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O Ministério da Defesa contratou em fevereiro de 2021 uma empresa para monitorar redes sociais. Seria um serviço comum – e necessário – de análise de reputação e mídia na internet. Mas o governo se recusa há meses a divulgar os relatórios produzidos pela Supernova Serviços de Informação. E a justificativa não poderia ser mais esdrúxula: a pasta alega que os conteúdos “podem ser instrumento de narrativas mal-intencionadas e vazias de boa-fé, induzindo julgamento impróprio e prejudicial ao Ministério”. A resposta foi dada em negativa a um recurso de um pedido feito via Lei de Acesso à Informação.
A Supernova Serviços de Informação LTDA foi escolhida, por meio de um edital, para monitorar 24 horas por dia, sete dias por semana, a imagem do órgão nas redes sociais. Segundo o contrato, a Supernova deveria indicar “repercussão (o quê), perfis influenciadores (quem), mídia (onde, quando), reputação e polarização (como)”.
O edital, lançado em dezembro de 2020, era exclusivo a pequenas empresas. O menor preço venceria. O Ministério da Defesa mencionou uma diretriz da Política Nacional de Defesa, a PND, na justificativa para a contratação: “sensibilizar e esclarecer a opinião pública, com vista a criar e conservar uma mentalidade de Defesa Nacional, por meio do incentivo ao civismo e à dedicação à Pátria”.
Para o governo, o desempenho da área de comunicação institucional do ministério não estava satisfatório. O monitoramento de mídia era feito apenas em jornais matinais e revistas semanais – na internet, era inconstante. Para o ministério, monitorar redes sociais era “crucial”. “Atualmente, as demandas na área de comunicação social têm demonstrado para o Ministério da Defesa e para as autoridades do alto escalão que as notícias avançam em uma velocidade nunca antes vista”, diz o edital. “A correta informação disponibilizada nos mais diversos canais de comunicação disponíveis, evitam a evolução de crises que podem desencadear-se e ficarem incontroláveis”.
Por R$ 3,9 mil por mês, totalizando um contrato de R$ 47,7 mil, a Supernova foi escolhida. Segundo o contrato, o monitoramento também deveria ter tendências, cenários e “demais informações estratégicas oportunas à tomada de decisão, tal como engajamento negativo”. “Fatos intempestivos que tenham obtido destaque no ciberespaço, e que de alguma forma estejam relacionados ao objeto monitorado” deveriam ser alertados ao Ministério da Defesa. A empresa forneceria o resultado “de forma clara e por intermédio de gráficos informativos e textos explicativos”.
Como entregáveis, o Ministério da Defesa pediu dois relatórios diários, com menções, assuntos mais comentados, perfis mais influentes, polarização e mosaicos de palavras. Eles deveriam ser organizados por ordem cronológica e “perfil mais influente”. É o governo que determinaria os temas a serem monitorados pela empresa.
Tento desde abril deste ano ter acesso aos relatórios por meio da Lei de Acesso à Informação. As respostas criativas do governo para sucessivas negativas levantam algumas questões sobre o teor desse monitoramento.
A primeira recusa argumentava que eram muitos arquivos – o que demandava muito trabalho – e que os relatórios eram “propriedade intelectual” da contratada e foram “cedidos” ao ministério mediante pagamento. Além disso, argumentou o governo, no âmbito da Defesa seria mantido, “independentemente de classificação, acesso restrito em relação às informações e documentos sob seu controle e posse armazenados em qualquer suporte”, relacionados à “informações pessoais relativas à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas” e dados pessoais.
Recorri, é claro. Embora os documentos tenham sido produzidos por uma empresa, eles foram comprados mediante o uso de verbas públicas por um ente público. Ou seja: estão sujeitos à publicidade prevista na Lei de Acesso à Informação e a outras regras inerentes à administração pública. A desculpa da propriedade intelectual também não cola: o próprio governo afirmou que as informações foram “cedidas mediante pagamento”. Ou seja, qualquer direito de propriedade intelectual caiu quando as informações foram cedidas ao governo, tornando-se públicas.
Questionei tudo isso no primeiro recurso, também negado. O Ministério da Defesa disse que havia mais de 1,5 mil relatórios fornecidos até o momento, totalizando 19,5 mil páginas. E que os conteúdos não eram “informações acabadas”. Foi aí que falou, pela primeira vez, que a “análise individualizada, desconexa ou fora de momento é passível de equívoco de entendimento ou de interpretação” e que, até o momento, o material não tinha gerado nenhum ato e nem “mudança de direção sólida” nos processos da pasta. Disse também que a adequação do material para divulgação demandaria “esforço adicional” e prejudicaria a Supernova, pois a exposição de sua análise e metodologia poderia causar “desvantagem comercial”.
Por fim, o Ministério da Defesa evocou o famigerado inciso 1 do artigo 31 da LAI, aquele do sigilo de 100 anos para informações pessoais, para negar o acesso. “A divulgação segura de conteúdo, de forma a preservar informações pessoais, requer trabalho adicional de adequação, considerado não razoável”, disse o ministério. Ou seja: os relatórios brutos, individualizados, poderiam expor informações pessoais, portanto protegidas, e o governo achou muito trabalho adequar esse material para publicização.
Hm. Se realmente se trata de um monitoramento de redes sociais – ou seja, com informações colhidas em fontes abertas e públicas, disponíveis na internet –, não há necessidade de sigilo. Ou a empresa estava monitorando informações pessoais sigilosas, relativas à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas? Foi assim que recorremos mais uma vez, em segunda instância. E, novamente, o governo argumentou a mesmíssima coisa, negando o acesso.
Resolvi fazer um novo pedido, estabelecendo um período específico dos relatórios – assim, o número de documentos seria muito menor e não demandaria o tal “trabalho adicional”. Mais uma vez, o pedido foi negado. Pelos mesmos motivos. Desta vez, não recorri – ainda. Mas resolvi contar a luta para conseguir uma documentação que, em princípio, deveria ser pública.
Qual é o problema de divulgar os relatórios? O que há neles? Estaria o Ministério da Defesa classificando influenciadores e pessoas comuns na internet como “detratores”, como fez o relatório do Ministério da Economia divulgado em 2020? Por que a divulgação desses documentos poderia levar a “narrativas mal-intencionadas”? Cabe a um órgão público julgar o tipo de “narrativa” que será dada a um documento público?
Para essa última, eu sei a resposta: não. Nenhuma solicitação de informação precisa ser justificada ou motivada. Mas, para um órgão que parece empenhado em controlar a narrativa sobre si mesmo, faz sentido esconder informações para evitar que algo potencialmente comprometedor venha à tona.
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