“Emenda não é favor, é o dinheiro do povo voltando para o povo”. Essa é uma frase de maio deste ano de Kim Kataguiri, coordenador nacional do MBL, reeleito deputado federal pelo União Brasil de São Paulo. Com discurso contrário ao mau uso do dinheiro público, Kataguiri costuma publicar em suas redes sociais informações sobre as emendas parlamentares que destina a municípios e organizações. Rubinho Nunes, seu parceiro na coordenação nacional do MBL e vereador na capital paulista pelo mesmo partido, age diferente.
Em 2021, Nunes alocou R$ 3,8 milhões em emendas parlamentares – verba pré-definida do orçamento municipal reservada aos políticos e que pode ser utilizada como o gabinete quiser, após aprovação da presidência legislativa. Mais de 59% desse valor fomentou organizações de cultura, em eventos como uma festa dos anos 80, uma “festa da paz” e um campeonato de karatê. E ao menos R$ 1,5 milhão foi concedido a organizações que, em 2018 e 2020, receberam emendas parlamentares de Zé Turin, ex-vereador de São Paulo pelo PHS – denunciado por Fernando Holiday, ex-membro do MBL, em um esquema de desvio de verba.
A principal organização beneficiada por Rubinho Nunes é a igreja Mensagem de Paz, cuja tarefa é “ministrar o amor de Deus através da arte”, como a entidade afirma em seu Facebook.
Em 2018, a organização recebeu R$ 89 mil de Turin para a “realização de eventos na cidade”. Nunes foi mais generoso. Em 2021, o emebelista enviou R$ 1,09 milhão de reais em emendas parlamentares para a realização de três eventos da igreja: a “Festa da Paz”, o “Tô de Volta 01” e o “Aviva Music 2”, todos entre os dias 25 de outubro e 5 de novembro de 2021. O texto que descreve a finalidade da verba é idêntico para os três eventos: “O projeto visa garantir o direito a cultura, lazer, e inclusão social conforme previsto no plano municipal de cultura, trazendo assim grandes motivos para celebrar a vida através da arte”.
A verba foi dividida entre R$ 700 mil para a associação privada Instituto Mensagem de Paz, cuja atividade comercial principal junto à Receita Federal é “defesa de direitos sociais”, e R$ 390 mil para a Elous Organização e Promoção de Eventos LTDA, empresa de consultoria cultural. No registro do CNPJ, o endereço da Elous aponta a sede no Parque Panamericano, bairro paulistano. No documento assinado por Nunes, no entanto, a sede indicada é a mesma que a do Instituto Mensagem de Paz.
Ambas as instituições são ligadas ao mesmo empresário, Fernando Batista. Ele é presidente do Instituto Mensagem de Paz e único sócio da Elous Organização e Promoção de Eventos.
O documento de empenho de emenda parlamentar pede que o vereador preencha uma justificativa para a escolha da organização. Os três documentos assinados por Nunes novamente compartilham o mesmo texto, apesar de o dinheiro ser destinado a organizações diferentes. Questionado pelo Intercept, Rubinho Nunes disse que as justificativas idênticas são uma “questão meramente formal”, e não explicou porque três eventos diferentes foram descritos da mesma forma em documentos oficiais.
O esquema
Ao ser derrotado na corrida para a reeleição a vereador em 2020, Zé Turin perdeu o espaço físico de seu gabinete para Holiday. Para se manter perto do poder, no início de 2021, o ex-parlamentar teria sugerido ao vereador que eles agissem “igual família”, segundo denunciou o próprio Holiday ao Ministério Público do Estado de São Paulo. Segundo a denúncia, o vereador eleito deveria nomear algumas indicações de Turin em seu gabinete e seria incluído em um esquema de desvio de verba.
O melhor jeito de conseguir o dinheiro de emendas parlamentares de volta, Turin teria explicado ao vereador, era por meio de apoio a eventos culturais e organizações de cultura, contou Holiday. Dependendo do “projeto”, Turin teria dito que os parlamentares poderiam pegar de volta até 40% do que foi destinado – em dinheiro vivo, para que não houvesse registro bancário. Turin também teria se mostrado disposto a indicar para Holiday duas organizações culturais que poderiam receber os repasses – sem citar quais eram.
Ainda segundo a denúncia de Holiday, o esquema também envolveria funcionários da Secretaria Municipal de Cultura, responsáveis pela análise do envio de verbas públicas.
O inquérito, sigiloso, ainda está em curso no Ministério Público de São Paulo. Fernando Holiday se recusou a falar ao Intercept sobre suas denúncias, dizendo apenas que, para não ser injusto, gostaria de “frisar que o nome do vereador Rubinho não surgiu em nenhuma das gravações”. Perguntado sobre sua relação com Zé Turin, Rubinho Nunes disse que não possui nem relação de coleguismo com o ex-parlamentar e que nunca trataram de nenhum assunto.
Mas, em 2021, Nunes apoiou com suas emendas justamente duas organizações culturais que, nos anos anteriores, tinham recebido verba das emendas de Turin. Ao Intercept, Nunes disse que “na oportunidade do envio das emendas não havia nenhuma denúncia, nem mesmo indício de irregularidade”. Suas emendas, no entanto, foram assinadas mais de seis meses após a denúncia de Holiday ao MPSP.
No mesmo dia em que assinou os documentos de envio de recursos à igreja Missão de Paz, o emebelista destinou R$ 390 mil para um “evento cultural” – na realidade, uma videoconferência – com tema de anos 80 e MPB. O evento foi organizado pela DDCAF Santos Produções Musicais ME, empresa de gestão artística gospel. Na Receita Federal, ela é registrada em um endereço comercial em uma área nobre da zona sul de São Paulo. No documento em que Nunes destina os recursos à empresa, no entanto, o endereço indicado é de um prédio residencial na periferia da zona leste da capital paulista.
O objetivo da proposta, descrito no documento assinado por Nunes, era a “confraternização entre as pessoas neste período de isolamento social”. O evento cultural, marcado para 13 de novembro de 2021, seria virtual. Procuramos em redes sociais, mas não encontramos qualquer informação sobre o evento. Questionado se o evento foi gravado e onde poderia ser visto, Nunes se limitou a responder que as informações da emenda foram auditadas e aprovadas pelos órgãos de fiscalização e controle.
Em 2020, eventos da Novidade Antiga – nome fantasia da DDCAF Santos Produções Musicais ME – já haviam sido apoiados por Turin. O ex-vereador entregou R$ 352 mil em emendas parlamentares para a empresa, registrada por ele nos documentos com dois CNPJs diferentes – um deles, inclusive, inexistente em busca recente no site da Receita Federal.
Sempre disposto a criticar
Rubinho Nunes não segue a cartilha do MBL para uso de emendas parlamentares. Diferente de Kim Kataguiri, na Câmara dos Deputados, e Arthur do Val, que teve seu mandato cassado na Assembleia Legislativa de São Paulo, o vereador não costumava dar publicidade em suas redes sociais ao destino da verba a que tinha direito. Não é incomum, no feed dos demais parlamentares do movimento, explicações de para onde o dinheiro foi destinado e por qual motivo.
Quando a emenda parte de outro vereador, no entanto, Nunes está sempre atento e pronto para criticar. Foi como se posicionou com o envio de R$ 360 mil por Sidney Cruz, vereador de São Paulo pelo Solidariedade, para a Virada Cultural 2022, um tradicional evento da cidade. Na ocasião, Nunes disse que o fato de Daniela Mercury ter usado uma bandeira do PT configurava campanha eleitoral em favor de Lula e que “é lamentável que tenhamos o petista criando elementos para burlar eventos tradicionais para fazer campanha antecipada”.
O show de Daniela Mercury, custeado pela emenda de Cruz e atacado por Nunes, foi presencial – em um evento que juntou, em um fim de semana, mais de 3 milhões de pessoas.
Em 2022, Nunes anunciou sua candidatura a deputado federal, após dois anos de vereança em São Paulo. Em agosto, porém, desistiu de concorrer ao cargo para “passar mais tempo com a família”.
Perguntamos ao MBL o que o movimento acha da destinação de emendas parlamentares de Nunes. “O MBL tem como princípio dar autonomia aos seus parlamentares na utilização de emendas”, o grupo respondeu. Tentamos contato com Zé Turin e com as duas empresas que receberam os repasses, mas não obtivemos retorno.
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