Entrevista: 'Em estado de exceção, vale a lógica da guerra da comunicação', diz Letícia Cesarino sobre vídeo da maçonaria

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Para a antropóloga, a narrativa da maçonaria fez a esquerda perturbar o ecossistema bolsonarista – e pode reverberar onde antes só a extrema direita chegava.

Entrevista: 'Em estado de exceção, vale a lógica da guerra da comunicação', diz Letícia Cesarino sobre vídeo da maçonaria

Eleições 2022

Parte 24


Nas redes sociais, só se fala em uma coisa nos últimos dias: o vídeo do candidato à reeleição Jair Bolsonaro discursando para maçons. A gravação é provavelmente anterior a 2018, já que Bolsonaro afirma “não estar candidato a nada”. Mas a cena pegou em cheio uma parcela de cristãos que apoiam o presidente. Para os católicos, a maçonaria não é compatível com sua fé. E, para os evangélicos, remete ao satanismo.

Após o discurso correr nas redes e nos grupos de mensagens, apareceram outras fotos de Bolsonaro e aliados, como o vice Hamilton Mourão, em ambientes com símbolos típicos da maçonaria. Surgiram também várias fake news sobre a relação de Bolsonaro com a instituição, que tem viés filosófico e religioso, e de um suposto pacto com o satanismo. A direita parece ter sentido o golpe. Chegou até a lançar mão de algo até então muito criticado: a checagem de conteúdo por meio de veículos de imprensa.

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Ainda é cedo para mensurar o impacto dessa viralização ao longo do segundo turno – e se a esquerda apostará na estratégia de usar as chamadas pautas morais de modo sensacionalista para entrar na bolha evangélica tão dominada pelos bolsonaristas. Não faltam opiniões favoráveis e contrárias ao uso do vídeo como instrumento de campanha. Críticos dizem, por exemplo, que a estratégia mimetiza o pior do bolsonarismo e pode promover intolerância religiosa (apesar de a maçonaria não ser uma religião).

Mas Letícia Cesarino, professora de antropologia na Universidade Federal de Santa Catarina e autora do livro “O mundo do avesso: política e verdade na era digital”, vê com otimismo a repercussão do vídeo. Em entrevista ao Intercept, ela analisa o impacto da gravação e a forma como o tema chegou às redes bolsonaristas que ela monitora.

“A gente chegou num ponto em que a política para o bolsonarismo é um total estado de exceção. Eles não têm limite, não seguem as regras. Então, como chegar nessa população que já foi tragada pelos públicos dele, que só recebe informação a partir desses grupos, como é o caso de boa parte dos segmentos evangélicos?”, questionou. “Não vejo outro jeito de furar essa fronteira. Em estado de exceção, infelizmente, o que vale é lógica de guerra. No caso, obviamente, uma guerra comunicacional”.

Leia a entrevista na íntegra:

Entrevista: ‘Em estado de exceção, vale a lógica da guerra da comunicação’, diz Letícia Cesarino sobre vídeo da maçonaria

“Se as plataformas não limitam esse tipo de estratégia por parte da extrema direita, o resto do espectro político precisa começar a agir assim também”, defendeu a antropóloga Letícia Cesarino.

Foto: Reprodução/instituto cpfl

De 2018 para cá, houve alguma mudança no comportamento digital dos bolsonaristas e da oposição?

Sim, tem bastante mudança nos dois tipos de público. O bolsonarismo se organizou muito ao longo desses últimos quatro anos, ganhou mais visibilidade. Vai além daquele núcleo duro, mais subterrâneo, digamos assim, que foi a base do esquema dele no WhatsApp em 2018. Esse público se consolidou. É uma presença permanente, que ainda vai durar anos.

A dinâmica muda um pouco: é um espectro. Tem os segmentos mais radicalizados, conspiratórios, antivacina que estão geralmente nessas plataformas mais fechadas, no WhatsApp ou no Telegram, alguns canais de YouTube que ainda conseguem evitar moderação. E tem o segmentos que já têm esse interface com público convencional, seja de perfis que se colocam de forma mais moderada no Instagram ou no próprio Twitter, YouTube, ou em canais alternativos, mas que têm um reconhecimento do público convencional – entre eles, eu destacaria a Jovem Pan, que, sem dúvida, aparece como uma referência.

No caso da esquerda, a gente vê uma mudança significativa, mais de última hora. Eu acho que esse ano a campanha do Lula também mudou de direção de marketing e comunicação. A equipe é mais eficaz nesse sentido, com as peças de vídeo para internet mais leves, para circularem nos aplicativos, no TikTok. Estão muito bem-feitos. Eles estão sabendo usar melhor a linguagem própria da internet, sem necessariamente reproduzir todas as estratégias do bolsonarismo, porque tem limites até éticos para isso.

E teve esse vídeo da maçonaria…

Sim, e é uma novidade, porque é um pouco diferente do que acontecia. A esquerda conseguiu perturbar o ecossistema bolsonarista. Antes, até conseguiam fazê-los responder, mas eles sempre tinham o controle. Não tinham que se movimentar tanto como vimos na terça-feira. Ainda estamos fazendo análise quantitativa do Telegram, então não dá para saber exatamente qual o alcance, mas já está claro que foi uma ofensiva um pouco diferente das outras. Foi bem organizada, em várias frentes, porque não foi um perfil.

A gente já vê uma estratégia, que eu não sei se dá para associar à campanha de Lula. A campanha está fazendo a parte dela de forma competente. Claro que pode melhorar, mas são outros atores que estão na tática mais de guerrilha. Esse é o movimento interessante para a gente observar. Não sei se ele vai se sustentar, se vai ganhar adesão mais orgânica. O bolsonarismo tem influenciadores, sejam eles explícitos ou camuflados, que organizam plataformas, conseguem essa adesão mais orgânica dos seguidores do presidente, que são muito engajados. Essa relação da atuação mais tática, com atuação orgânica, está muito bem consolidada – e na esquerda nem tanto. Mas pode ser que agora, nessa campanha de segundo turno, a gente consiga ver uma mudança.

O vídeo da maçonaria mostra uma mudança no conteúdo da esquerda, com um direcionamento para a pauta religiosa, de costumes, como é hábito dos bolsonaristas. Como você avalia isso?

Essa é uma diferença grande realmente, porque eles estavam sozinhos nesse território da guerra cultural. A esquerda entra agora num lugar que não é o natural dela. A linguagem mais natural da esquerda é a da discussão de programas. Mesmo o Lula tem apelado mais para as emoções, para a afetividade. Não é nessa linguagem confrontacional tão forte, como foi a de terça-feira. Talvez a gente possa falar que mimetiza o bolsonarismo nesse sentido, mas não é uma cópia exata, porque o Bolsonaro ataca muito os grupos vulneráveis – as mulheres, as religiões afro-brasileiras – com essas mentiras e fake news. Então, felizmente, eu não vejo esse mesmo movimento na esquerda.

‘A esquerda conseguiu perturbar o ecossistema bolsonarista’.

Houve críticas sobre essa mimetização, sobre incitar a violência contra alguns segmentos. Vamos ver como isso reverbera, mas maçons não são exatamente grupos vulneráveis. Então, você está incitando um medo, não sei se ódio é a palavra certa, mas não me parece que você esteja colocando segmentos vulneráveis em risco, como acontece quando dizem que o Lula tem pacto com o diabo e mostram um vídeo dele na umbanda. Isso incita a violência e reforça o ódio contra as religiões de matrizes africanas. Ou quando atacam mulheres jornalistas. Há essa diferença, não é a mesma tática. Acho uma preocupação válida, mas não é uma mimetização exata do que o bolsonarismo faz.

Também há quem diga que é um erro a esquerda entrar num universo onde os bolsonaristas dominam. Qual o impacto que essa nova estratégia pode causar nesse segundo turno?

Precisamos esperar para ver, porque às vezes a gente prevê uma coisa e as pessoas reagem de outra forma. Ainda assim, em princípio, acho que é uma tentativa válida. A gente não vai saber ao certo se funciona se não fizer, se não virmos a reação, o efeito agregado disso. Porque, infelizmente, a gente chegou num ponto em que a política para o bolsonarismo é um total estado de exceção. Eles não têm limite, não seguem as regras, e a internet hoje ainda impõe poucas regras – e, mesmo assim, eles não aceitam, se esforçam para burlar, com perfis fake, por exemplo. Então, como chegar nessa população que já foi tragada pelos públicos dele, que só recebe informação a partir desses grupos, como é o caso de boa parte dos segmentos evangélicos? Não vejo outro jeito de furar essa fronteira. Em estado de exceção, infelizmente, o que vale é lógica de guerra. No caso, obviamente, uma guerra comunicacional. Se as plataformas em si não tomam uma atitude mais consistente, no sentido de limitar esse tipo de estratégia por parte da extrema direita, o resto do espectro político precisa começar a agir assim também. Não acho que o Lula, por exemplo, e outras figuras públicas devam se envolver nessas coisas. Mas para o usuário comum, aquele que quer fazer militância, que conhece como a cultura da internet funciona, eu acho que é uma tentativa válida.

Pelo que você tem acompanhado nos grupos, ainda que seja cedo para afirmar, dá para imaginar se Bolsonaro perde votos ou se transfere para o Lula?

Não faz muita diferença em termos de virar voto de pessoas que já são bolsonaristas. Mas tem um segmento intermediário de leitores, de indecisos, dos que votaram na terceira via ou mesmo dos que votaram no Bolsonaro, mas não são tão ferrenhos, não aderem tão fortemente a essa identidade em si, mas acabaram votando por outras razões. Esse segmento eleitoral vai ser crucial agora no segundo turno. [O episódio] pode eventualmente ter, no mínimo, desestabilizado o lugar onde esse eleitor está, no sentido de puxá-lo um pouco do ambiente informacional no qual ele está imerso. Pode ajudar a desestabilizar essa harmonia do bolsonarismo em muitos desses segmentos.

Pode ser que partes do público evangélico, imagino que só uma pequena parte,  comece a receber uma dieta de mídia um pouco diferente. Porque o que eu vejo interessante nessa tática não é exatamente se esse conteúdo vai chegar ou não, se o voto vai virar ou não, mas essa atuação no nível da meta comunicação, de estar desestabilizando o terreno onde o bolsonarismo atua nas redes. Isso, em si, eu acho que já é muito importante. E pode gerar efeitos indiretos, tipo começar a abrir mais espaços para um outro tipo de conteúdo  entrar. Pode colocar uma semente de dúvida. Pode diminuir a adesão num tipo de público em que o bolsonarismo tinha um monopólio absoluto na oferta de conteúdo. Vejo algo nesse sentido: pequenos efeitos indiretos, que ainda são melhores do que nada. Melhor do que a esquerda não entrar onde existe essa hegemonia informacional.

Os grupos de pesquisa estão olhando para esses impactos para trazer dados concretos. O que eu posso falar do Telegram, por enquanto, sem essa análise quantitativa completa, é que, nas buscas por palavras-chave, houve um aumento visível sobre esse tema da maçonaria. Ou seja, furou esse bloqueio de alguma forma. Um colega me mandou uns prints do Telegram mostrando a tentativa de consertar o estrago. A balança virou entre ontem e hoje. Agora apelam pro fact-checking. Agora, no WhatsApp, eu não sei, porque a gente não está trabalhando com dados de lá, tenho só alguns grupos dos quais eu ou outras pessoas participam, isso não entrou de fato. Eu tenho a impressão que depende do tipo de grupo. Pode ser que o segmento evangélico dentro do bolsonarismo tenha sido de fato mais permeável em relação a isso, enquanto em outros segmentos, tipo os antivacina, militaristas, talvez não tenha entrado tanto. Então estamos olhando também para o nível de permeabilidade.

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