Cena do crime alterada, pedido para exclusão de vídeos feitos por um cinegrafista profissional e vítima levada em viatura sem atendimento do Samu. De acordo com especialistas em segurança pública ouvidos pelo Intercept, essas são algumas das violações na cena do crime cometidas por policiais militares e profissionais ligados a Tarcísio de Freitas, que se somam ao homicídio ocorrido em Paraisópolis, no último dia 17 de outubro.
O crime principal aconteceu durante um compromisso de campanha do então candidato bolsonarista — eleito governador de São Paulo, no dia 30 — com o assassinato de Felipe da Silva Lima, de 28 anos, após tiros disparados por policiais. Testemunhas afirmaram que os agentes, à paisana, mataram Felipe quando ele estava desarmado.
Para ouvir os especialistas, o Intercept tomou como base o boletim de ocorrência lavrado naquele mesmo dia. No documento, consta que a vítima foi alvejada por volta de 11h40. Nenhuma arma foi encontrada com ele.
Ainda segundo o registro, policiais militares fardados foram ao local e recolheram itens espalhados pelo chão: cartuchos íntegros e deflagrados, um coldre, um relógio de pulso, um aparelho celular e estojos de armas. Ronald Quintino Correia Camacho, tenente da Polícia Militar responsável pela coleta, segundo o documento, disse que agiu dessa forma para que os materiais encontrados “não fossem perdidos ou subtraídos por populares”.
Para Renato de Vitto, defensor público do 1º Tribunal do Júri de São Paulo e ex-diretor geral do Departamento Penitenciário Nacional, isso é um flagrante de modificação de cena de crime – o que configura fraude processual, crime previsto no artigo 347 do Código de Processo Penal. “A polícia dirige-se ao local e providencia que não se altere o estado e a conservação das coisas até a chegada dos peritos criminais. Quem vai manusear objeto relacionado à cena do crime é perito criminal”, disse.
“Isso é uma lição básica de manual. Esse tipo de voluntarismo, sendo generoso no termo, se não é de fato uma ação voltada a dificultar a investigação, causa nulidades no processo”, completou.
Vitto não foi o único a apontar a insubordinação da PM à lei. Gabriel de Carvalho Sampaio, mestre em direito processual penal e especialista em ciências criminais, deixou claro que, apesar de o inquérito estar em curso, as informações disponíveis até agora indicam que “há ilicitude em condutas que embaracem o trabalho da perícia, como a modificação do local dos fatos, recolhimento de projéteis e qualquer recolhimento de indícios que não respeite a cadeia de custódia disposta em lei”.
A preservação de local e de vestígios do crime são providências fundamentais a serem tomadas em caso de morte violenta, destacou. A cadeia de custódia, definida nos artigos 158-A a 158-F do Código de Processo Penal é “o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes”.
No subartigo C, a lei federal define que “a coleta dos vestígios deverá ser realizada preferencialmente por perito oficial, que dará o encaminhamento necessário para a central de custódia”, e o parágrafo segundo do artigo complementa: “é proibida a entrada em locais isolados bem como a remoção de quaisquer vestígios de locais de crime antes da liberação por parte do perito responsável, sendo tipificada como fraude processual a sua realização”.
Analista criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Guaracy Mingardi segue o mesmo entendimento. “Quem tem que pegar os indícios materiais no local é a perícia, ponto. E o local só pode ser liberado após a perícia atuar e o delegado, que tem que ir ao local do homicídio, liberar”, explicou.
Depois de retirar os itens do local, os policiais militares fardados levaram Felipe da Silva Lima ao Hospital do Campo Limpo. Antes, a vítima apareceu em um vídeo caído no chão, com uma perfuração no peito, ao lado de PMs.
Segundo as testemunhas, a viatura que transportava o corpo parou por alguns minutos em um posto de gasolina antes de seguir ao hospital — que consta no documento de óbito como o local da morte de Felipe.
O horário registrado de sua morte foi às 12h06. As testemunhas contradizem o documento, apontando que Felipe morreu no local onde foi baleado, em Paraisópolis. Diante dessa possibilidade, os policiais não poderiam ter removido o corpo (novamente, isso seria quebra da cadeia de custódia). A PM deveria apenas cercar a área e esperar os peritos.
Para Mingardi, retirar o corpo do local é “uma tradição da Polícia Militar”. “Tem um tiroteio, eles [a PM] levam para o hospital apesar de já estar morto, às vezes há algum tempo, para dizer que morreu no caminho. E aí descaracteriza o local também”, apontou.
Vitto ressaltou uma possível guerra de versões sobre a morte. A polícia pode falar, segundo o defensor público, que ele não estava morto e tentou salvá-lo. Quem atesta óbito, lembra, é o médico – não um policial militar.
A questão, para ele, é saber se os policiais acionaram o Samu, que poderia constatar a morte ou realizar o resgate. Não se sabe se o Samu foi acionado, mas fontes informaram que o socorro não chegou até ao local. A parada da viatura no posto de gasolina, relatada pelas testemunhas, indica para Vitto ” um ato criminoso em relação ao próprio homicídio, o que é mais grave ainda”.
Pressão para apagar imagens
Após a morte de Felipe, a equipe de Tarcísio e os integrantes da imprensa que estavam presentes foram para uma van blindada, alugada para o então candidato. O veículo disparou e quem estava ali só pôde descer no comitê de campanha, na Vila Mariana, distante cerca de 40 minutos de carro. Foi lá, no segundo andar do comitê, que Marcos Andrade gravou Fabrício Paiva, amigo pessoal de Tarcísio e agente licenciado da Agência Brasileira de Inteligência, ordenando a exclusão de imagens feitas que mostravam os policiais à paisana atirando.
Ao vivo na televisão, Tarcísio disse que Paiva pediu “apaga isso, apaga aquilo” ao cinegrafista por “preocupação com as pessoas” que estavam no evento e poderiam ter sido filmadas. Tenha sido esse o real motivo do pedido ou não, Sampaio afirmou não fazer diferença. “Não há justificativa para que alguém constranja o detentor de filmagens que possam interessar à investigação a destruir o material gravado”, explicou.
Com as informações disponíveis até o momento, Vitto concorda com Sampaio. “A campanha do candidato diz que foi no intuito de se proteger pessoas, mas parece se esquecer de que a tutela, o bem jurídico mais valioso que a gente tem, que é a vida, exige uma investigação apurada. Além de absolutamente reprovável, em tese pode, sim, caracterizar crime de fraude processual”.
O defensor público vai além, tomando como lugar de partida a denúncia do cinegrafista de que a equipe de Tarcísio pediu à Jovem Pan, emissora que trabalha, sua demissão.
“A depender do grau de intimidação, considerando que ele é detentor dessa imagem, potencial testemunha no inquérito policial, se houve um constrangimento sério – uma ameaça, por exemplo, de ele perder o emprego –, isso pode, em tese, caracterizar o crime de coação no curso do processo, que tem até a pena bem mais pesada do que da fraude”.
Enquanto fraude processual pode ser punida com reclusão de três meses a dois anos e multa, coação no curso do processo prevê pena de um a quatro anos de detenção.
No meio de uma campanha política, ressaltou Vitto, o tom deveria ser “cautela e canja de galinha, e não este tipo de truculência e intimidação com profissionais que estão trabalhando”. “Qual o interesse de apagar as imagens?”, questionou.
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