a aliança com o novo governanteâ, disse Py.
O teĂłlogo e professor avalia que esse quadro sĂł mudarĂĄ caso Bolsonaro cresça nas pesquisas. âMuda se o Bolsonaro chegar muito prĂłximo do Lula. Ele estĂĄ liberando muita verba, inclusive para meios televisivos. Por isso, haverĂĄ acenos aos dois ladosâ, afirmou Py, que mantĂ©m conversas com pastores da Universal.
Confirmando-se a possĂvel reaproximação com Lula, lĂderes evangĂ©licos nĂŁo terĂŁo muita dificuldade para explicar narrativas contraditĂłrias a seus fiĂ©is, afirmou o cientista de religiĂŁo Leonildo Silveira Campos, ex-professor de programas de pĂłs-graduação das universidades Mackenzie e Metodista.
âO primeiro presidente posterior Ă redemocratização, Fernando Collor, recebeu total apoio dos evangĂ©licos. O discurso de um jovem e dinĂąmico polĂtico disposto a levar o Brasil para longe da esquerda naufragou nas ĂĄguas da corrupção, provocando o impeachment. ApĂłs o fracasso de Collor, os neopentecostais, em especial, divulgaram a versĂŁo de que o entĂŁo presidente havia introduzido cultos satĂąnicos nos porĂ”es da Casa da Dinda [sua residĂȘncia oficial]. Entregue aos demĂŽnios, o governo chegou ao fim devidamente explicado pelos ex-apoiadores evangĂ©licosâ, lembrou Campos. âPodemos intuir que, no caso de derrota de Bolsonaro, muitos lĂderes evangĂ©licos arrumarĂŁo explicaçÔes facilmente incorporadasâ.
Para Campos, os bispos e pastores que demonizaram Lula e depois âpassaram a tirar proveito e a apoiar o governo petistaâ negociarĂŁo sem problemas com Lula e Alckmin, caso a dupla vença a eleição. âEssa tem sido a postura dos evangĂ©licos de um modo geral. Seus lĂderes sĂŁo incapazes de se colocar contra os que estĂŁo no poder. Tradicionalmente, tem se afirmado que a Universal nĂŁo tem posição polĂtica fixa e duradoura. Ela tem interesses a defender e procura sempre buscar apoio polĂtico para realizĂĄ-los. Entre esses interesses, estĂĄ a sua posição privilegiada no mundo das comunicaçÔes, com cadeias de rĂĄdio e televisĂŁo, e no mundo dos negĂłcios com as empresas de Macedoâ, observou.
Macedo, como outros lĂderes evangĂ©licos, nĂŁo vai dizer depois: âdesculpem, o apoio ao Bolsonaro foi um equĂvoco de nossa parteâ, alertou Campos. âMas Macedo buscarĂĄ formas de conviver relativamente bem com o novo governo, que, sem dĂșvida, se abrirĂĄ aos adversĂĄrios de hoje em busca de apoio necessĂĄrio para uma melhor governançaâ, acredita o estudioso.
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