“Estamos sim vivendo em uma guerra espiritual”, cravou Michelle Bolsonaro em um dos encontros que ela e Damares Alves têm realizado com mulheres cristãs pelo país. “Esse câncer do partido das trevas vai ser dissipado da nossa nação. Esse partido [o PT], ele só veio pra matar, roubar e destruir a nossa nação”. Em um primeiro momento, o discurso da primeira-dama pode parecer carregado apenas para dar mais dramaticidade à tentativa de atrair os votos das mulheres preocupadas com os “valores bíblicos”. Mas a situação é mais grave.
A pregação de Michelle é, antes de tudo, um exemplo de como o segmento evangélico tem sido assediado pelo discurso bolsonarista mais radicalizado, dentro e fora dos templos, fomentando uma profunda hostilidade à esquerda e às propostas progressistas. Em segundo lugar, é um estrago que não apenas afeta as igrejas evangélicas no país, como desenha consequências ameaçadoras para o pós-eleição.
Após o resultado deste último domingo, o receio de que vejamos um episódio semelhante ao que aconteceu nos Estados Unidos após a derrota de Trump, com a invasão do Capitólio em 6 de janeiro, é inegável. Ao imaginar a cena, muitos de nós já pensam em como reagiriam a uma base bolsonarista radical já organizada para uma contestação violenta da vitória de Lula.
Mas esse não é o perfil das pessoas que se envolveriam em uma possível imitação do ataque ocorrido em solo americano. Nos Estados Unidos, as investigações do FBI identificaram que muitos dos participantes da invasão não eram necessariamente “terroristas” ou membros ativos de movimentos de supremacia branca organizados. Ao contrário. O relatório mostrava uma grande quantidade de pessoas comuns, que nunca haviam “passado da conta”.
Essas pessoas, porém, tinham algo importante em comum: frequentavam igrejas evangélicas, a maioria com líderes conservadores conspiracionistas; simplesmente se consideravam cristãs; ou diziam respeitar a tradição cristã do país. Elas passaram o período eleitoral sendo radicalizadas pela mensagem evangélica ultraconservadora que demonizava Biden e os progressistas, enquanto pintava Trump como aquilo de que a “América” precisava para permanecer branca, cristã e conservadora.
Portanto, não devemos subestimar o que está acontecendo em muitas igrejas agora – ou movimentos como o que tem feito Michelle Bolsonaro e Damares Alves percorrerem o país. Está havendo um processo de radicalização, e não é necessário buscar o exemplo dos EUA para analisar esse fenômeno. Podemos tão somente olhar como a Igreja Universal do Reino de Deus forjou a postura de evangélicos pentecostais sobre as religiões de matriz africanas. Nesse campo, já experimentamos um processo de radicalização ignorado por décadas, a não ser pelas vítimas.
Há anos, evangélicos que – influenciados por uma teologia de matriz racista – acreditam no conto de que os orixás das religiões de matriz africana são demônios passaram a considerar razoáveis os ataques físicos, verbais e simbólicos contra esses fiéis. A década de 1990 e o início dos anos 2000 foram “infernais” para muitos candomblecistas e umbandistas, expostos em programas de televisão evangélicos que exibiam “demônios” com nomes de orixás sendo “entrevistados” por pastores, “revelando” planos macabros para os crentes.
Problemas individuais eram quase sempre associados a “trabalhos” feitos como oferenda a algum orixá do candomblé. Em muitos territórios, a precariedade, a pobreza, a violência e outras tragédias locais eram atribuídas à presença de terreiros na região. Muitas favelas e periferias das regiões metropolitanas passaram a ser lugares arriscados para fiéis de terreiro. Ser “macumbeiro” passou a ser perigoso, deixando o fiel sujeito a hostilidades e violências. Começa aí (e não parou até hoje) o histórico de muitos terreiros frequentemente invadidos, destruídos, pichados, apedrejados, queimados etc.
Isso é resultado direto de um processo gradual de radicalização que esteve longe de se restringir à intolerância ou ao racismo religioso puro e simples. É exatamente o que fez a “turnê” eleitoral de Damares e Michelle pelo Brasil. Por onde passam, cada pregação foi impregnada da demonização da esquerda, acompanhada de uma conclamação para o que consideram uma “guerra espiritual” em curso no plano político e físico. Sermões são meticulosamente construídos para gerar sensibilidade e adesão à causa do “guerreiro” Bolsonaro e revolta e indignação contra o candidato do “Partido das Trevas”, Lula.
Muito pouco aqui é muito diferente do roteiro construído nos Estados Unidos. Por gerações, os evangélicos brancos alimentaram pregações e discursos sobre cristãos corajosos contra uma sociedade perversa que visava tirar a importância do temor a Deus da vida dos evangélicos, fechar igrejas, ou dificultar a abertura de novas, por considerá-las desnecessárias para a sociedade ou para o governo.
Tendo convencido tantos evangélicos de que a próxima eleição poderia desencadear o fim da igreja, líderes religiosos transformaram milhares de templos em células involuntárias de um contingente de pessoas radicalizadas, onde todas as teorias da conspiração são bem-vindas – e, no limite, onde os fiéis estão dispostos a se entregar a uma “luta real”, se estiverem convictos de agirem segundo a vontade de Deus.
Obviamente, essa “coragem” de agir radicalmente não nasce da noite para o dia. Por isso, para Damares, Michelle e pastores bolsonaristas, o tempo urge, e a forma de provocar uma reação é cada vez mais incisiva. Reportagens recentes em diferentes veículos de comunicação, como o Intercept, a BBC e a Agência Pública, têm noticiado a perseguição que lideranças evangélicas têm feito a membros e lideranças que declaram voto a Lula.
André Valadão, o famoso pastor da Igreja Lagoinha em Orlando, simulou ter sido censurado, encenando uma falsa punição pelo Tribunal Superior Eleitoral por ter falado contra o candidato do PT. Não há nenhuma explicação possível para o fingimento além do objetivo de estimular a hostilidade e a postura radical de evangélicos contra o TSE, sob a alegação de “perseguição” à igreja.
No dia 14 de outubro, o muro de uma igreja em Fortaleza, onde a Michelle dama e Damares iriam falar, foi atingido por um tiro. O responsável foi imediatamente preso, e as investigações não encontraram qualquer associação direta entre o disparo e o evento em que as bolsonaristas falariam.
Apesar de o tiro ter sido dado uma hora antes do início do encontro, Damares passou imediatamente a dizer, sem qualquer base em fontes da polícia ou nas investigações, que ele foi direcionado à esposa do presidente. A história de Damares foi criada para induzir o público a acreditar que o disparo aconteceu no exato momento em que Michelle estava na igreja, como se o atirador tivesse apenas errado o alvo.
Falando sobre o caso cinco dias depois, Damares compartilhou sua própria conclusão: “Quanto a mim, eu até entendo. Eu prendi milhares de pedófilos. Eu enfrentei o crime organizado. Mas querer matar Michelle? Até onde vai o ódio dessa esquerda sanguinária no Brasil?”.
Além de fazer uma acusação grave, jogada ao vento com a única intenção de provocar medo e indignação, Damares também usou uma linguagem eficaz para dar a entender que Michelle seria a “inocente” serva de Deus vítima de uma “cilada” de Satanás, que agiu por meio de alguém da esquerda disposto a matá-la.
O roteiro bolsonarista para a derrota desse domingo parece pronto. E, talvez, muitas igrejas evangélicas e seus membros ainda não tenham se dado conta de que estão dispostos a defender não valores do evangelho, mas de uma ideologia extremista e anticristã.
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