É 15 de agosto, feriado no Pará, e acaba de amanhecer em Novo Progresso. Nem por isso a cidade de 25 mil habitantes, situada à beira da BR-163, está parada. Enquanto os primeiros clientes entram e saem das lojas de ouro, na zona de prostituição meia dúzia de homens tenta se recuperar da noite agitada para começar mais um dia de trabalho nas queimadas, no garimpo ou nas derrubadas. Em seus escritórios, corretores e engenheiros graduados usam o estado a serviço da apropriação de terras públicas.
Estamos no “centro do garimpo do agronegócio”, uma área que “vem sendo disputada a cada palmo pelos investidores”, como anuncia um dos vários perfis de venda de propriedades rurais no Facebook. O cardápio à disposição do freguês é variado. Inclui áreas com ou sem floresta, dentro ou fora de unidades de conservação, com ou sem multa ambiental, com ou sem ouro. Para usufruir dessas opções, basta que o cliente esteja disposto a abrir mão do título de terra.
“É muito raro achar fazenda com documento na região”, esclareceu Roberto, um dos diversos corretores que lucram com a valorização dos imóveis no sudoeste do Pará, após a conclusão do asfaltamento da BR-163, no final de 2019.
Com tanta procura, quem dormir no ponto corre o risco de perder o negócio. “Restam poucas opções, hein? Principalmente se tu procura área para lavoura [sobretudo de soja]. Aqui tá de um jeito que quando passam três, quatro dias, o proprietário já está vendendo”, alertou o corretor.
O resultado desse boom imobiliário é uma nova onda de grilagem e desmatamento, cujo alvo principal são as terras públicas não-destinadas, como são chamadas as parcelas pertencentes à União e aos estados que não foram convertidas em unidades de conservação, terras indígenas, assentamentos, concessões florestais ou mesmo em propriedades particulares.
Segundo um relatório do Greenpeace, o desmatamento nas áreas não-destinadas do entorno da BR-163, no Pará, aumentou 205% entre agosto de 2019 e julho de 2020, em comparação com o mesmo período anterior.
Como vimos na primeira reportagem da série Ladrões da Floresta, que contou a história do maior desmatamento já registrado na Amazônia pelo Mapbiomas, a grilagem não é uma atividade amadora, e sim uma ação do crime organizado que demanda investimentos milionários e a participação de múltiplos atores sociais. E, na linha de montagem dessa indústria, o sujeito que se embrenha na mata para colocá-la abaixo é o que mais dá duro, trabalhando muitas vezes em condições análogas à escravidão. No topo desta cadeia produtiva, estão aqueles que financiam o desmatamento e lucram com a terra roubada, seja com a venda a terceiros ou com a produção agropecuária.
Entre esses dois extremos, no entanto, há agentes intermediários que costumam passar despercebidos, mas ganham somas significativas com a grilagem. Passando-me por um fazendeiro interessado em comprar terras, conversei por WhatsApp com dois corretores de imóveis que atuam nas áreas próximas à rodovia federal. Ao ser confrontado pelo Intercept, ao final da apuração, um deles disse que poderia ser assassinado se seu nome fosse mencionado na reportagem. Por isso — e considerando o histórico de pistolagem e assassinatos na região — vamos usar nomes fictícios quando nos referirmos a ambos.
Cinco minutos após receber minha primeira mensagem, Roberto já estava a postos para buscar áreas do meu interesse. Em poucos dias, me mandou quatro opções de fazendas. Uma delas, de R$ 135 milhões, fica no distrito de Castelo dos Sonhos e tem 3 mil hectares, dos quais 2,2 mil já foram desmatados e convertidos em pastagem. Seu principal atrativo é o relevo: a área é plana, o que permite o uso de máquinas agrícolas e, por consequência, o plantio de soja. “Ela é toda chapadão, você olha uma imagem e parece que já está vendo tudo”, garantiu o corretor.
Outra área oferecida, essa em Novo Progresso, custa R$ 35 milhões e tem 1.936 hectares, quase 90% deles desmatados — o próprio anúncio pontua que a área foi alvo de uma multa e embargada pelo órgão ambiental, talvez prevendo que as autuações (tão comuns nessa região) não sejam um impeditivo para fechar o negócio. A estrutura inclui uma sede de alvenaria, torre de internet e até pista para avião monomotor. Para completar, uma valiosa observação: “área possui ouro”. O Intercept apurou na região que é comum fazendeiros permitirem o ingresso de garimpeiros em suas propriedades em troca de uma porcentagem sobre o metal extraído do garimpo ilegal.
Na força da pólvora
Minhas conversas com Roberto terminaram quando ele disse que só poderia mandar a localização das fazendas se eu assinasse um documento que lhe garantisse a exclusividade do negócio. Nele, os clientes se comprometem a não comprar imóveis “através de outro intermediário ou diretamente com o proprietário” ou, caso venham a fazê-lo, garantem que mesmo assim vão pagar a Roberto um percentual de 6% sobre o valor da propriedade.
Enquanto isso, eu também trocava mensagens com Gustavo, que foi logo fazendo as perguntas de praxe para traçar o perfil do cliente. Questionou o tamanho e o uso que eu pretendia dar à área, o valor do investimento e qual o meu nível de exigência em relação à documentação — deixando claro que, se eu pretendesse áreas regularizadas, seria preciso buscar mais ao norte, perto de Santarém.
“Maravilha. É uma área grande. Vou dar uma levantada aqui nas opções que atendam esse tamanho” respondeu, depois que expliquei que procurava uma propriedade de uns 6 mil hectares para criação de gado, mas que também tivesse aptidão para o plantio de soja e que me daria por satisfeita com um registro no Cadastro Ambiental Rural, o CAR, e com o georreferenciamento da área — uma planta feita a partir das coordenadas geográficas e limites da fazenda.
Ao longo de pouco mais de dois meses de conversa, Gustavo me ofereceu oito opções de fazendas no eixo da BR-163, entre Castelo dos Sonhos, Novo Progresso, Trairão e Altamira, cujos preços variavam de R$ 25 milhões a R$ 100 milhões. Caso a venda fosse concretizada, o corretor embolsaria uma comissão entre R$ 750 mil e R$ 3 milhões, correspondente a 3% do valor do negócio. “Normalmente, aqui é 5%, mas se a área passa de R$ 10 milhões, a gente fala em 3%”, explicou.
A oferta top de linha é de uma fazenda na beira do Rio Jamanxim, com quatro casas, curral, barracão, energia, internet e capacidade para 8 mil bois. Localizada entre Castelo dos Sonhos e Novo Progresso, quase metade da área – o correspondente a 2,4 mil hectares – já está “formada”, o que, no linguajar da grilagem, significa que a mata foi derrubada e o capim já está plantado. Tudo isso por R$ 100 milhões, o suficiente para comprar 12 mansões iguais às da cantora Anitta em Miami.
Em outra oferta, de R$ 80 milhões, o vendedor esclarece que 2.246 dos 6.444 hectares ficam “fora da reserva”, expressão usada na região para se referir à Floresta Nacional do Jamanxim (a segunda unidade de conservação mais desmatada do país segundo o Inpe). A fazenda é muito bem equipada: duas casas, uma casa para funcionários, refeitório, barracão, casa de carneiro, curral grande, energia elétrica, internet e “excelente estrada de acesso”.
Nossa equipe esteve em uma das áreas ofertadas por Gustavo, uma fazenda de R$ 35 milhões, com 4.157 hectares (dos quais quase 3 mil foram desmatados) e localizada numa área pública não-destinada da União — a gleba Curuá. Para chegar lá, saímos de Novo Progresso e rodamos 50 quilômetros pela rodovia federal em direção ao norte, até entrarmos em uma estrada de terra chamada Diamantino. Dirigimos por mais 60 km, passando por áreas de criação de gado e outras ainda fumegantes das recentes queimadas. Enfim, chegamos à fazenda do anúncio: coberta de pasto e com algumas cabeças de gado, cercada por vastas plantações de soja (em agosto, quando estivemos na região, a terra estava sendo preparada para o plantio).
“É uma região de muita gente rica. Lá, o negócio é do povo que tem a pólvora”, explicou Gustavo por WhatsApp, numa referência que se aplica tanto ao poder econômico quanto ao calibre dos proprietários de terra para intimidar vizinhos e “resolver” possíveis conflitos.
Quem não tiver tanta bala na agulha, no entanto, pode comprar uma área de floresta ainda de pé, por R$ 10 mil o hectare. “Mas dá para a gente ver o que consegue melhorar no preço”, garantiu o corretor. Ávido por fechar o negócio, Gustavo envia até o contato de um homem que trabalha fazendo derrubadas na região. “Pessoal para fazer derrubada não é difícil de achar aqui, não. A gente está alinhando isso”.
Em nota enviada ao Intercept, o Conselho Regional de Corretores de Imóveis do Pará, o CRECI-PA, informou que intermediar a venda de terras sem título regular é uma “transgressão” ao código de ética da profissão, cuja punição pode ir de advertência verbal até a apreensão da carteira profissional. O caso de Gustavo é ainda mais grave, uma vez que, ao contrário de Roberto, ele não está registrado junto ao órgão, o que o torna um “contraventor” sujeito à punição criminal. Procurado pela reportagem, o próprio Gustavo admitiu que usa um número de CRECI falso.
O engenheiro da grilagem
Nenhuma das ofertas enviadas pelos corretores ouvidos na área da BR-163, assim como muitas outras encontradas na internet, especificam se as propriedades colocadas à venda têm título de terra. Mas sobram referências ao CAR, documento criado em 2012, junto com o Novo Código Florestal, para ajudar no controle ambiental.
Nas mãos dos grileiros, no entanto, o registro virou um verniz de legalidade a ser aplicado sobre a apropriação de áreas públicas. Um relatório aprovado em novembro pela Comissão de Meio Ambiente do Senado identificou, até o fim de 2020, mais de 14 milhões de hectares de terras públicas registrados ilegalmente como propriedades particulares no CAR, dos quais 3,4 milhões já haviam sido desmatados. “A ligação entre a grilagem marcada pelo CAR e a retirada da floresta como meio de comprovar a posse sobre a terra […] é um dos principais impulsionadores do desmatamento”, destacou a comissão.
O CAR é obrigatório para todos os imóveis rurais. No documento, o proprietário deve informar o nome, CPF, a localização da fazenda e quais as áreas da propriedade destinadas à preservação permanente, reserva legal, agricultura, etc.
Como é autodeclaratório, qualquer um pode registrar um CAR onde quiser, independentemente de ser ou não dono da área — a lei determina que o declarante comprove “a propriedade ou posse rural”, mas não exige o título ou matrícula das terras. Teoricamente, todas essas informações deveriam ser checadas por servidores das secretarias estaduais ou municipais de Meio Ambiente, que também teriam de verificar se a propriedade está sobreposta a terras indígenas ou unidades de conservação. Na prática, no entanto, apenas 1% dos CARs da Amazônia Legal passaram por essa verificação, originando uma verdadeira farra em áreas protegidas.
“A grilagem de terras nunca foi tão fácil, com menção honrosa ao CAR, um terrível instrumento de grilagem”, afirmou Maurício Torres, professor da Universidade Federal do Pará.
O registro do CAR é feito pelo site do governo federal ou pelos sistemas próprios de cada estado. Mas para imóveis acima de quatro módulos fiscais (o que nesta parte do Pará significa acima de 300 hectares), a inscrição demanda uma planta georreferenciada da área.
É aí que entra outra peça dessa engrenagem criminosa: o engenheiro da grilagem. São profissionais capacitados para trabalhar com georreferenciamento e que estão dispostos a colocar seus conhecimentos a serviço da apropriação de terras públicas.
Entre as principais atribuições do engenheiro da grilagem — conforme revelado em forças-tarefas federais como a Ojuara, no Amazonas, e a Rios Voadores, no Pará — está o registro de fazendas em áreas públicas em nome de laranjas. “O que a gente percebeu foi um mercado em que existe especialização em serviços. Por exemplo, o fazendeiro já tem um consultor de geoprocessamento que avisa para ele: ‘Olha, essa área aqui você pode ocupar, colocar em nome de laranja e depois conseguir a regularização'”, explicou o procurador Rafael Rocha, do Ministério Público Federal do Amazonas, que atuou na Ojuara.
Nessa consultoria de grilagem, as terras não-destinadas são o alvo número um. “Eles escolhem a área de forma muito cuidadosa, focando nas terras não-destinadas, porque não querem gastar dinheiro à toa invadindo propriedade privada ou área protegida”, contou Rocha.
Na região da BR-163, poucos profissionais têm uma clientela tão vasta quanto Bianor Emílio Dal Magro, de Novo Progresso. A busca por seu CPF no sistema do CAR no Pará resulta em nada menos do que 35 páginas consecutivas de propriedades registradas por ele.
Quando o Intercept consultou os dados oficiais, no final de maio de 2022, o engenheiro agrônomo era responsável pelo registro de 530 CARs na região, dos quais 70% estavam sobrepostos a áreas públicas não-destinadas e 20% sobre áreas protegidas – a maior parte deles, na Floresta Nacional do Jamanxim.
‘É a mesma coisa que eu invadir um apartamento e avisar o governo: ‘Olha, eu sou invasor, mas vou pagar o IPTU.’
Natural de Santa Catarina, Bianor tem 69 anos e trabalha na Guará Agroserviços, empresa administrada pelo seu filho, Júlio Cesar Dal Magro. Júlio da Guará, como é conhecido, chegou a ser preso, suspeito do assassinato do presidente regional do Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura Familiar, Aluisio Sampaio, o Alenquer, em outubro de 2018.
Fazendo-se passar por um proprietário de terras, a equipe do Intercept entrou em contato com um funcionário da Guará e perguntou quanto custaria para fazer o georreferenciamento e o CAR de uma propriedade rural de pouco mais de mil hectares, localizada entre Castelo dos Sonhos e Novo Progresso. O funcionário explicou que o custo seria de R$ 11.500 para o CAR e o georreferenciamento e de R$ 14.500 se também quiséssemos a inscrição do imóvel no Sigef, o sistema de governança fundiária do Incra.
Entre os clientes dos Dal Magro estão Delmir José Alba, o Nego Alba, que segundo as autoridades ambientais atuou junto com Jeferson Rodrigues no enorme desmatamento da Amazônia revelado na primeira reportagem desta série, e os Piovesan Cordeiro, grandes latifundiários que são campeões em autuações ambientais dentro da Floresta Nacional Jamanxim, segundo reportagem da Agência Pública.
Em outubro de 2021, Bianor e os Piovesan foram alvo da SOS Jamanxim. Deflagrada pela Polícia Federal, a operação revelou uma organização criminosa que desmatou cerca de 15 mil hectares na unidade de conservação. Ao engenheiro, cujo escritório foi alvo de busca e apreensão, cabia a tarefa de registrar as propriedades ilegais no sistema do CAR, várias delas em nome de laranjas. A Polícia Federal não quis comentar o caso, alegando que o processo corre em segredo de justiça.
Para Torres, Bianor é bem mais do que um prestador de serviços aos grileiros locais. “Ele tem uma base de dados muito boa, sabe o que está acontecendo aqui e ali. É mais do que um desenhista”.
Quebra-cabeças de CAR
Graças ao seu conhecimento de georreferenciamento, Bianor é capaz de redesenhar a realidade de acordo com o interesse de seus clientes. E são vários os interesses em jogo. Em 2016, por exemplo, o objetivo de quem o contratou era conseguir um financiamento de R$ 67,5 mil por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, o Pronaf. Supostamente, o dinheiro seria usado para a compra de 110 matrizes bovinas e três touros reprodutores para uma propriedade familiar.
Não havia, no entanto, propriedade alguma – e o dinheiro jamais seria usado para a compra de qualquer animal. Isso não impediu Bianor de montar a planta de uma fazenda e registrá-la no CAR em nome de um laranja, de maneira a viabilizar o empréstimo do Banco da Amazônia “usando de meios fraudulentos, o que lesou interesse público federal”, afirma a denúncia do Ministério Público Federal, o MPF, feita no mesmo ano. O caso ainda aguarda julgamento.
O trabalho de profissionais como Bianor também é muito útil para os criadores de gado que desmataram ilegalmente suas propriedades e que precisam achar uma forma de driblar as exigências dos frigoríficos que assinaram o TAC da Carne — acordo no qual se comprometem com o MPF a excluir de sua lista de fornecedores as fazendas com desmatamento ilegal e uso de mão de obra análoga à escrava. Uma das saídas é fracionar o CAR, ou seja, fazer dois registros para uma mesma propriedade, um do lado do outro.
“Às vezes, a mesma fazenda é dividida em dois CARs, um com desmatamento e outro sem. Na hora de vender o gado, o pecuarista diz que o animal saiu da fazenda sem desmatamento, quando na verdade é tudo uma fazenda só. Isso tem acontecido com grande frequência”, explicou Raoni Rajão, professor de gestão ambiental da Universidade Federal de Minas Gerais, a UFMG, e pesquisador no Wilson Center, em Washington.
Tal estratégia fica clara em uma das ofertas enviadas pelo corretor Gustavo à reportagem, que menciona 200 alqueires que foram alvo de uma multa ambiental e estão “com GEO separado”.
Título à vista
O fracionamento de uma mesma propriedade infringe a instrução normativa que regula o registro do CAR. Mesmo assim, a divisão do imóvel e seu registro em nome de laranjas são usados por quem tenta burlar a lei de regularização fundiária, que permite a titulação de áreas de até 2,5 mil hectares e apenas a pessoas que não sejam donas de outro imóvel. Além disso, quanto menor a propriedade, mais rápido e barato é para conseguir o título. Fazendas de até quatro módulos fiscais dispensam vistoria prévia do Incra, enquanto propriedades de até um módulo fiscal têm direito à titulação gratuita.
A estratégia fica clara em um dos anúncios enviados por Gustavo: um vídeo elaborado, com captação profissional, feito com uso de drone e embalado por uma trilha sonora que parece extraída de filme de aventura. As imagens mostram uma ampla fazenda de 5 mil hectares cortada por três córregos, com uma casa de dois andares e três quartos, dois currais, três casas para vaqueiros e uma represa com roda d’água. Entre os atributos, o vendedor destaca que “a área está aguardando titulação em dois títulos de 2.225 hectares”.
Vídeo de fazenda negociada por Gustavo. Anúncio diz que “área está aguardando titulação em dois títulos de 2.225 hectares”.
É aí que entra, mais uma vez, o serviço de especialistas como Bianor, capazes de transformar um latifúndio, que não se enquadra nas regras de titulação, em várias “pequenas propriedades”.
O conhecimento de Bianor foi aplicado algumas vezes no Projeto de Desenvolvimento Sustentável Terra Nossa, em Novo Progresso. Trata-se de um projeto de reforma agrária em que atuou desde a demarcação dos primeiros lotes, em 2006, e chegou a registrar uma área em seu nome. O assentamento, instalado em uma área desmembrada em 2003 da terra indígena Baú por pressão de fazendeiros, virou palco de inúmeros conflitos de terra. Só em 2018, foram quatro assassinatos: além de Alenquer, morreram os irmãos Romar e Ricardo Roglin. Antônio Rodrigues dos Santos, conhecido como “Bigode”, foi dado como morto e seu corpo nem sequer foi encontrado.
O caso envolvendo Bianor aconteceu na Fazenda Coringa, uma área de 6,7 mil hectares dominada por Benedito Gonçalves Neto e explorada pela empresa Chapleau Exploração Mineral. Segundo os técnicos federais que estiveram lá em 2007, o engenheiro dividiu a propriedade em diversos CARs, que foram registrados em nome de laranjas e encaminhados ao Incra para dar entrada no processo de regularização.
Mais ou menos na mesma época, o engenheiro repetiu o mesmo modus operandi em outra propriedade parcialmente sobreposta ao assentamento Terra Nossa. Dessa vez, uma área de 21.860 hectares, ocupada por Bruno Heller, foi dividida em nome de diversos parentes do real proprietário. O Intercept conseguiu identificar 10 áreas contínuas registradas em nome da família Heller na base do CAR do Pará e verificou que nove delas foram registradas por Bianor Dal Magro.
“Identificamos a relação da Guará Agrosserviços com a grilagem de terras na região”, afirmou o Incra em um diagnóstico sobre o assentamento publicado em 2018, que recomendou ao superintedente regional do Incra “o cancelamento do credenciamento para a realização de serviços topográficos da empresa Guará Agrosserviços”. Em nota, a autarquia informou que a recomendação não foi cumprida, porque apenas pessoas físicas são credenciadas para prestação de serviços de georreferenciamento. Dal Magro, no entanto, tampouco foi descredenciado.
‘É muito raro achar fazenda com documento na região.’
Além do CAR, os grileiros apresentam outros documentos igualmente nulos do ponto de vista jurídico para convencer potenciais compradores da legalidade das áreas à venda. “GEO, CAR e termo de posse”, diz um anúncio. “CAR, GEO, ITR”, descreve o outro. Assim como o CAR, o ITR, imposto territorial rural, também é autodeclaratório. “Se eu quiser pagar o ITR do Rio Tapajós, a Receita Federal aceita”, exemplificou Torres.
Na prática, o que os grileiros fazem é colocar o estado a serviço da grilagem. “É a mesma coisa que eu invadir um apartamento e avisar o governo: ‘Olha, eu sou invasor, mas vou pagar o IPTU’. Assim como o registro no CAR, o pagamento do ITR é uma forma de demonstrar a boa-fé da ocupação”, explicou Paulo Barreto, pesquisador-sênior do Imazon.
Na ponta desse processo há sempre a expectativa de ser premiado com o título de terra. “Você pega algo absolutamente ilegal, que é o roubo de terras, e em cima dessa ilegalidade você vai atrelando relações sociais legais. Daí, chega uma hora em que você tem tanta coisa legal atrelada a essa ilegalidade que todo o esquema é anistiado”, afirmou Torres.
O Intercept entrou em contato com a advogada e filha de Bianor, Rafaele Dal Magro, mas seu pai não quis se manifestar. Apesar do histórico de fraudes, Bianor não responde a nenhum processo administrativo diante dos conselhos regionais de engenharia e agronomia, os CREAs, órgãos responsáveis por fiscalizar o trabalho desses profissionais.
O CREA de Santa Catarina, no qual Bianor tem seu registro principal, informou que “havendo denúncia ética contra o profissional serão adotadas as medidas legais cabíveis”, sem detalhar quais medidas seriam essas. Já o CREA do Pará, estado de atuação de Bianor, informou que o profissional que infringir o código de ética da categoria “pode sofrer as sanções de advertência reservada, censura pública, suspensão e cancelamento de registro e multa”.
O Conselho Federal de Engenharia e Agronomia, se limitou a dizer que a conduta ética dos profissionais é regulamentada pelo código de ética da categoria.
No Incra, Bianor recebeu uma advertência por ter registrado uma fazenda no Sistema de Gestão Fundiária sobreposta à Floresta Estadual do Iriri, no Pará. Por e-mail, a autarquia informou ao Intercept que não cabe a ela apurar eventuais irregularidades em registros públicos de outros órgãos, como é o caso do CAR.
O Serviço Florestal Brasileiro, responsável pela implementação do CAR em nível federal, informou que seu sistema já não permite o cadastro de propriedades sobrepostas a áreas indígenas e que pretende verificar sobreposições com outras terras de domínio da União.
A Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará, a Semas, informou que não consegue fazer o bloqueio automático das propriedades sobrepostas a áreas públicas, pois o seu sistema de registro do CAR está vinculado ao do governo federal.
Esta reportagem faz parte do projeto Ladrões de Floresta, que investiga a grilagem em terras públicas da Amazônia e conta com o apoio da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center.
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