Às margens da estrada Antônia Mugnatto Marincek, que liga a rodovia Anhanguera ao bairro periférico de Ribeirão Verde, em Ribeirão Preto, destaca-se na paisagem um terreno de chão batido cheio de pilhas de madeira apodrecidas e um mastro com a bandeira do Brasil. É ali que o jovem Thiago José dos Santos, de 20 anos, trabalha como carregador. Ele foi uma das 17 pessoas com quem conversei na cidade e em sua vizinha, Franca, para entender por que preferiram Bolsonaro a Lula.
Com cabelo degradê na régua, tatuagens espalhadas pelo corpo troncudo e um esparadrapo na sobrancelha cobrindo um machucado, Santos falou comigo enquanto levava nos ombros compensados de madeira para carregar a carroceria de um caminhão.“Quando chega a eleição e Bolsonaro vê que vai perder, começa a baixar os preços. Acabou a eleição, volta tudo na mesma fita. Os carinhas são fodas, mano. O auxílio que ele deu, está tomando de volta”, criticou.
No depósito, encontrei cinco funcionários no trabalho braçal e uma mulher secretária. Além de Santos, mais um colega declarou voto em Lula. Os demais não quiseram dizer, mas revelaram o voto do patrão, que fincou a bandeira no local: Bolsonaro. Santos e o colega são minoria não só no bairro em que moram, mas no estado de São Paulo. O atual presidente foi vitorioso em todas as zonas eleitorais de Ribeirão Preto. Segundo levantamento do portal G1, ele obteve 41.554 votos (52,14%) na cidade, contra 30.620 de Lula (38,42%).
Na autodenominada capital do agro, as bandeiras do Brasil se espalham não apenas nas casas, mas nas empresas e comércios de bairro, criando um ambiente visivelmente bolsonarista. Tanto ali como em Franca, abordei pessoas que não ostentavam símbolos de um nem de outro candidato para descobrir seu voto apenas durante a entrevista – e percebi que há convicção e muita segurança em quem declarou renovar o voto em Bolsonaro.
Fora os dois carregadores de paletes em Ribeirão, apenas um eleitor em Franca, um aposentado que trabalha no comércio popular, declarou voto em Lula. Os outros 14 anunciaram-se bolsonaristas sem rodeios. Naturalmente, se dizem antipetistas, mas não justificaram sua escolha por Bolsonaro para “combater o PT” ou “acabar com a corrupção”, como muito se ouvia em 2018. Estão convencidos de que o candidato reflete visões de mundo próximas às suas, ainda que de maneira confusa: radicalmente contra o aborto; a favor da liberação de armas; defesa de valores conservadores, cristãos e da família.
‘Deus já manda a chuva para o povo. Votar é um dever meu. Ele não vai descer do céu para fazer por mim’.
Cada eleitor trouxe particularidades, mas todos validam o que Bolsonaro ofereceu ao país nos últimos quatro anos: para eles, foi um bom governo. As maiores incompetências são relativizadas. A pandemia que vitimou quase 700 mil brasileiros, as denúncias de corrupção na administração e na família de Bolsonaro, o aumento da fome e a economia que caminha aos tropeços.
A qualidade de vida em Ribeirão Preto e em Franca é boa. De acordo com dados da ONU, as cidades ocupavam, respectivamente, a 40ª e a 128ª posições no ranking de melhor Índice de Desenvolvimento Humano entre os 5.565 municípios brasileiros analisados em 2010. Juntas, concentram 1,1 milhão de moradores, segundo o IBGE, e giram em torno da produção de café e cana, além das indústrias calçadistas e do comércio local forte. Apesar da pujança da região, contudo, há pessoas como Santos, que sentem o peso dos alimentos mais caros e se incomodam ao ver Bolsonaro questionar a existência da fome no país.
Churrasco e cervejinha
A cerca de 15 quilômetros de onde conversei com Santos, em meio a prédios de classe média alta no bairro Ribeirânia, está o Parque Prefeito Luiz Roberto Jábali, conhecido como Curupira. Completamente diferente do Ribeirão Verde, a área é um dos principais espaços para atividades físicas e recreativas, que são realizadas sob sombras frescas de árvores nativas, ao redor de cachoeiras e em pistas de corrida.
Sentada à sombra das trepadeiras, encontrei a técnica de enfermagem Maria de Lourdes Pereira, de 68 anos. Como administradora de uma clínica de fertilização assistida, ela tem estabilidade financeira e disse que a situação econômica do país não é obstáculo para votar em Bolsonaro. “Continuo comendo meu churrasco, tomando minha cerveja com Lula ou sem Lula, com Bolsonaro ou sem Bolsonaro. Para mim, não mudou nada. É mesmo pelos princípios morais que eu estou indo no Bolsonaro”, disse.
Ela contou que o ex-marido faleceu em decorrência da covid-19, mas não põe a morte na conta do presidente. “Talvez, se tivesse a vacina, ele não teria falecido, né? Foi muita política entre ele [Bolsonaro] e Doria, duelando, uma coisa que era desnecessária. Esse tema aí, saúde e vacina, não tinha que entrar na política. Isso daí é coisa que Ministério da Saúde tinha que resolver, não eles”, criticou.
Na realidade, foi o governo de São Paulo, sob João Doria, quem primeiro anunciou a vacina em junho de 2020, em contraposição a Bolsonaro e ao Ministério da Saúde, que ignoraram a urgência para aquisição do imunizante e, quando o fizeram, foi com um preço maior do que pago pelos governadores, como revelamos nesta reportagem.
A vacinação é um tema incômodo para o corretor de seguros Carlos Nogueira, de 60 anos, que encontrei se exercitando naquela manhã de terça-feira, dia 18, em outro ponto do parque. Não pela demora, mas pela obrigatoriedade. Ele entende que Bolsonaro “conseguiu atravessar essa pandemia de uma forma gloriosa” e vê nele a reprodução dos valores que cultiva. “Liberdade de expressão. Hoje é até feio falar que eu sou um homem hétero”, reclamou. “Cada um faz o que quer da sua vida. E na ideologia do Lula não, está sempre falando do pobre. Poxa, não existe hoje preto, branco, azul, amarelo, não existem essas coisas”, disse.
Ainda que fale em liberdade, Moreira nega a existência da ditadura militar. “Eu vivi a liberdade. Os militares colocaram ordem no país”, falou sobre o regime que suspendeu direitos civis, entre 1964 a 1985, e matou ao menos 434 pessoas, segundo a Comissão Nacional da Verdade.
Deus não vota, o fiel sim
Bolsonarista que cultiva as mesmas ideias reacionárias de Moreira e Pereira, a ambulante Rosângela Abrantes, de 47 anos, é uma pessoa simpática, com a fala bem articulada e crítica. Na conversa no calçadão de Ribeirão Preto, sentada ao lado de um carrinho de pipoca, ela reforçou a escolha por Bolsonaro em razão de pautas como a restrição do aborto. “Por que existe a pílula do dia seguinte? Por que existe a camisinha? De enfeite? Então, eu sou pela vida”, resumiu.
Diferentemente dos outros dois bolsonaristas, Abrantes concorda com mais um elemento da campanha à reeleição: a dobradinha política e religião. “O povo de Deus precisa se posicionar a respeito da política, porque se não amanhã não poderemos entrar em nossos templos e a glorificar o nosso Deus. Deus já manda a chuva para o povo, para germinar a terra. Ir na urna e votar é um dever meu e seu. Ele não vai descer do céu para fazer por mim”.
Abrantes contou que na igreja que frequenta, a pentecostal Deus é Amor, não há espaço para políticos usarem o púlpito. Diferentemente do que acontece na igreja da esteticista Juliana Pereira Sales, de 32 anos. Segundo ela, na Igreja do Evangelho Quadrangular, do Lagoinha, bairro de classe média, o pastor André Carvalho orienta voto dos fiéis em Bolsonaro. Por mensagem, ele me disse que tem manifestado posição “diante de todas as minhas ovelhas”. Pelo seu perfil no Instagram, com 27,3 mil seguidores, o pastor declarou voto em Bolsonaro às vésperas do primeiro turno.
Sales não concorda com o jeito grosseiro de Bolsonaro, mas vota nele pelo projeto. “Desde do Egito [antigo], das histórias bíblicas já existe essa questão da política. Se é quem vai governar o Brasil, então precisa realmente ter princípios religiosos”, ponderou.
Clube do Tiro
Em Franca, encontrei dois bolsonaristas que defendem a flexibilização de armas. Um deles, Helvilmar Alves, de 67 anos, conversou comigo na loja de que é dono, no Shopping do Calçado. Ele contou que cultiva valores familiares desde criança por sua criação na religião católica. “O Brasil sempre foi muito família. Está havendo essas divisões agora de preto, negro, de raça, não tem o menor cabimento. Sempre convivi com todo mundo”, disse.
‘Não tem esse negócio de uma pessoa botar lei goela abaixo dum povo que está armado’.
Seguindo essa linha de pensamento, soltou uma frase que se assemelha às declarações em que Bolsonaro relativiza e minimiza o racismo: “Nem brincar com os outros você pode mais. Na minha época, por exemplo, uma pessoa de cor era ‘neguinho’. ‘Ô, neguinho, vem cá’. O cara era branco, era ‘ô coalhada’”, disse. “Não tinha maldade. Agora que está uma coisa meio estranha, né? Não sei como que implantaram isso”.
Questionei o que achava da frase reiteradamente dita por Bolsonaro, “um povo armado, jamais será escravizado”. “A arma traz respeito. Respeito e medo. Ajuda, é uma ideia boa. Uai, o povo armado não é escravizado. Não tem esse negócio de uma pessoa botar uma lei goela abaixo dum povo que está armado”, disse.
Fiz a mesma pergunta ao empresário de uma indústria de calçados Rodrigo Alessandro Mendes, de 43 anos, também diretor do clube de tiro Sniper Franca. “Eu parto do seguinte pressuposto: se você estiver desarmado e algum tirano quiser tomar o poder, vai fazer o quê? É abaixar a cabeça e falar amém. Não que ele [Bolsonaro] queira partir para cima e fazer alguma coisa. Isso aí ele nunca falou e nem incentiva”, avaliou.
Assim como Mendes, o comerciante Alves também acredita que o governo Bolsonaro, que se diz liberal, é a melhor opção econômica para o Brasil. “Ele conseguiu organizar [a economia durante a pandemia], eu falei procês, eu não acreditava, né? Mas virou meu ídolo. O que ele vem enfrentando, o que ele vem fazendo e continua em pé, não é qualquer homem que conseguiria não”.
*colaborou Yuri Rosat
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