Foram quatro anos lutando contra um nível avassalador de fake news, vendo jornalistas apanharem na rua, terem seus dados vazados e serem atacados massivamente nas redes sociais – as jornalistas mulheres foram alvo preferido dos extremistas. Mas minha sensação é que, passado nem um mês da eleição de Lula, esses anos de governo de extrema direita foram apagados da memória de muitos de meus colegas, que voltaram às suas raízes antipetistas mais mesquinhas.
Há alguns dias, Eliane Cantanhêde viralizou nas redes ao questionar qual seria o papel da nova primeira-dama. O questionamento é legítimo, mas a forma como foi feito revela o quão rasa e preconceituosa pode ser uma opinião disfarçada de análise política. A jornalista fez uma comparação ridícula entre Janja Lula da Silva, esposa do presidente eleito, e Ruth Cardoso, primeira- dama do governo FHC. Para ela, a influência política de Janja é excessiva, enquanto Ruth – aparentemente, exercendo um papel mais adequado pela régua de Cantanhêde – “não tinha voz nas decisões políticas, se tinha, era a quatro chaves, dentro do quarto do casal”.
É cansativo ter que, em 2022, reiterar que neste século as mulheres podem e devem se envolver politicamente, especialmente quando são filiadas ao partido e militantes. Cantanhêde tentou se justificar com o inexistente “machismo reverso” e questionou: “E se fosse o contrário? A mulher presidente com um marido interferindo em tudo?”, ao responder a uma crítica do professor de Direito da FGV Thiago Amparo. Ele bem a lembrou que este é um falso dilema e que “inverter o sexo na equação não elimina serem as mulheres – não homens – sujeitos à subordinação”. E ainda pontuou que até mesmo feministas liberais falam sobre isso há tempos.
Para alívio dos que acompanhavam a discussão, a jornalista foi educadamente questionada por um colega. O resultado foi uma onda de apoio nas redes com a tag #RespeitaAJanja. A ex-presidente Dilma Rousseff chegou a dizer que a feminista e escritora “Simone de Beauvoir ensinou que o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”. Ela está certa.
Tempos depois, foi a vez de Dora Kramer, jornalista da Band News, fazer alusões à esposa do novo presidente. Sem absolutamente nada que endosse a preocupação, ela tuitou, “despretensiosamente” às 5h40 da manhã de um feriado: “Já pensaram na hipótese de Lula gestar a ideia de uma candidatura de Janja em 2026? Pois podem começar a pensar”. Pode ser uma preocupação válida daqui a um tempo. Pode. É agora, três semanas após o fim das eleições? Não.
É fato que o jornalismo precisa melhorar, para o bem da democracia. É urgente.
As respostas imediatas de internautas e jornalistas foram de que parentes e cônjuges do presidente não poderiam se candidatar ao cargo de chefe do Executivo, como determinado pelo Tribunal Superior Eleitoral em agosto deste ano. Mas, na realidade, o TSE mudou sua interpretação no mês seguinte e passou a admitir que cônjuges concorram à sucessão para um segundo mandato.
Contudo, mantendo a lógica da manifestação de Kramer sobre Janja, causa estranheza que a a jornalista tenha postado quatro dias antes: “Vi aqui gente falando que, se reeleito, Bolsonaro põe um filho para disputar a presidência em 2026. Não pode, a lei proíbe a candidatura do parente”. Essas opiniões um pouco dissonantes fizeram com que Kramer fosse bastante questionada nas redes.
Para além dessas “análises políticas”, Janja tem enfrentado ruminações sobre o que veste. A socióloga com MBA em gestão social e sustentabilidade e servidora de carreira de Itaipu deu entrevista ao Fantástico vestindo uma camisa branca e vermelha, feita pelo estilista brasileiro Airon Martin. Alguns veículos destacaram que a blusa é feita de material reciclado, resgata símbolos nacionais e valoriza a matéria-prima brasileira, embora a maioria dos títulos priorize o preço da peça.
Lula só assume o cargo daqui a um mês e meio, mas as picuinhas e cobranças em relação à sua esposa se anteciparam, diante de um estado de coisas ainda frágil, que exige da sociedade, mas em especial dos jornalistas, uma atenção especial à política de fato. Temos ruas tomadas por golpistas, militares agindo fora de seu escopo constitucional, um presidente birrento que, ainda no cargo, não trabalha (essa parte pode não ser tão ruim, confesso).
Obviamente, não sou contra investigar transgressões e questionar o governo petista recém-eleito, ou as gestões passadas do partido. Eu mesma o fiz de forma muito crítica, especialmente em relação à segurança pública, área a que me dedico. Vira e mexe, sou criticada por apontar que políticas petistas nos colocaram dentro de um robusto estado policial – que depois se voltou contra Lula. Também analisei, com meu colega Andrew Fishman, toda a gestão presidencial do PT na segurança e apontei quantas oportunidades de mudanças perdemos. Não tenho ilusões ou paixões. É a política como ela é.
Mas é fato que o jornalismo precisa melhorar, para o bem da democracia. É urgente.
Você sabia que...
O Intercept é quase inteiramente movido por seus leitores?
E quase todo esse financiamento vem de doadores mensais?
Isso nos torna completamente diferentes de todas as outras redações que você conhece. O apoio de pessoas como você nos dá a independência de que precisamos para investigar qualquer pessoa, em qualquer lugar, sem medo e sem rabo preso.
E o resultado? Centenas de investigações importantes que mudam a sociedade e as leis e impedem que abusadores poderosos continuem impunes. Impacto que chama!
O Intercept é pequeno, mas poderoso. No entanto, o número de apoiadores mensais caiu 15% este ano e isso está ameaçando nossa capacidade de fazer o trabalho importante que você espera – como o que você acabou de ler.
Precisamos de 1.000 novos doadores mensais até o final do mês para manter nossa operação sustentável.
Podemos contar com você por R$ 20 por mês?