Por essa o senhor Momofuku Ando não esperava. O país do feijão com arroz (e bife ou frango, quando dá!) virou a pátria do miojo.
O Brasil da feijoada, do tropeiro e do baião de dois já é o décimo consumidor mundial do macarrão instantâneo. Com renda baixíssima e inflação pesada na comida, cenário típico da política econômica BolsoGuedes, o consumo desse produto só cresce – algumas marcas aumentaram em até 35% as suas vendas no último ano.
Quando inventou o miojo, há 64 anos, no Japão, o caríssimo Momofuku Ando (1910-2007), fundador da Nissin Foods, estava preocupado em criar um alimento barato e prático, perfeito para a dureza e a escassez do período pós-Segunda Guerra. Não é à toa que também encontra agora, no Brasil de 2022, um apetite de dimensões continentais.
Comer um miojo como opção do cardápio caseiro, tudo bem, não é um pecado gastronômico que leve ao inferno. Longe de mim, raio gourmetizador. O drama é a monotonia alimentar: comer quase sempre o mesmo prato, repetidamente, por questão de castigo orçamentário.
Em bate-papo esta semana com a ex-ministra Tereza Campello, ela contou que o direito a uma alimentação rica e diversificada é uma das principais preocupações discutidas no grupo da transição do qual faz parte, o do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. “Esta questão da monotonia alimentar, com macarrão instantâneo e salsicha – quando tem – é no país inteiro, da periferia de São Paulo à Amazônia”, disse.
Na mesma equipe escolhida pelo presidente eleito, Tereza enaltece e conta com a colaboração de Bela Gil, apresentadora de TV cujo mote principal é a agroecologia e a comida saudável. Ela é formada em Nutrição pela Hunter College em Nova York e mestra em Ciências Gastronômicas.
À mesa de botequins ou de podcasts, há sempre quem tente folclorizar o trabalho de Bela Gil, sob a alegação humorística de que o “churrasco de melancia” da apresentadora é uma contradição (inconciliável) com a política da “picanha com cerveja” prometida por Luiz Inácio Lula da Silva.
A Bolsa sobe a cada ronco das tripas das crianças famintas.
Sátira à parte, cabe à turma da transição pensar não apenas uma alternativa ao dominante miojo, mas mudar também o cardápio de uma merenda escolar que chegou a ter um ovo para ser dividido por quatro alunos. Pior é que, mesmo assim, o ovo virou uma raridade. Prevaleceu o suco em pó (tipo k-suco) e uma solitária bolacha. Típica dieta imposta pela política de gastos do bolsoguedismo – para aplausos selvagens dos representantes do mercado. A Bolsa sobe a cada ronco das tripas das crianças famintas.
Nesse caso, os estudantes carentes sequer tiveram direito ao miojo criado para o pós-guerra, senhor Momofuku Ando. No país da fila do osso, os mais pobres (lascados que nem maxixe em cruz) sequer sentiram o cheiro de uma suposta galinha caipira do macarrão instantâneo – aqui lembro o sabor artificial mais querido pelos brasileiros e brasileiras que consomem cerca de 3 bilhões de porções dessa iguaria por ano.
“Ó Josué eu nunca vi tamanha desgraça/ quanto mais miséria tem/ mais urubu ameaça”. A trilha sonora de Chico Science & Nação Zumbi reverbera no país em que a louvação midiática ao corte de gastos públicos significa basicamente subtrair uma refeição diária da boca dos desvalidos.
Evocado na música “Da lama ao caos”, guru ideológico do movimento mangue beat, Josué de Castro (1908-1973), médico e geógrafo pernambucano, fez a denúncia pioneira do escândalo alimentar brasileiro ainda em 1946, no clássico “Geografia da Fome”, livro reeditado recentemente pela editora Todavia. Era um país de uma economia raquítica, sem importância alguma no mundo.
Em 2014, durante o governo Dilma Rousseff, o Brasil saiu do Mapa da Fome. Oito anos depois, em plena era do arrocho na gestão Bolsoguedes, o Brasil pediu de novo sua inscrição no clube dos famélicos, mesmo na condição de um país de economia relevante. Com ou sem miojo para aliviar a barra, o ronco dos estômagos denuncia uma vergonha interplanetária para a humanidade. Foi bom conversar com vocês, caríssimo Momofuku Ando, Josué e Chico Science. Até a próxima.
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