Na surdina, iFood lança ofensiva e divide movimento para conseguir apoio para a proposta, entregue à deputada Luisa Canziani.

Dividir para conquistar

Exclusivo: iFood quer criar nova categoria de trabalho para suprimir direitos com novo projeto de lei

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A ideia era ouvir como os entregadores “pensam o futuro”. Na prática, a reunião, realizada por videochamada em maio deste ano, foi um encontro para o iFood apresentar seu ambicioso plano de criar uma nova regulamentação para entregadores e motoristas de aplicativo. Chefe de “comunidade” da empresa, uma subárea do setor de políticas públicas, a funcionária explicou pausadamente aos entregadores presentes
o anteprojeto para previdência e sua “segurança jurídica” – um texto, segundo ela, escrito pelo próprio iFood.

Na prática, o iFood quer criar uma nova categoria de trabalhadores, o Prestador de Serviço Independente. Sem benefícios da CLT, como 13º salário, férias remuneradas ou FGTS, a nova categoria profissional se aproxima do MEI e conta apenas com os benefícios previdenciários, como aposentadoria ou afastamento por doença.

O Intercept obteve o texto do anteprojeto, que foi apresentado a algumas lideranças e é vendido pelo iFood como uma proposta para dar segurança aos entregadores. Logo em seus primeiros parágrafos, ele cria duas novas categorias que podem mudar a forma como é feita a regulamentação do setor. As empresas seriam “Optecs” – ou Operadoras de Plataforma Tecnológica de Intermediação. Já os trabalhadores virariam PSI, ou Prestadores de Serviços Independentes. A ideia é fazer com que a relação entre os dois seja comercial e não de trabalho, o que ajudaria a proteger o iFood em casos de eventuais ações trabalhistas.

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Procurado, o iFood disse ao Intercept que mantém diálogos constantes com formadores de opinião, representantes da sociedade civil, associações e diversos parlamentares e desde junho de 2021 está engajado em dialogar “para construir um modelo que inclua entregadores no sistema previdenciário e traga proteções para os trabalhadores de plataformas digitais”. Sem responder às perguntas sobre o anteprojeto de lei, a empresa reafirmou seu respeito às instituições e leis vigentes. Questionada sobre as falas na reunião, o iFood afirmou que “rechaça a acusação feita” – embora nenhuma acusação tenha feito parte dos questionamentos.

Moto Couriers Strike And Protest In Sao Paulo

Empresa articulou eventos e encontros com associações de entregadores. Mas eles alegam não terem sido ouvidos na construção do anteprojeto.

Foto: Gustavo Basso/NurPhoto via Getty Images

Segurança jurídica (para as empresas)

Se realmente apresentado por um parlamentar, aprovado pelo Congresso e instituído como política pública, todos os trabalhadores de aplicativo do Brasil – 1,5 milhão, na estimativa colocada pela empresa no texto do anteprojeto – contribuiriam automaticamente para o INSS, com uma alíquota de 11% de sua média salarial mensal. Na proposta, dos 11%, 7,5% seriam responsabilidade do iFood, da Uber ou de qual fosse a companhia, e 3,5% dos funcionários. Mas o valor, a funcionária do iFood ressaltou, ainda não está fechado.

“Ter a previdência para os motocas é perfeito. Descontar direto das corridas deles é melhor ainda, que não tem risco de eles ficarem sem”, disse ao Intercept Edgar Francisco da Silva, o “Gringo”, presidente da Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil. “A agonia é que o iFood está para aprovar essa previdência para construir uma nova relação, que não dê direitos trabalhistas a quem tem direitos. Eles querem legalizar a clandestinidade”.

Apesar de vender o anteprojeto de lei como uma proposta de segurança previdenciária, os benefícios para as empresas do setor vão além de uma massa de trabalhadores que poderia se aposentar. A justificativa presente no anteprojeto diz garantir “segurança jurídica para os trabalhadores”, que vão ter definido o seu regime de trabalho. Na verdade, a “segurança” versa muito mais sobre as empresas do que sobre os trabalhadores.

Na justiça, é comum que as empresas da área se defendam se posicionando como empresas de tecnologia, e não de entrega de comida ou de transportes – que teriam responsabilidade sobre os trabalhadores que prestam o serviço. A proposta do iFood pode mudar isso. “O anteprojeto coloca as empresas como meras intermediadoras e como empresas de tecnologia, que é a narrativa que elas tentam se utilizar para se eximir de qualquer responsabilidade jurídica em relação ao trabalho realizado nas plataformas”, disse Renan Kalil, procurador do Ministério Público do Trabalho de São Paulo, que analisou a minuta do anteprojeto a pedido do Intercept. Para Kalil, o texto exclui de antemão a possibilidade de se pleitear uma possível relação de emprego – e dificulta que juízes, promotores e outros atores do sistema de justiça trabalhista possam aplicar a lei.

‘Eles querem legalizar a clandestinidade.’

O procurador ainda lembra que critérios listados no texto como definidores dos PSIs, como liberdade para escolher os dias em que vão trabalhar e ausência de relação de exclusividade não impedem, por si, o reconhecimento de uma relação de emprego. “O anteprojeto permite a exclusão desses trabalhadores da proteção prevista na CLT a partir de requisitos que sequer são reconhecidos por juízes e promotores como passíveis de afastar a relação de emprego”.

A justificativa do anteprojeto também diz que “a maioria dos profissionais deseja continuar como trabalhadores independentes”, além de ressaltar que a falta de vínculo é uma posição “praticamente unânime” do Tribunal Superior do Trabalho. Não é. Um levantamento de decisões sobre vínculo de trabalho de motoristas de aplicativo publicado pelo Intercept em abril mostra que Uber e 99 criaram um sistema de acordos judiciais que manipula a criação de jurisprudência negativa contra as empresas em processos trabalhistas. Elas reconhecem vínculos de trabalho, mas agem para que a justiça não faça o mesmo. Com o projeto de lei do iFood, isso não vai mais ser um risco.

Nem de esquerda, nem de direita

Na reunião do iFood com os entregadores, a funcionária contou aos presentes que a empresa escolheu a dedo uma deputada para apresentar sua proposta: Luiza Canziani, do PSD paranaense, classificada como “nem de direita, nem de esquerda”. “Se a gente apresenta para algum deputado que é de esquerda ou de direita, polariza, separa. E o que a gente precisa é que o negócio passe. Ela não é de nenhum assunto polêmico, mulher, índios, nada. Ela só era uma pessoa que ia apresentar e deixar o projeto rolar”, disse a funcionária.

Na verdade, Canziani tem outro atrativo: desde outubro de 2021, ela é presidente da Frente Digital, bancada parlamentar criada para discutir assuntos relacionados a tecnologia e inovação no Congresso. A frente, carinhosamente apelidada pelo Intercept de “bancada do like”, não é apenas uma bancada temática. Ela foi pensada e articulada por gigantes da tecnologia, como Google e o próprio iFood, e representa ativamente os interesses da indústria nas discussões na Câmara. Seu coração e cérebro é o Instituto Cidadania Digital, um think tank que teve como primeiro sócio o hoje diretor de políticas públicas do iFood, João Sabino.

Os trabalhos da Frente Digital, representada pelos deputados, e do Instituto, próximo à indústria, se confundem. Responsável pelo assessoramento técnico e jurídico da frente e pela interlocução com a indústria, hoje o presidente do Instituto Cidadania Digital é Felipe Melo França, que se apresenta como representante da Frente Digital.

Com o anteprojeto em mãos, o iFood começou a peregrinar atrás de apoio. Como estratégia, se dividiu em várias frentes, com diferentes interlocutores. Em comum: os entregadores afirmam não terem sido ouvidos – e acusam a empresa de atuar para dividir a categoria.

A deputada federal Luisa Canziani (PSD-PR) durante entrevista.

Nem de esquerda, nem de direita: Luisa Canziani foi relatora do Marco Legal da Inteligência Artificial, considerado muito complacente com as empresas.

Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

Dividir para conquistar

Em dezembro de 2021, João Sabino, diretor de políticas públicas do iFood, recebeu uma mensagem. Era Edgar “Gringo”. O líder da Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil, a AMABR, queria saber onde era o Fórum de Entregadores, evento anunciado como “nacional” pela empresa, e por que ele não havia sido convidado. “Essa é outra turma, que também precisamos conversar. Uma coisa não exclui a outra”, respondeu Sabino em mensagens às quais o Intercept teve acesso. “Nosso canal de comunicação com você já está aberto há tempos”, garantiu o executivo.

Gringo, então, perguntou: “mas por que separar as turmas?”. Sabino tentou marcar uma reunião presencial. “Eu quero participar desse fórum. Se está participando outra associação, por que a nossa que é a mais representativa em São Paulo não está?”, questionou Gringo. Sabino afirmou que não havia nenhuma associação nem sindicato no evento. “Tem sim, porque eu sei quem está indo”, respondeu o líder da AMABR.

O Intercept conversou com lideranças de sete organizações. Três delas confirmaram que estiveram no evento – os grupos Revolucionários dos Apps, Liderança e Amaedf, a Associação dos Motofretistas Autônomos e Entregadores de Aplicativo do Distrito Federal e Entorno. Em reportagem publicada no Brasil de Fato, entregadores afirmam que muitas entidades não foram convidadas para o evento – eles acusam o iFood de tentar “criar um conflito” entre os trabalhadores.

Naquele mesmo ano, vale lembrar, o iFood começou a rodar sua máquina oculta de propaganda para desmobilizar o movimento de entregadores, estratégia revelada em uma reportagem da Agência Pública.

As sete lideranças ouvidas pelo Intercept confirmam que ficaram sabendo do anteprojeto proposto pelo iFood. Apesar das dissidências internas, todos são contrários ao anteprojeto. Quatro afirmaram que o iFood chegou com o texto pronto, e as lideranças dos movimentos alegam que não foram ouvidas em nenhum momento para a elaboração do texto.

‘Ela não é de nenhum assunto polêmico, mulher, índios, nada. Ela só era uma pessoa que ia apresentar e deixar o projeto rolar.’

Ao tomar conhecimento do anteprojeto, Gringo procurou a assessoria de Luiza Canziani. Segundo ele, o chefe de gabinete da deputada teria dito que “mentiram para ele” sobre a participação da categoria na construção do anteprojeto e garantiu que, enquanto lideranças não fossem ouvidas, a ideia não seria pautada.

Em 24 de março, dois dias após a data prevista para a apresentação do anteprojeto no Congresso – que não aconteceu –, Felipe França, presidente do Instituto Cidadania Digital, também se envolveu pessoalmente na discussão. Em conversa privada, ele afirmou ao Gringo que “todos entenderam que precisam sentar com você e que não é hora de protocolar [o projeto de lei]”, por isso a proposta havia sido tirada de pauta.

A AMABR produziu, então, um documento com uma análise da proposta que lista 20 pontos de atenção. Entre eles, a impossibilidade de reconhecimento do vínculo empregatício nos moldes da CLT – tratando o serviço estritamente como um acordo comercial, o que a organização julga ser uma “relação desigual entre trabalhadores e aplicativo” – e a imprecisão de que a proposta segue decisões unânimes da justiça do trabalho. Mesmo após os contatos com o gabinete de Canziani e França e a produção do documento, a AMABR afirmou que nunca foi convidada pela parlamentar ou pelo iFood para discutir o anteprojeto.

Questionado sobre a intermediação de informações sobre o anteprojeto de lei com o gabinete de Canziani e o presidente da AMABR, o Instituto Cidadania Digital disse que deve “ouvir os múltiplos stakeholders e apresentar os diversos pontos de vista e cenários aos construtores de políticas públicas”, mas que seus membros não compõem gabinetes de parlamentares. A organização não respondeu se teve participação na redação do anteprojeto de lei recebido por Canziani.

Mesmo com o recuo da parlamentar, o iFood não desistiu. Na reunião em maio, a funcionária explicou que a empresa enfrentava um entrave político: Canziani teria ficado “com muito medo de ter alguma manifestação contra ela em época eleitoral” e, supostamente por isso, engavetou a proposta. Para confortar os entregadores, a executiva deixou claro que a empresa seguia “engajando essa proposta” na Câmara e no Senado.

A funcionária do iFood também tentou desqualificar a manifestação do sindicato. “O sindicato quer que vocês entrem no modelo CLT, porque aí vai recolher a taxa sindical, e aí volta o funcionamento. Se a gente apresentar esse modelo [criado pelo iFood], o sindicato vai ser o primeiro a gritar contra”. Ela se refere ao Sindimoto, um dos mais ferrenhos opositores ao sistema de trabalho da empresa e que já havia sido citado na reunião.

A funcionária afirmou que sabia da importância de ouvir e trocar com lideranças de entregadores. E avisou que vai “precisar da ajuda dos próprios entregadores organizados” para levar a ideia para frente. “Se a gente chegar em algum momento de negociação em que a gente precise constranger o governo, eu vou falar com os entregadores. Eu vou avisar vocês, vou falar para todos que eu tenho contato e trazer esse cenário. Eu estou pondo vocês a par para vocês também conseguirem se organizar”.

Enviamos perguntas sobre a autoria e apresentação do anteprojeto de lei ao gabinete de Canziani, além de questionamentos sobre os próximos passos e a possibilidade da proposta voltar à pauta ainda este ano, mas não obtivemos resposta. A deputada está em campanha para reeleição.

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