Vocês lembram quando diziam “uma imagem vale mais do que mil palavras”?
Pois é. Talvez nenhuma outra máxima tenha chegado a este século tão capenga e desacreditada. Com recursos como filtros digitais, deepfake, máscaras e outras formas de manipulação, se há hoje um troço no qual não dá para acreditar de primeira é no vídeo ou na foto que saltam em nossas telas.
Ao mesmo tempo, nunca falamos tanto em autenticidade, nas características supostamente reais que fazem nos apaixonar – ou odiar – algo ou alguém. Se parece autêntico, então acreditamos piamente. É aí que mora uma estratégia poderosa que consegue driblar qualquer deepfake moderninha: a velha e boa encenação. A performance que, quando bem feita, consegue ganhar corações e mentes, povo e instituições.
A que consegue alcançar, em suma, o poder.
Nessa seara, quem aparece vitoriosa e trabalhada no achaque, no grito e na emoção é a extrema direita. Donald Trump, nos EUA, Matteo Salvini e Giorgia Meloni, na Itália e, você já sabe, Jair Bolsonaro, são alguns exemplos. São todos autênticos bufões no poder, personagens de uma prática feita não nas bases da racionalidade (precária) da velha política, mas principalmente na construção do sentimento de três características que se entrecruzam: a presencialidade, a proximidade e a sensação de pertencimento.
Estas estratégias foram analisadas de maneira excelente pela pesquisadora Yvana Fechine, da Universidade Federal de Pernambuco, e pelo pesquisador Paolo Demuru, da Universidade Paulista, autora e autor de um novo livro cujo título já foi evocado aqui: “Um Bufão no Poder – Ensaios sociossemióticos” (Confraria do Vento, 2022). Nele, radiografam, através de recursos como imagens e comentários nas redes sociais, a forma poderosa com a qual Bolsonaro foi, ao longo dos anos, construindo uma relação extremamente emocional com seus eleitores – ou melhor, seus fãs. Para isso, dividiu-se entre o “homem comum” e o Messias, o cara que anda de motocicleta usando capacete barato e camisa de time falsificada e o herói sobrevivente de um ataque que luta contra “o sistema”.
Estudando sistematicamente o Facebook de Bolsonaro desde 2019, Yvana observa como o presidente (e/ou seus social media) conseguiu desenvolver, a partir do virtual, uma ligação quase pessoal entre ele e seus seguidores e apoiadores. “O que a gente vê é o exercício constante de presença, é como se as pessoas pudessem ter acesso a ele imediatamente. No livro, recolhemos vários comentários, gente dizendo coisas como ‘ah, que bom, finalmente um presidente que fala diretamente conosco’. Ele está sempre lá, dando boa noite, bom dia, desejando um bom final de semana. É um simulacro de interação direta com os seguidores”.
Ela lembra que, nos primeiros anos de mandato, o presidente fazia enquetes, atendia a pedidos dos seguidores e assim, de algum modo, permitia que eles participassem do seu cotidiano. “Quando ele estava internado [em setembro de 2019], por exemplo, continuou a fazer suas lives, era quase como se ele permitisse que as pessoas o visitassem no hospital”. É justamente dessa presencialidade compartilhada com muitos que nasce o poderoso sentimento de pertencimento, algo extremamente importante em um país classista e racista como o Brasil. Um país no qual a “velha política” (da qual Bolsonaro sempre fez parte, não esqueçamos) manteve uma relação de proximidade com o público somente nos momentos de campanha.
Percebam que tem um nó delicado aí, visto que classismo e racismo são características presentes nos discursos do presidente que, ao mesmo tempo, ao parecer um “homem comum”, acaba atraindo grande parte do público vitimizado de maneiras diversas por suas falas.
Mas o fato é que essa população de milhões, sentindo-se ultrajada e abandonada pela política (e, sabemos, esse sentimento é extremamente válido), preferiu muitas vezes entender as falas discriminatórias e mesmo criminosas do mandatário como uma mera “alopração”, ou seja, uma característica de autenticidade, do ser “gente como a gente”.
Deus no comando! 🇧🇷 pic.twitter.com/ROLF2rd9fO
— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) September 15, 2018
Esquerdas e centros, ao redor do mundo, ainda não tinham captado que nas redes a batalha – ou melhor, a magia – se espraiava. O extremismo de direita, assim, foi ocupando um vácuo construído a partir dos anos 10 do século 21, quando vimos levantes populares ao redor do mundo.
Mas o que pareciam inicialmente revoltas progressistas rapidamente se transformaram em uma busca de “valores tradicionais” carregados muitas vezes de homofobia, racismo, xenofobia, questões postas frequentemente como engraçadas, “autênticas”. A desinformação veio a reboque. Paolo Demuru destaca algo absolutamente relevante nesta disputa: para responder a esse cenário, esquerdas e centros decidiram adotar um discurso repleto de uma racionalidade muitas vezes arrogante.
A seguir, fala do pesquisador é tão longa quanto certeira:
“O grande ponto, principalmente do lado da esquerda e das classes intelectuais que pautaram o progressismo, é que houve um menosprezo pela dimensão afetiva, encantadora, maravilhosa da comunicação política. A gente viu um levante em 2010 com as primaveras [no Oriente Médio, no norte da África], depois no Brasil em junho de 2013. Mas esses movimentos foram cooptados pelas forças de direita e extrema direita, e a esquerda não conseguiu adentrar. E como ela reagiu diante do uso afetivo dessa onda da extrema direita? Com um conceito que Wu Ming 1 [do coletivo de escritores Wu Ming] chamou de ‘ratiosupremacismo’, o supremacismo da razão. É um pouco o que se faz na checagem de fatos, ou quando tentamos explicar que o discurso de Bolsonaro é ruim porque ele está enganando, porque é falso. É um jeito de dizer ao outro que ele não entendeu nada e nós estamos aqui com nossas competências, inclusive acadêmicas, intelectuais, para explicar. Bem, isso é extremamente racional-supremacista e ainda tem componente moralista. Não é com esse tipo de atitude e posicionamento que se ganha eleição ou hegemonia do debate público, pelo contrário. Acho que a grande questão hoje em dia é disputar a maravilha”. Essa última questão, central para o debate democrático nos próximos anos, é trabalhada pelo semiólogo em um outro livro, “Magia Política”, a ser lançado em 2023 pela editora Elefante.
Confesso que senti alívio ao ler e ouvir a crítica sobre essa racionalidade supremacista e moralista presente frequentemente nas pessoas que se assombram com a espetaculosidade tantas vezes violenta do extremismo de direita. Isso porque não é de hoje que a ideia de uma “melhor razão” também é permeada por classismo, racismo e por questões de território e gênero. Basta pensar que era uma suposta inferioridade intelectual que conferia a pessoas negras os piores lugares na escala social, inclusive o de escravatura (no chamado racismo científico).
Agora, essa ideia vem pintada de uma outra forma de supremacia – que não necessariamente vai estar livre da outra que acabo de citar: a de um “iluminado” que consegue enxergar melhor o engano e está à frente daqueles incapazes de perceber. Um exemplo é quando o progressismo branco e “iluminado” desanca evangélicos conservadores pobres e negros. O que o que gosto de chamar de os “novos esclarecidos”, muitas vezes não são capazes de identificar uma justa revolta e desolação resultantes do sofrimento imposto pela exploração, pelos marcadores de raça, gênero, classe, e não só pela descrença em um sistema político frequentemente corrupto.
“Os discursos populistas de extrema direita, diferentemente de certas narrativas de esquerda mais baseadas ou propensas ao uso excessivo do supremacismo racional e moral, foram capazes de enxergar os núcleos de verdade que estão por trás de teorias conspiracionistas, do povo dominado por elites internacionais, pelos globalistas… isso tem uma verdade por trás. Temos um povo que é oprimido por um modelo liberal, capitalista, opressor. Há um fundo narrativo nas teorias da conspiração que é verdadeiro. As narrativas podem parecer absurdas para uns, mas não para outros, porque elas dão uma resposta a problemas concretos das pessoas. A fome, a falta de emprego, de pertencimento. O discurso populista foi capaz de canalizar essas exigências. E mais: dá vazão à necessidade de encantamento e maravilha que todos nós temos. Principalmente nesse momento de crises econômicas, de pandemia. Diante disso, precisamos também voltar a nos encantar, ninguém aguenta tanta dureza. Os populistas de direita foram capazes de fornecer uma dimensão encantadora, maravilhosa, para a política. Deram um escape ao choque de realidade.”
O esgotamento da performance?
Ao mesmo tempo em que ressaltam a força da magia como elemento aglutinador no campo da política, Yvana Fechine e Paolo Demuru também percebem que a cultura do “parecer ser” e da trollagem de direita começou a dar sinais de cansaço ou, ao menos, de mapeamento por parte da população e de outros campos ideológicos.
Para a pesquisadora, há uma aposta na volta de uma racionalidade específica, aquela que serviria antes de tudo como freio de arrumação. “Os afetos, as emoções, as paixões sempre foram uma marca da política. Mas não havia essa centralidade dessa dimensão mais sensível, mais emocional, afetiva e passional. Havia uma política pautada pelo debate que é próprio do regime democrático, o embate de ideias.”
Merece nossa atenção outro fenômeno: a não adesão massiva de pessoas mais pobres, recebedoras de Auxílio Emergencial, ao voto em Bolsonaro. A ampla liderança de Lula em segmentos de baixo poder aquisitivo é um recado forte do pragmatismo – certamente, o atual presidente não contava com ele. “Mais que o partido da razão, é o partido da realidade que tem se imposto nessas classes. Há toda a disputa de valores morais, que não se afasta do prato na mesa, mas o que temos visto até agora é um voto pautado pela condição de classe.”
Paolo vê duas razões para o perceptível esgotamento da performance: primeiro, porque o recurso foi abusado ao ponto de as pessoas perceberem como falsas, postiças, as demonstrações do “ser do povo” tão comuns a Bolsonaro. Ele usa como exemplo a famosa foto do presidente se lambuzando com farofa, mais tarde vazada de outro ângulo que nos permitia ver Carlos Bolsonaro, o filho que gerencia as redes do pai, responsável pelas performances. “Foi muito caricato, e assim não surte mais o mesmo efeito fora dos grupos dos iniciados. Tem mais: são atitudes que não batem com a realidade do que vem sendo veiculado sobre a família, os 51 imóveis comprados com dinheiro vivo, os passeios de jet ski.”
O governo Jair Bolsonaro é uma espécie sombria da Ilha de Caras, onde tudo, à exceção do mar e das pedras, era falso.
De fato, as entranhas do governo trágico de Bolsonaro são cada vez mais conhecidas: há poucos dias, conhecemos um apoiador fake, um publicitário desempregado pago para, no cercadinho, fazer ao presidente perguntas combinadas, de modo que a resposta do mandatário fosse repercutida pela chamada grande mídia. Segundo depoimento do falso apoiador, outras pessoas também eram pagas para fazer volume e assim contribuir na encenação de força do patriarca de uma família que enriqueceu – muito – enquanto ocupava cargos eletivos.
Quando li essa notícia, achei que fazia todo sentido, uma vez que naquele mesmo cercadinho se apresentou também um comediante vestido de presidente; uma vez ainda que o homem que há muito manda nesse país é o presidente da Câmara, Arthur Lira. O governo Jair Bolsonaro é uma espécie sombria da Ilha de Caras, onde tudo, à exceção do mar e das pedras, era falso.
A segunda razão do esgotamento apontada por Paolo Demuru é que há agora mais entendimento sobre a linguagem das redes. Isso permitiu que, como vemos na campanha eleitoral deste ano, a extrema direita, ainda forte, tenha perdido terreno e já não seja a única a se fartar da lógica da lacração, do mitou e da provocação. Paolo é cético inclusive com a presença de André Janones – que teria adentrado na campanha petista como vetor dessas lógicas – entre pessoas que ainda não decidiram seus votos. “Porque esses grupos criticam a direita justamente por seus métodos agressivos. Quando falo que é uma disputa pela maravilha, entendo que a direita tem funcionado no transe excessivo, intenso, e isso talvez canse um pouco”.
Ele percebe que as mídias tradicionais também passaram a reocupar espaços nas agendas políticas, e é através de uma combinação entre elas e as redes digitais que bolhas passam a ser furadas. Nesse ecossistema, setores mais progressistas também vão disseminando o agora já percebido encantamento. “Essa articulação entre mídias tem atingido grupos indecisos. Quando Lula fala sobre comer picanha, tem a ver com a maravilha e projeta o sonho mais à frente.”
PS: O livro “Um bufão no poder” pode ser baixado gratuitamente pelo link da Confraria do Vento.
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