O resultado do primeiro turno das eleições causou grande frustração na esquerda, principalmente por forçar a constatação de que há mais eleitores de Bolsonaro do que a racionalidade seria capaz de prever, considerando toda a destruição – de vidas, do meio ambiente, de políticas públicas e de civilidade – provocada pelo seu governo. Essa entrevista com o psicanalista Christian Dunker, professor titular do Instituto de Psicologia da USP, é uma tentativa de entender e de aprender a lidar com esses eleitores que, apesar de todo o estrago, seguem com Bolsonaro. O bolsonarismo, afinal, “vai continuar” e se prova um movimento popular forte que com ou sem Jair no poder.
Para Dunker, uma parcela significativa dos bolsonaristas se sente traída pelo PT. Embora tenha conseguido ascensão social, devido principalmente ao acesso às universidades, a classe trabalhadora esperava viver em melhores condições. Sem associar os problemas atuais à figura do atual presidente, “que age como se não fosse propriamente um governo”, resta a decepção com quem representa o estado para essas pessoas – Lula e Dilma. “Elas se voltam com uma certa agressividade, com um certo ódio, para aqueles em quem localizam a falsa promessa”, disse o psicanalista.
Refletindo sobre o perfil psicológico de Bolsonaro, Dunker não o classificou como um perverso ou sociopata. Suas atitudes se explicam mais pela patologia dos tiranos: “Para ser um tirano eficaz, o sujeito tem que ser meio débil, meio incapaz de separar o público do privado”.
Dunker falou ainda sobre o que a esquerda precisa aprender com a comunicação bolsonarista e alertou para a necessidade de ouvir as demandas daqueles que preferiram Bolsonaro. Afinal, eles são mais de 50 milhões. Confira a conversa na íntegra:
Intercept – Como se explica, do ponto de vista psicológico, a quantidade de votos que Bolsonaro recebeu no primeiro turno, mesmo após um governo tão ineficaz?
Christian Dunker – Uma parte importante dos eleitores de Bolsonaro é composta por pessoas que obtiveram muitos benefícios, principalmente nos dois primeiros mandatos de Lula [de 2003 a 2006 e de 2007 a 2010]. É uma classe trabalhadora que conseguiu galgar alguma ascensão social – se deslocaram da miséria para pobreza ou da pobreza para a classe média. Esse processo não é simples do ponto de vista subjetivo, porque ele facilmente pode se verter em decepção. Houve um aumento expressivo de alunos nas universidades, que puderam ter acesso a profissões mais qualificadas. Com um diploma, imaginaram que os empregos iam sorrir para eles e que teriam uma ascensão maior ainda. Na medida em que a universidade não se traduz em aumento real de renda, essas pessoas se voltam para a parte não realizada dos sonhos prometidos. Isso se transforma em ressentimento e em um sentimento de traição. Eles se voltam com uma certa agressividade, com um certo ódio, para aqueles em quem localizam a falsa promessa. Ela não está associada ao governo atual, que age como se não fosse propriamente um governo, mas com aquilo que representa o estado para a maioria das pessoas, ou seja, Dilma e Lula.
Outra parcela dos que estão votando contra Lula é ligada ao conservadorismo e à ideia de buscar uma forma autocrática para administrar a coisa pública. As classes média e alta interpretam que o Brasil tem excesso de regras não cumpridas, com complicações burocráticas, em que o estado tem uma função limitadora e não deixa as coisas acontecerem, porque se cria regras para se aproveitar delas por meio da corrupção. Já os mais pobres acham que está havendo um rapto do seu prazer e que seus ganhos não se realizaram, porque foram desviados pelo PT, pelo Lula. Um lado, portanto, sente o estado como um empecilho e, o outro, como uma instância intrusiva e pouco eficiente na promoção de educação e saúde.
Por que esses eleitores condenam a corrupção nos governos petistas e relevam a do governo Bolsonaro?
O discurso da corrupção capta muito bem esse sentimento de traição em relação aos governos do PT. As pessoas não percebem que houve uma regressão causada por má administração nos últimos anos. Todo retrocesso que sentem agora passa a confirmar a teoria da decepção. A corrupção de Bolsonaro também é conhecida, mas não afeta a performance do candidato, porque ela não cai na chave do ressentimento. Em um ambiente de complexidade de determinações, é compreensível que soluções mais simplificadas ganhem relevo, como a retórica de que Lula roubou e isso quebrou o Brasil.
‘A esquerda acredita que as pessoas foram enganadas e basta esclarecê-las, mas elas realmente sabem o que estão fazendo’.
A gente pune o passado a partir do que transformamos no presente e a partir da redução do nosso futuro. É isso que vem acontecendo com o governo Bolsonaro. Ele não usa a retórica do crescimento, da prosperidade, e sim do combate ao mal, da punição dos culpados. Muitos dos eleitores mais vingativos e rancorosos entendem que o que receberam do PT foi uma promessa corrupta [de melhoria de vida]. Portanto, o voto deles é punitivo.
Como você analisa o perfil psicológico do Bolsonaro? Ele é um perverso?
Há algumas dificuldades para incluir a figura de Bolsonaro nesse diagnóstico, e um dos motivos para isso é que ele age ostensivamente como alguém sádico, às vezes, como alguém que ri do sofrimento do outro. Mas essa ação não reflete uma atitude real perversa. Então, parece mais alguém que está dominado por uma fantasia de perversão. Na prática, o que a gente vê são muitas declarações que depois são revertidas. Ele xinga e depois diz que estava brincando; ameaça indígena, mas era só um modo de dizer; homenageia um torturador, mas aquilo já passou. É como se isso fosse um excesso da sua personalidade, mas que humaniza mais do que desumaniza. Está no campo da patologia narcísica, que é a patologia dos tiranos. Para ser um tirano eficaz, o sujeito não pode ser um verdadeiro perverso ou sociopata. Tem que ser meio débil, meio incapaz de separar o público do privado.
No fundo, Bolsonaro seria movido por um sintoma social que a gente chama de cinismo, no sentido de orquestrar os efeitos do que diz e do que faz, como uma espécie de oscilação calculada entre o registro da fala privada e o registro da fala pública. Ele pode dizer que vai trocar o diretor da Polícia Federal, porque está protegendo seus filhos, e isso não cai como uma corrupção. Cai como alguém que pode passar por cima da lei, que pode fazer a justiça com as próprias mãos. E muitos concordam com isso. Para os amigos e a família, tudo.
É o discurso do bullying, de que você fala?
Exato. É a ideia de que, se você quiser se conectar comigo, vai ser melhor. De que você se empodera por meio da identificação comigo. É uma regra que traz a crueldade e que tem no seu horizonte a ameaça. Isso é próprio de líderes autoritaristas e até populistas. Mas é um populismo que se difere do Lula, porque é segregatório, não inclusivo. Bolsonaro não é uma pessoa perversa, mas promove a perversão das instituições. Isso vale tanto para as instituições que aderiram a ele, quanto para aquelas que ele está atacando.
Você defende que é preciso sermos mais diplomáticos e menos rancorosos com os bolsonaristas. Mas como conciliar o inconciliável, com Bolsonaro e sua política de destruição?
A tarefa vai ser mais longa do que se pensava. A maior parte dos eleitores de Lula entendeu a eleição de Bolsonaro como uma farsa, como um engasgo democrático, com estratégias ligadas às redes sociais e com o apoio de civis e pastores que funcionaram como cabos eleitorais. Acreditam que as pessoas foram enganadas, mas que basta esclarecê-las para elas voltarem ao seu estado de funcionamento normal. A eleição no Senado e na Câmara, dos governadores e dos deputados estaduais mostraram uma realidade diferente dessa. As pessoas realmente sabem o que estão fazendo. A pujante votação [de bolsonaristas] consagra um outro projeto de Brasil, no qual prevalece a ideia de que se pode deixar morrer pessoas que têm menos recursos. Tomando como exemplo o trato com a saúde pública na pandemia, isso foi sancionado pelas pessoas.
‘A esquerda fica de mãos atadas indevidamente, porque diz: ‘Fazer como eles me rebaixará’. Isso é correto até a página três’.
As regras do jogo vão exigir mais firmeza, mais autocrítica, maior capacidade de elaborar um discurso de desconstrução e de enfrentamento. As oposições ainda não se compuseram a ponto de construir um projeto alternativo. O projeto que a gente tinha era diferente, mas ele foi substituído por esse outro da violência. Agora, precisamos de um terceiro. Você pode chamar isso de renovação da esquerda, de resgate da palavra ou de superação da barbárie. Mas, de toda forma, é o que temos pela frente.
O que a prática bolsonarista faz é dizer que o poder pessoal é que vale. O pai manda, o filho obedece. O homem manda, a mulher obedece. Essa forma de poder personalizada é que está em jogo. Eles não querem destruir as instituições por destruir. Eles querem transformar a autoridade simbólica naquela baseada no poder de opressão. Por isso, consideramos essa prática bolsonarista muito mais como um discurso que já existia e que procurou em Bolsonaro o seu catalizador, do que como a força de uma pessoa que parece muito débil e pouco inteligente. Isso pode ser caótico do ponto de vista de como se organiza uma nação. Pode dar muito errado, e é provável que dê.
Por que a comunicação bolsonarista é mais eficaz, tanto para espalhar suas mensagens como para alcançar o que deseja? E o que a esquerda precisaria aprender com isso?
Há uma espécie de menosprezo por parte dos eleitores bolsonaristas. Eles acham que as pessoas de esquerda, os professores, os jornalistas, os intelectuais e artistas se acham superiores e são arrogantes, que não são como as outras pessoas, por isso, merecem um corretivo moral. A esquerda ainda não conseguiu se deslocar desse lugar, ainda que ele seja equivocado. Ela [a esquerda] tenta produzir um antídoto para o bolsonarismo baseado na tomada de consciência, mas não consegue entrar em uma comunicação pessoal e direta, de igual para igual, autêntica.
Tudo aquilo que você pode entender como um vício ou um erro, a exemplo do uso de palavrão, ameaça, exposição familiar e preconceitos, confirma um certo modo de relação que a gente vê prosperar na linguagem digital. A esquerda fica de mãos atadas indevidamente, porque diz: “Eu não vou fazer como eles, isso me rebaixará”. O argumento é correto até a página três. A partir de então, a gente começa a confundir duas coisas, que é a eficácia no discurso e a veracidade do discurso. O discurso bolsonarista é muito eficaz, apesar de pouco verdadeiro. Mas ter um discurso verdadeiro não vai mudar a eficácia dessa relação comunicacional.
De que adianta falar a verdade se ninguém te ouve?
Exatamente. O arrogante fala as verdades, mas elas são inúteis para quem ouve. A gente vai precisar arriscar um pouco mais na natureza dos argumentos, na capacidade de também devolver à altura e saber modalizar o uso do humor, da agressividade, da exclusão, da segregação que, hoje, a esquerda parece praticar mais contra si mesma do que contra o bolsonarismo. Muitos discursos concentram ataques distorcidos contra aqueles que não são os seus inimigos sociais. É muita agressividade contra si e uma espécie de atitude educativa, complacente e, eventualmente, arrogante. Em alguns casos, a atitude inicial é nem falar, porque se considera que algumas pessoas não são dignas da palavra. Enquanto a gente estiver nessa posição equivocada, escolhendo mal os inimigos e agindo de forma pouco eficaz com aqueles que são os nossos verdadeiros adversários, acho difícil que o panorama eleitoral se transforme.
Independentemente de quem vença, já não somos o mesmo país depois do governo Bolsonaro. Como isso vai afetar a saúde mental dos brasileiros no pós-eleição?
Infelizmente, esse é um diagnóstico que a gente precisa fazer. A saúde mental vai piorar, como a gente já alertou em 2018, porque não é possível que o discurso da violência, das armas e da autoridade pela força não se prolongue em mais sofrimento para quem está mais vulnerável. Vai piorar antes de melhorar. É importante colocar na pauta a saúde mental e ter em vista que o discurso tem consequência na nossa vida psíquica. Aquele que tem poder, que tem autoridade, seja o professor, o médico, o político, ele tem responsabilidade na construção da saúde mental coletiva. Quando um governante fala de forma opressiva, desdenha do sofrimento alheio, isso tem um impacto transversal nas relações, que se tornam mais agressivas. Nossa perspectiva de mundo se torna mais fechada, a nossa perspectiva defensiva diante do conflito se torna mais intensa. Tudo isso complica a nossa saúde mental, já um tanto quanto combalida.
Uma coisa que o governo Bolsonaro alterou foram os limites. De tanto ele esticar a corda e não cumprir regras ou leis, as instituições foram recuando, em uma tentativa ineficaz de amenizar as tensões. Quais as consequências disso?
As consequências podem ser as piores, porque um segundo mandato vai sancionar a lógica da opressão e da violência por meio das urnas. Por outro lado, podem ser as melhores no sentido de que esse discurso só deu certo porque conseguiu insuflar uma insatisfação real das pessoas. Ele só é eficaz porque demanda transformações na maneira como o brasileiro médio se relaciona com o país, com o seu regime fiscal, tributário, com as instituições de saúde, de educação, com tudo aquilo que faz do estado ou uma extensão dos interesses privados das classes mais poderosas ou um instrumento de opressão das classes menos favorecidas. Isso seria um efeito benéfico para impulsionar informações necessárias que precisariam entrar de forma mais rigorosa na nossa pauta de transformações. De toda maneira, o Brasil vai precisar de outra coisa. Não vai passar o que a gente já conhece do modelo de gestão, do modelo democrático, das políticas públicas que já estão postas desde a constituição de 1989 e que tentaram se implantar no Brasil durante o período de Lula e Dilma.
O que a gente pode esperar do bolsonarismo sem Bolsonaro no poder e com Bolsonaro no poder?
O bolsonarismo vai continuar. Precisamos reconhecer que é um movimento popular, que entrou nas camadas menos favorecidas. Ele produz organicidade na ação entre as pessoas e reconhecimento entre os envolvidos. É um movimento que tem a possibilidade de se reproduzir, de se recompor e de enfrentar revezes.
‘A saúde mental vai piorar, porque não é possível que o discurso da violência e da autoridade pela força não se prolongue em mais sofrimento’.
Esse discurso como laço social precisa ser enfrentado de forma metódica, com mais força e com mais potencial de coerção, inclusive, dos órgãos reguladores da imprensa, de órgãos reguladores do uso da máquina digital e das concessões públicas. Precisa ser enfrentado como algo bastante perigoso para a institucionalidade do país. Isso vai demandar que se fale um pouco mais a linguagem do próprio bolsonarismo. Que a gente apreenda que há, sim, uma parcela que só vai se transformar pela força. Pode ser pela força da palavra, pode ser pela força da lei. Mas, durante algum tempo, vai ser necessário para que a gente consiga implantar uma educação política, para responder às insatisfações legítimas por trás do bolsonarismo. Ainda que a forma seja desastrada, não democrática e autoritária, ela tem lá o seu grão de verdade. O Brasil tem quase metade da sua população muito insatisfeita. É preciso reconhecer que há uma demanda para ser tratada.
Qual seria essa essa demanda legítima do bolsonarismo?
São demandas que a esquerda também reconhece, como a simplificação nas relações com o estado. Por exemplo, que o estado deixe de se demitir em certas áreas e em certas geografias do país. Ele se demitiu das prisões, e é fundamental retomar, reinstitucionalizar nossas prisões. O estado se demitiu de muitas comunidades – isso é um erro e tem consequência. O processo de “milicialização” do Brasil é um sintoma, porque o estado se demitiu de cuidar, de urbanizar a vida nesses lugares.
A ideia de que é possível governar com mais transparência pode ser posta em prática. No bolsonarismo, a transparência é a pessoalidade. É como um chefe de família fazendo contas domésticas, e não planejando o orçamento de um país. Isso está errado. Mas o que tem de verdade aí é que as pessoas querem transparência real. Não há nenhum motivo para não conversar mais. Existe um descompasso entre os recursos que temos hoje em termos de alcance de cobertura digital e a possibilidade de ação sobre o estado, de democracia direta.
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