Fabiana Moraes

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Um país que aprendeu a valorizar a escola – só que a de tiro

Caso Aracruz revela hipocrisia de parte dos brasileiros sobre a educação: levantam-se contra livros de Paulo Freire, mas se calam sobre o de Hitler.

Um país que aprendeu a valorizar a escola – só que a de tiro

Um país que aprendeu a valorizar a escola – só que a de tiro

Ilustração: Nicholas Steinmetz para o Intercept Brasil

Durante meu ensino fundamental, lá na Escola Monsenhor Viana, zona norte recifense, o Dia do Professor era comemorado com uma festa em cada turma. Juntos, os docentes iam de sala em sala ouvir as homenagens de alunas e alunos, que traçavam uma competição velada entre classes para ver quem fazia o bolo mais incrível, a decoração mais bonita, a fala mais emocionada. Era engraçado ver o grupo, já entupido de docinhos e guaraná depois de passar por quintas, sextas e sétimas séries, chegar até a oitava e aguentar uma nova rodada de salgados, refrigerantes e discursos inocentes, melosos – e completamente maravilhosos.

Escrevo no masculino porque convencionou-se chamar o 15 de outubro “Dia do Professor”. Mas o correto – e é assim que passarei a falar – seria “Dia da Professora”: são as mulheres a vasta maioria das pessoas que se dedicam ao ensino de crianças, adolescentes e adultos neste país. Volto a falar sobre isso.

Lembrei muito dessas festas no Monsenhor Viana quando li que foi justamente na sala das professoras da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Primo Bitti que o atirador de 16 anos entrou no último dia 25, disparando contra as pessoas presentes. Ali, mirou e matou três mulheres. Maria da Penha Banhos, de 48 anos, e Cybelle Bezerra, de 45, morreram no local. Flavia Amboss, de 38, faleceria um dia depois.

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O assassino seguiria, ornado com uma suástica, até o Centro Educacional Praia de Coqueiro, uma escola particular. Lá, abriu fogo contra três estudantes e matou a adolescente Selena Zagrillo, de 12 anos, aluna da sexta série. Feriu ainda mais 13 pessoas, diversas delas, até o fechamento desta coluna, em estado grave.

Menos de uma semana depois, um adolescente de 14 anos entrou na Escola Estadual Coronel Camilo Soares, em Ubá, Minas Gerais, com um machado e um martelo na mochila. Planejava matar outra mulher, a diretora da instituição. Uma denúncia anônima, felizmente, evitou que mais uma tragédia acontecesse. Um mês antes, um rapaz de 15 anos entrou na Escola Professora Carmosina Ferreira Gomes, em Sobral, no Ceará, e atirou em três colegas. Matou um, o estudante Júlio César de Souza Alves, de 15 anos.

Um país que aprendeu a valorizar a escola – só que a de tiro

Pessoas reunidas na sala de professores da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Primo Bitti.

Foto: Reprodução

Estes ataques deveriam nos fazer estancar imediatamente o passo. Deveriam nos fazer olhar para a gente, para fora, para o que nos importa e para nossas prioridades como sociedade. Quando nos tornamos um país no qual são escolas e universidades, professoras, professores e estudantes os grandes alvos do ódio extremo e ao mesmo tempo da displicência coletiva, deveríamos, imediatamente, nos levantar.

De cara, há uma óbvia correlação entre morte, educação e gênero. Assim como há uma óbvia correlação entre os extremismos e violência que aumentaram no Brasil e posições de classe, raça, poder (e, novamente, gênero); entre as conquistas por mais espaços com pessoas negras e a multiplicação de células nazistas; entre a maior democratização do debate sobre feminismo e o crescimento do número de mortes de mulheres, inclusive dentro da própria casa durante a pandemia.

Sabemos que todos os movimentos contra uma sociedade menos desigual, misógina, transfóbica, racista – e, portanto, menos babaca – bateram em altíssimos muros, geralmente erguidos com boas doses de hipocrisia. Só que nos últimos anos, graças ao atual mandatário-chefe do Executivo federal, a hipocrisia anda fartamente armada – e mira parte de sua fúria nas escolas.

O atentado em Aracruz é um termômetro de nosso cinismo quando bradamos por mais educação.

Somente os agentes das forças de segurança (polícias, bombeiros, Abin, Gabinete de Segurança Institucional, Forças Armadas, etc.) possuem 825 mil armas de uso pessoal, sem falar no equipamento usado no âmbito do trabalho. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e foram divulgados no último episódio do Foro de Teresina. Era o caso do tenente da Polícia Militar Fábio Castiglione, pai do assassino que atacou as escolas de Aracruz. Eram do PM a pistola .40, usada para cometer os crimes, além de um revólver calibre 38 também carregado pelo rapaz.

Os últimos anos, aliás, também mostraram o quanto amamos e valorizamos, sim, as escolas – mas as de tiro. Antes do governo Bolsonaro, eram mil delas em solo nacional. Agora, somamos mais de 2 mil. Saímos de 237 mil caçadores, colecionadores e atiradores, os chamados CACs, para 687 mil. Segundo o Instituto Sou da Paz, são mais de 1 milhão de armas circulando no país, contra 330 mil em 2018. Foi com uma delas, registrada em nome de um CAC, que Julio César foi assassinado em Sobral.

Tudo isso adiciona uma terrível camada de sentido e ação terrorista sobre uma população que finge se importar com educação, enquanto quase nunca se mobiliza efetivamente contra enormes cortes de verbas na merenda e infraestrutura escolar, por exemplo. Um exército de gente que fala sobre a importância da educação quando está pouco se lixando para os salários das redes municipais e estaduais de ensino. Mais: uma população que apoiou massivamente que se filmassem professoras e professores em sala de aula para denunciá-los, como se fossem criminosos em potencial, à espreita de atacar famílias. Tudo isso, sabemos, quase sempre esperando que as escolas resolvam sozinhas questões de ordem social e familiar, como a falta de acesso à boa alimentação, a insegurança, a violência doméstica, o racismo, etc.

O que houve em Aracruz é, entre a série de 12 ataques a escolas nos últimos anos, um termômetro que mede nosso cinismo quando bradamos por mais educação e valorização da família. Há pouquíssimo tempo, nos levantamos “contra a corrupção”, enquanto menosprezamos completamente a eloquente notícia de que 75% dos royalties do petróleo iriam, especificamente, para os gastos com escolas e estudantes. Gostaria, aliás, de mostrar por meio de um simples print o quanto costumamos a ser mesquinhos e levianos sobre o assunto:

Um país que aprendeu a valorizar a escola – só que a de tiro

Esta é uma manchetinha de O Globo em setembro de 2013. Em agosto daquele ano, uma lei sancionada pela então presidente Dilma destinou 50% do Fundo Social do Pré-Sal para a educação. Essas medidas foram praticamente ignoradas por uma imprensa muito mais afeita a registrar este ou aquele melindre do mercado do que a realizar coberturas sobre políticas públicas de impacto para a maioria da população. Quando mostradas, vinham com um impulsionador da antipolítica, como o tal “Presidente não mencionou denúncias de espionagem”.

Em junho deste ano, o atual presidente encaminhou ao Congresso um projeto de lei desobrigando a destinação dos recursos do pré-sal para a saúde e a educação. O pessoal de verde e amarelo que já bradou por melhorias no ensino, mas tem mesmo tesão é por golpe militar, ficou quietinho. O pessoal de verde e amarelo, que se arrepia de horror ao ouvir o nome de Paulo Freire, também não fez barulho quando descobriu que um dos livros recomendados pelo PM ao filho assassino em Aracruz foi escrito por Hitler.

Também não houve alarde social e midiático quando o ensino público profissional foi desmontado no governo Temer. Esse fator é mostrado em uma análise feita em 2017 de uma unidade de ensino profissional em Acaraú, no Ceará, na qual o ensino técnico estava integrado ao ensino médio. Na pesquisa, um dos estudantes entrevistados comemora que, com a formação técnica, já podia trabalhar como profissional autônomo e, antes mesmo da conclusão do ensino médio, havia entrado na universidade pública.

O governo Temer, no entanto, findou o modelo com a Lei 13.415/2017. Com ela, o aluno ou a aluna tem que optar por uma área específica de formação, e a educação profissional é uma delas. Desvinculou-se educação e trabalho, ao contrário do que fazia a Lei nº 11.741/2008, de integração entre o ensino médio e técnico, sancionada no governo Lula.

É preciso manter as crianças malnutridas e mal ensinadas para garantir mão de obra a quem acessa ensino e alimentação de qualidade.

Aqui, eu volto para a questão do gênero: essa cobertura mal ajambrada sobre políticas públicas no ensino, que tanto reflete quanto constrói o real interesse nacional sobre o tema, tem impacto negativo principalmente entre as mulheres, que somam mais de 80% da população docente no Brasil. De acordo com o Censo Escolar de 2020, apesar de ocuparem essa enormidade de espaço – fenômeno conhecido como a feminização do ensino –, elas recebem 12% a menos que os homens. Isso se explica pelo fato de as mulheres professoras povoarem principalmente os níveis escolares mais baixos e as regiões com menor salário.

Na educação infantil, 96% são professoras. No ensino médio, esse número cai para 58%. No ensino superior, elas, que são maioria populacional no país, ocupam 43% dos postos. Quando, no último, relacionamos essa presença à raça, o número despenca. Um artigo com base em dados do Inep de 2016 mostrou que a feliz ocupação de pessoas negras nas federais não se reflete na docência. Aliás, tanto nas universidades públicas quanto privadas, dos 383.683 docentes, apenas 1,34% declararam-se negras ou negros. Na pós-graduação, o censo mostrou que as mulheres negras não chegam a 3% do corpo docente. Eu faço parte desse time de poucas e hoje, dentro de uma instituição de ensino superior, percebo que ocupamos um espaço de dualidade única, no qual somos encaradas tanto com respeito quanto como ameaça.

Em fevereiro deste ano, de olho na reeleição e em disputa com diversos prefeitos e governadores que seguiram os protocolos contra o coronavírus, o presidente assinou a portaria do novo Piso Salarial Profissional Nacional para os Profissionais do Magistério Público da Educação Básica. Fixou o valor em R$ 3.845,63 para 2022. Em diversas cidades e estados, os profissionais tentam transformar a quantia em realidade.

A ignorância, o descaso e a violência destinados aos espaços de ensino no Brasil, principalmente os públicos, revelam um bocado de nosso ethos classista e meritocrático. O ódio à pobreza e o racismo são pedras fundamentais dos discursos anticorrupção – balizados pela imprensa – que na verdade estão pouco se lixando para o que se passa nas redes municipais e estaduais de ensino e que adoram perseguir as universidades.

Uma notícia sobre crianças dividindo um único ovo na merenda escolar é só mais uma notícia sobre crianças pobres passando perrengue na escola. É preciso mantê-las malnutridas e mal ensinadas, e assim garantiremos mão de obra farta e barata para atender aos futuros pedidos de quem acessa o ensino e a alimentação de qualidade. Um especial do coletivo de jornalismo O Joio e o Trigo, aliás, mostra bem as negociações, avanços e retrocessos envolvidos nas merendas brasileiras.

É um cenário que explica bem por que, em frente aos quartéis, milhares de “patriotas” estão gritando por “socorro” e mostram-se assustados com o “comunismo”, enquanto ignoram as privações recorrentes no ensino e os ataques a tiros em nossas escolas. O assassinato de mulheres, jovens e crianças. Nunca foi pelo Brasil com educação de qualidade, sejamos sinceras. Foi, quase sempre, sobre o sufoco de ter que lavar os próprios pratos e não comprar o carro automático do ano, uma vez que escolas e universidades, estas sim, ameaçam desmontar a estrutura de privilégios que as e os patriotas, nas ruas, nas empresas e nas redações, aprenderam a amar.

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