Roberto Jefferson e Jair Bolsonaro cultivam uma amizade há décadas. Após os três primeiros mandatos de Bolsonaro como deputado federal, o contexto do país mudou: o PSDB saiu do poder e Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente. O PPB, partido de Jair nos dois mandatos anteriores, tinha apoiado a candidatura de José Serra no segundo turno de 2002, o que desagradou o então deputado, que fazia oposição feroz ao PSDB e nutria certa simpatia pelo PT. Na época, a opinião de Bolsonaro sobre a esquerda era bem similar à que ele emitiu na célebre entrevista de 1999 em que elogiou Hugo Chávez.
Nesse ínterim, Roberto Jefferson convidou Bolsonaro a ingressar no PTB. O lastro desse convite não era político, mas pessoal: Eduardo Bolsonaro, terceiro filho de Jair, estava empregado no gabinete da liderança do PTB na Câmara dos Deputados desde junho de 2002, apesar de nunca ter comparecido a Brasília. O atual presidente foi filiado ao PTB entre 2003 e 2005, período em que o partido era base do governo Lula – relação que implodiu no mensalão: após o PTB perder o comando dos Correios, Roberto Jefferson se sentiu traído e denunciou o esquema da compra de votos.
A máquina de desinformação bolsonarista usa atualmente esses dois anos de alinhamento entre PTB e Lula como argumento para associar o agora desafeto Roberto Jefferson ao petista. Figuras como o ministro da Saúde Marcelo Queiroga postaram, após a prisão de Jefferson, fotografias dele com o ex-presidente. Só ignoraram o fato de que Bolsonaro estava com Roberto Jefferson na base do governo Lula.
A maior ironia, porém, veio logo depois. Após o PTB sair da base do governo petista, Roberto Jefferson teve seu mandato cassado e perdeu seus direitos políticos por oito anos. Nesse cenário, Jair Bolsonaro saiu do PTB e entrou no partido que agora é o PP. E que, daquela época até abril de 2016, foi parte da base dos governos de Lula e Dilma Rousseff. Durante todo esse período, Jair Bolsonaro permaneceu na sigla.
O reencontro
Após o período de afastamento forçado da política por parte de Roberto Jefferson, as peças que produziriam o cenário da eleição de 2018 estavam se juntando. Bolsonaro já era próximo à bancada evangélica desde 2013, quando Silas Malafaia celebrou seu casamento com Michelle Bolsonaro – eles viviam juntos desde 2007, e Laura Bolsonaro nasceu em 2010. Também em 2013, ocorreram as manifestações que erodiram a popularidade do governo Dilma. No ano seguinte, Bolsonaro se levantou como uma referência do antipetismo “moral”, que explodiria quatro anos depois por meio de mentiras como o “kit gay”. Roberto Jefferson tentava reerguer sua carreira política ancorado em outro tipo de antipetismo“moral”: aquele “contra a corrupção”. Foi com esse discurso que ele voltou à direção nacional do PTB em 2016.
Com essas convergências, a aproximação entre eles aconteceu naturalmente quando se viram novamente do mesmo lado. O ódio de Roberto Jefferson ao PT casava perfeitamente com o projeto político de Bolsonaro, que começava a ganhar corpo. Embora Jefferson sempre tenha estado próximo a Bolsonaro, por muito tempo evitou uma aliança formal por julgar que a ascensão dele ao poder era inviável. Essa união se consolidou no segundo turno de 2018, quando ficou claro que Bolsonaro seria o vencedor das eleições presidenciais.
No governo do amigo, Jefferson ficou à vontade para se radicalizar. Nos últimos quatro anos, fez apologia ao uso de armas, insultou ministros do STF e acabou preso no inquérito dos atos antidemocráticos. Antes disso, porém, chegou até mesmo a ser cogitado como vice-presidente de Bolsonaro. Entre 2020 e 2021, Roberto Jefferson colecionou aparições com o presidente e seu círculo próximo: pessoas como Silas Malafaia, o atual candidato ao governo de São Paulo pelo Republicaos, Tarcísio de Freitas, e o ex-ministro da Casa Civil Luiz Eduardo Ramos já estiveram com Jefferson, que na época era um símbolo de fidelidade. E de impestuosidade.
Sua ferocidade contra os ministros do STF gerou reação dos magistrados. Em agosto de 2021, após sucessivos ataques à democracia, Roberto Jefferson acabou preso. Sua detenção foi convertida para prisão domiciliar devido a seus problemas de saúde. Mas esse processo todo mostrou, de uma vez por todas, a proximidade entre ele e Bolsonaro, de quem esperava um indulto, como aconteceu com o deputado Daniel Silveira.
Ao fazer lives com armas e proferir ofensas diretas às autoridades, Jefferson se tornou a face mais radicalizada do bolsonarismo. Virou a expressão prática do discurso de Jair Bolsonaro na Avenida Paulista em 7 de setembro de 2021, quando o presidente disse que “não obedeceria mais as ordens do Alexandre de Moraes”.
O Plano Kelmon
A proximidade fez nascer um plano conjunto para a eleição de 2022. A obsessão de Bolsonaro é a reeleição: com ela, é possível subjugar o STF (e por consequência o TSE), centralizar o poder e – a principal parte para Roberto Jefferson – garantir a impunidade de apoiadores extremistas, que atentam diariamente contra a democracia.
Para o grande público, a face da aliança entre Bolsonaro e Roberto Jefferson apareceu na semana da eleição: o (suposto) Padre Kelmon, candidato presidencial do PTB, chegou ao debate da Rede Globo em 29 de setembro como um defensor de Bolsonaro que não se preocupava em disfarçar esse apoio.
Mas ele só estava presente por um motivo: Roberto Jefferson não podia estar lá. O candidato original do PTB à Presidência da República era Jefferson, mas o TSE barrou a candidatura no início de setembro por conta de suas condenações na justiça transitadas em julgado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Sim, Roberto Jefferson criou uma candidatura presidencial com o único propósito de ser linha auxiliar de Bolsonaro.
Mas esse plano era muito mais antigo. Jefferson descaracterizou completamente o PTB para transformar o partido em uma sucursal do bolsonarismo extremo. Tomou diretórios estaduais, expulsou nomes históricos da sigla e colocou no lugar deles bolsonaristas radicais. O exemplo mais emblemático ocorreu em São Paulo: Campos Machado, deputado estadual por décadas, foi desalojado do PTB pelo novo presidente estadual imposto por Roberto Jefferson, o empresário bolsonarista Otávio Fakhoury.
O resultado desse processo é que, dos 10 deputados federais eleitos em 2018, o PTB passou a ter só três. Com os dois senadores que o partido também tinha, o PTB bateu o número mínimo de congressistas federais que habilitou o partido a ser compulsoriamente convidado aos debates. E, com isso, o Brasil teve a enorme infelicidade de conhecer o Padre Kelmon.
É importante explicar tudo isso para que todos compreendam a complexidade da articulação entre Bolsonaro e Roberto Jefferson. E isso levanta duas questões: a primeira é que essa articulação seria impossível, não fosse ordem do próprio Bolsonaro. A segunda é que, se Roberto Jefferson fez todo esse esforço com o único propósito de ser linha auxiliar do Bolsonaro, desgastando a candidatura de Lula, ele é capaz de fazer qualquer coisa para provar sua fidelidade, não se importando com as consequências de suas ações.
Tudo ou Nada
Desde a primeira semana do segundo turno, a campanha bolsonarista, na iminência da derrota, tenta emplacar a narrativa de que o TSE é parcial e de que eles estão sendo censurados. Ela já teve resultados mensuráveis: um vídeo do Pastor André Valadão, simulando uma decisão de censura do TSE, teve mais de 10 milhões de visualizações só no Instagram, sendo compartilhado por celebridades bolsonaristas como Neymar e atraindo a solidariedade de diversas pessoas que, até então, não tinham se manifestado em relação às eleições.
O objetivo sempre foi o de consolidar a ideia de que bolsonaristas são defensores da liberdade e o TSE é censor. O que Valadão fez ao inventar uma decisão judicial foi um crime. Mas o TSE tem andado na corda bamba nesses últimos tempos, espremido entre o discurso de inação e a acusação de agir como destruidor das liberdades. O bolsonarismo politizou o TSE, arrancando-o do seu papel de moderador da eleição e tornando-o um ator com supostos interesses.
Nesse momento, surgiu o plano:
‘Ninguém dá 20 tiros de fuzil por estar nervoso. Aquilo foi pensado para ser um confronto aberto’.
Roberto Jefferson, proibido de acessar redes sociais, resolveu ofender a ministra do STF Carmen Lúcia via… redes sociais. Era uma violação tão flagrante da prisão domiciliar que o STF não poderia ignorar. A questão transcendia as ofensas, que por si só já seriam graves: existiam suspeitas bem fundamentadas de que ele tinha um arsenal de armas em casa. Além disso, havia a informação de que a campanha de Bolsonaro usaria Jefferson para fazer ataques virulentos durante essa semana final do segundo turno.
Assim que a Polícia Federal chegou na casa de Jefferson, as suspeitas sobre o arsenal foram confirmadas: eles foram recebidos com 20 tiros de fuzil e três granadas. Ninguém dá 20 tiros de fuzil “porque está nervoso”, ainda mais sabendo os possíveis efeitos disso sobre o processo eleitoral. Aquilo foi pensado para ser um confronto aberto, em que Roberto Jefferson seria um grande herói (ou mesmo mártir) da “defesa da democracia” nos moldes do governo Bolsonaro.
E aí está o grande ponto de virada: a Polícia Federal não respondeu aos tiros, e os policiais foram feridos. A verdade é que, se eles reagissem, a narrativa mudaria completamente. Quem ia aparecer lá antes de todo mundo seria o reforço da Polícia Federal do Rio de Janeiro. E ela está completamente aparelhada por Bolsonaro. O comando da PF no estado foi nomeado em abril pelo presidente, que não se acanha em tentar interferir nas ações da força policial.
Mas o quadro se agrava: desde o início das investigações sobre fake news e os atos antidemocráticos, Alexandre de Moraes destacou uma equipe específica da Polícia Federal, justamente para impedir que o governo interferisse nas investigações. Membros desse grupo foram executar a ordem de prisão contra Roberto Jefferson. Um confronto aberto nessa operação seria a desculpa perfeita para a direção da PF decretar a dissolução da equipe.
E, se a direção da PF não fizesse isso, o próprio ministro da Justiça faria. Roberto Jefferson demorou oito horas para se entregar e exigiu a presença de Anderson Torres para isso. De forma inacreditável, Bolsonaro cedeu e pediu para que ele Torres intermediasse a situação para evitar a prisão de Jefferson, mesmo após ele ter ferido dois policiais. O STF respondeu: esse tipo de interferência é crime de prevaricação, e o próprio Torres poderia ser indiciado. A situação era tão indefinida que o deputado bolsonarista Otoni de Paula, do MDB fluminense, chegou a gravar um vídeo dizendo que Bolsonaro “tinha tomado a decisão de proteger Roberto Jefferson da arbitrariedade da justiça”.
No final, o plano falhou. No futuro, provavelmente veremos o 23 de outubro como o Riocentro do Bolsonaro. Mas a tentativa de transformar a narrativa da censura em um atentado aconteceu. E não foi fruto da mente de um “lobo solitário” ou de “alguém em desespero”. Bolsonaro e Roberto Jefferson sempre estiveram juntos. Planejaram uma campanha eleitoral juntos, cavaram essa prisão e provavelmente planejaram a reação, incluídos aí os tiros. Só não esperavam que a violência extrema desse episódio fosse se voltar contra eles.
O fato de a reação ter falhado miseravelmente, mostrando que Roberto Jefferson age como um terrorista disposto a atacar forças policiais, forçou Bolsonaro a largar a mão do amigo, chamando-o de bandido. E a sociedade brasileira assistiu cada vez mais, assustada, ao desespero de um presidente da República que está vendo a reeleição ficar cada vez mais distante.
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