Filipe tem 29 anos. Era o “bebê que todo mundo queria” em um orfanato de Lisboa, em Portugal, onde foi adotado aos 3 anos, e passou a infância tranquila na Inglaterra. Foi na adolescência, ele diz, que começaram os problemas com a família adotiva. Filipe se recusava a seguir os passos dos pais, religiosos. Vivendo entre Belize, Brasil e Estados Unidos, afirma ter sido expulso de casa três vezes, chegando a morar na rua e dormir escondido em garagens em Dallas, no Texas. Estudou até o ensino médio e aprendeu a trabalhar como editor de vídeos.
Entre os períodos de acolhimento e expulsão, Filipe teve empregos em emissoras de TV, sempre com salários modestos. No Brasil, em 2016, conta que ganhava R$ 2 mil ao mês. Já nos EUA, recebia 2 mil dólares por mês, até ser demitido recentemente. Com a mulher e a filha de 8 anos, Filipe hoje vive em Houston, onde trabalha como motorista. “Dá para ver que meus pais não estão nem aí [para mim]. Não vou forçar os meus pais a gostarem de quem eles não gostam. Eu deixo quieto”, lamentou o jovem, com um português ainda um tanto claudicante, misturando palavras do espanhol e inglês.
O relato de Filipe seria uma história comum, não fosse ele parente de quem é. Seu nome completo: Filipe Bezerra Cardoso, neto do poderoso bispo Edir Macedo Bezerra. Fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, hoje o avô é um bilionário que ainda comanda no Brasil uma rede de televisão, um banco e um partido político, além de ter sob o seu domínio templos espalhados por mais de 95 países e várias empresas, como corretora, seguradora, locadora de automóveis, serviços de segurança e vigilância, hospital e plano de saúde.
Filipe é filho de Cristiane, a primogênita de Edir Macedo, e do bispo Renato Cardoso, hoje o principal herdeiro do império da Universal e o segundo nome na hierarquia da instituição religiosa. Cardoso e Cristiane são autores de best-sellers, como “Casamento Blindado”, e protagonizam programas religiosos na TV Record. Apresentam na emissora de Macedo o programa “The Love School” [A Escola do Amor, em tradução livre], no qual dão conselhos sobre relacionamentos.
“Eles pregam tanto sobre família, união, esposa, filho, cuidar, orar, estar sempre presente. Mas e o próprio filho, cara? O próprio filho, eles ignoram. Agem assim: ‘Vai embora, você está sendo demitido. Não há nada que a gente possa fazer’”, reclamou Filipe.
O relacionamento do rapaz com os pais adotivos começou “a esfriar”, como afirmou, em razão de ele não desejar ser pastor e seguir os passos dos pais adotivos. Ele queria ter uma vida comum, sair, passear e se relacionar com amigos fora da igreja. “Meus pais sempre tiveram essa ideia. Mamãe já disse isso em reunião: ‘Eu quero que o meu filho seja pastor’. E tinha tudo planejado. Ela disse ter tido um sonho de que, aos 12 anos, eu seria obreiro. Com 17, seria pastor. E ia casar novo com uma filha de pastor. Mas o meu chamado não foi para ser pastor”, defende. “Ser pastor não é para todo o mundo. Eu não quis ser. Porque eu não ia ter a liberdade que tenho hoje”.
Filipe foi uma das crianças adotadas pela família de Macedo e pela cúpula da Universal nos anos 1990 em um esquema que chegou a ser denunciado ao Ministério Público de Portugal por, supostamente, não cumprir os devidos trâmites legais. As denúncias foram arquivadas, mas os dramas familiares vividos por alguns desses filhos persistem.
Ao Intercept, o neto de Edir Macedo contou sua história pela primeira vez, em um relato que mostra como se confundem as relações da família com a Igreja, presente e influente em vários países do mundo. “Acho que não tem nada a ver o fato de eu ter sido adotado. Mudaram o comportamento comigo porque eu não quis realizar os sonhos deles. Quando viram que eu não ia ser o que desejavam, tudo mudou. ‘Então, você faz o seu caminho’. Enquanto eu fazia o que queriam, foram bonzinhos. Quando eu quis ter minha vida, disseram: ‘Pode ir embora’”.
Bebê Cerelac
No final de 1996, uma fotografia de Filipe chegou às mãos de Cristiane Cardoso. A filha de Edir Macedo não conseguia engravidar. No orfanato em Portugal onde vivia, controlado pelo estado mas gerido em parceria com a Universal, Filipe era considerado por todos como um “bebê Cerelac”. É o mesmo que “bebê Johnson” no Brasil – Cerelac é uma marca de cereal instantâneo produzida pela Nestlé. “Era um bebê que toda a gente queria. Era lindo, de olho azul, loirinho, muito mimoso, muito dengoso”, contou à emissora portuguesa TVI uma jovem chamada Rita, na época uma criança que vivia no orfanato. Cristiane decidiu adotar o menino.
Filipe tinha um irmão, Pedro Alexandre, de 6 anos. A mãe dos meninos, Clara, era vítima de violência doméstica. O marido, usuário de drogas, mantinha-a presa, amarrada com cordas, e a obrigava a se drogar, segundo reportagens veiculadas na TV portuguesa. Clara enfim conseguiu fugir de casa. Enquanto passava por um tratamento de desintoxicação, deixou os filhos com sua mãe, que os entregou ao abrigo sem seu consentimento.
Três meses depois de conhecer Filipe, a filha de Macedo levou o menino para Londres. Os irmãos foram separados. Pedro acabou adotado pela diretora do lar, Jaqueline Duran, e seu marido, o também bispo da Universal Sidney Marques.
À época, Macedo recomendava a prática da vasectomia, segundo relatos e denúncias de dezenas de ex-pastores no Brasil e Angola, e também uma política de adoção de crianças entre os bispos e pastores. Essas práticas teriam sido disseminadas, de acordo com denúncias da imprensa, para impedir que pastores se fixassem em uma cidade por causa dos filhos e por gerar menos despesas para a igreja com a manutenção dos religiosos.
A outra filha de Edir Macedo, Viviane, casada com o bispo Júlio Freitas, também optou pela adoção no mesmo orfanato em Portugal, e ela e a irmã foram seguidas por outros religiosos da Universal. Viviane adotou os irmãos Vera, de 3 anos, e Luís, de 2. Um outro irmão dos dois, Fábio, então com 9 meses, foi adotado pelo bispo Romualdo Panceiro. Essas três crianças, no entanto, ficaram oficialmente sob a guarda de Maria Alice Andrade Katz, uma americana que vivia em Portugal e era secretária do bispo Edir Macedo, segundo Filipe.
A infância e parte da adolescência Filipe viveu em Londres. Em 2007, foi para Houston, nos Estados Unidos, com o pai e a mãe. Em 2011, veio para o Brasil. Havia passado a morar em São Paulo com o então poderoso bispo Romualdo Panceiro – à época o segundo nome no comando da Universal, e que depois romperia com Edir Macedo –, na catedral João Dias, em Santo Amaro, zona sul paulistana.
Nesse período, Filipe trabalhava como técnico de áudio na rádio São Paulo, de propriedade da Universal. Depois de 11 meses no Brasil, no entanto, relata ter sido expulso de casa pela primeira vez. Seu pai, conta, havia determinado que fosse enviado aos EUA para que se afastasse de suas amizades de fora da igreja.
O então adolescente passou a morar com um pastor em Dallas, no Texas. Não deu certo. “Tinha muita restrição. Quando cheguei lá, ele falou que eu tinha de trabalhar. Achei um emprego em uma loja de roupas famosa. Saí lá da casa porque o pastor sempre ficava em cima. Pelo fato de meu pai ser quem é, mesmo se eu não fizesse nada de errado, sempre estavam em cima de mim. E eu não gosto disso. Já falei para vários pastores que sou um membro qualquer. Esqueçam que eu sou filho do Renato. Sou o Filipe, ser humano. Me tratem como qualquer outro”, ele contou ao Intercept.
Seu pai, relata, orientou o pastor para mandá-lo embora. Filipe conta que passou a morar na rua. Durante sete dias, dormiu escondido nas garagens de residências, costumeiramente abertas nos Estados Unidos. “Eu tinha emprego, só que não tinha dinheiro para alugar um apartamento, nem pagar hotel”, contou. “Se uma pessoa me achasse ali, ela chamava a polícia. Então, eu ficava alerta. Abria o olho, fechava o olho e aí, quando era de manhã, eu ia embora e usava o banheiro do local onde eu trabalhava. Nesse tempo todo, meu pai nunca me ligou para saber como eu estava”. Viveu assim, na rua, até arranjar uma namorada e se alojar na casa dela.
Depois, Filipe acabou fazendo as pazes com a família adotiva. No ano seguinte, foi trabalhar em Belize, na América Central, em uma TV ligada à igreja. No final de 2013, aos 20 anos, conheceu na internet a sua mulher Julianni, que tinha apenas 14 anos na época. Voltou para o Brasil e foi morar com a família dela em Barra Mansa, no interior do Rio, e mais tarde em Campos de Goytacazes, no mesmo estado. Em Campos, conseguiu um emprego na Record local.
‘Quando acordei, meu pai falou: ‘Pega suas coisas e vai embora’’.
Foi convencido a voltar a viver com a família adotiva em São Paulo e passou a morar no Templo de Salomão, a imponente sede da Universal. Mas diz que acabou mandado para a rua novamente por ter saído à noite com amigos sem avisar o pai. “Era muito difícil eu poder sair sem autorização do pai e da mãe. E eu queria ir ao shopping, ao cinema, ir almoçar. E uma noite saí com filhos de outros bispos e pastores. Não deu 20 minutos que havíamos estacionado o carro, e chegou a segurança do Templo de Salomão e recolheu os carros e a gente, e nos levou de volta. Não falaram nada, não teve discussão. Parecia que a gente era prisioneiro foragido”, relatou Filipe.
“Aí, eu fui dormir. Quando acordei, meu pai falou: ‘Pega suas coisas e vai embora’. Podiam ter me dado uma semana para eu me programar e ver para onde ia. Podiam ter me dado duas semanas para arrumar um emprego, mas não. Eu nunca fui de debater, de chorar. Eu falei: ‘Está bom, eu vou, não tem problema’”, afirmou Filipe. “Eles sabem que eu tenho filho, tenho esposa. Mas me mandaram embora”.
Segundo ele, seus pais adotivos também nunca aceitaram o casamento com Julianni e a filha que tiveram. “É a única filha que eu tenho. Eu quero ficar perto dela. Eles diziam que eu ia achar outra [mulher]. Colocavam outras meninas na minha frente para eu namorar. Mas eu nunca quis”.
Julianni revelou ao Intercept ainda que, quando estava grávida, Renato teria sugerido a Filipe para “orar para Deus levar esse bebê”. Ela enviou ao Intercept uma troca de mensagens na qual o marido fez essa revelação, num momento em que ele estava com os pais adotivos em São Paulo, e ela com os seus familiares no interior do Rio de Janeiro.
“Quando eu cheguei aqui meu pai falava cada coisa pra eu mudar a ideia sobre você. Ele até falou pra eu orar pra Deus levar esse bebê. Mas sabendo que meu bebê tá aí dentro, não posso fazer isso. Eu esperei minha vida toda pra ter um nenê. E agora que tenho com uma pessoa que eu amo, jamais vou fazer essa oração. Jamais pediria a Jesus pra matar meu próprio filho”, escreveu Filipe à época.
Como muitos bispos e pastores da Igreja Universal, Filipe fez vasectomia depois de já ter tido a filha Isabelle. “Minha mãe fez eu fazer vasectomia. Ela não queria ter neto, né? Eu falei ‘está bem’, mas hoje me arrependo”. Hoje, há centenas de ações na justiça de ex-pastores contra a Universal por conta da imposição da vasectomia, tanto no Brasil como em países da África, como Angola e Moçambique. O bispo brasileiro da Universal Honorilton Gonçalves chegou a ser condenado em Angola a três anos de prisão por impor a cirurgia a pastores, mas teve a pena suspensa.
O segredo dos deuses
Em 2017, a emissora de TV portuguesa TVI exibiu a série de reportagens “O Segredo dos Deuses”, que apontava uma suposta rede ilegal de adoções mantida pela Igreja Universal. Segundo as denúncias, as filhas de Macedo e outros bispos teriam adotado crianças sem seguir os procedimentos corretos determinados pela justiça.
Mães em dificuldades deixavam seus filhos sob cuidados do abrigo com a intenção de reavê-los quando superassem problemas financeiros e familiares. As mães eram descritas quase sempre como viciadas em drogas, soropositivas e vítimas de violências. Segundo as reportagens, as crianças eram adotadas sem o consentimento dos parentes e até retiradas à força das famílias. A Universal nega as acusações.
O Ministério Público português, ao final das investigações, concluiu que eventuais crimes estavam prescritos e não apontou possíveis responsáveis por atos ilegais. Advogados dos pais biológicos das crianças, autores das denúncias, contestaram a decisão, mas o caso foi arquivado em maio de 2019.
Filipe Cardoso era uma dessas crianças. Na época das reportagens, ele mesmo, já adulto, entrou com uma ação contra a jornalista Alexandra Borges, responsável pela série da TV portuguesa, afirmando que a profissional teria “tentado suborná-lo” para conseguir seu depoimento. Segundo ele, ela teria lhe prometido um emprego. O Ministério Público português arquivou a ação, afirmando não haver comprovação da denúncia.
“Eu fiquei sabendo do caso das adoções porque os advogados da igreja entraram em contato com a gente, querendo representar. Tinha que assinar. Sobre a ação contra a jornalista, eu comentei com os meus pais o que aconteceu e eles que decidiram. Só fiquei sabendo de tudo depois. Se as denúncias sobre as adoções eram verdade ou não, não sei, pois eu tinha 3 anos e não lembro de nada”, explicou Filipe.
Quando a TVI passou a exibir a série de reportagens, Filipe estava no Brasil. E me disse ter sido orientado pelo pai, Renato Cardoso, a retornar imediatamente aos Estados Unidos. A ideia era evitar que fosse encontrado por jornalistas, para não ter de falar sobre as adoções por religiosos da igreja em Portugal.
“Quando meus pais ligam é para saber alguma coisa de mim, que ouviram dizer. É sempre um problema para eles e aí ligam. E eu não estou sabendo de nada”, desabafou o jovem. “Sempre que meus pais acharam que ia dar um problema para eles, deram um jeito rápido de me despedir, de mandar embora”.
Após as denúncias da emissora portuguesa, em 2018, Filipe conheceu seus pais biológicos em Portugal. Pedro, o pai, morreu no dia 24 de outubro deste ano, dois dias antes de Filipe ser demitido da ULFN, a TV da Universal nos Estados Unidos. O pai biológico tinha uma loja em Lisboa, que quebrou na pandemia. Recentemente, fazia entregas. A mãe é empregada doméstica.
“Fui a Portugal e os conheci, e também as minhas irmãs, primas e tios. Eu conheci todos via TVI, basicamente. Meus pais biológicos não tocaram no assunto adoção. Eles tinham uma vida muito difícil. Moravam fora de casa. Eram usuários de drogas”, disse o rapaz. “Eles tinham muito mais preocupação comigo do que meus pais adotivos. Tenho contato com minha mãe biológica. Sempre tive o carinho deles. Da parte dos pais adotivos, já é muito difícil”.
Tragédias e adoção à brasileira
A decisão de adotar crianças no orfanato em Portugal também resultou em tragédias e problemas em outras famílias de religiosos. O menino Fábio, adotado ainda bebê pelo bispo Romualdo Panceiro, teve uma adolescência conturbada e fugiu de casa. Em 2015, foi encontrado morto em um hotel em Nova York. A mãe adotiva viajou para reconhecer o corpo e disse que ele morreu de overdose. A Universal e a família Panceiro negaram. Afirmaram que o jovem morreu em consequência de um ataque cardíaco.
Filipe conheceu Fábio, em um contato rápido, mas intenso, em 2015.
“Em 2015 ele foi visitar o Brasil com o bispo Romualdo, que tomava conta da igreja nos Estados Unidos. Eu não o conhecia antes disso. Só tinha ouvido falar do nome dele. Mas nos conhecemos e nos damos super bem. Eu o levei para jantar, o levei ao cinema. Fomos jogar uma partida de paintball (esporte de combate). Era o cara mais honesto e mais legal que se pode conhecer”, contou.
Na época, Filipe morava no templo, e Fábio em um apartamento da igreja, em frente à sede no bairro do Brás. “Ele era igual a mim, não queria ser pastor. Todo o dia depois do meu trabalho a gente saía. Eu ia ao apartamento dele, e jogávamos pingue-pongue. Ficávamos horas lá conversando. No dia em que ele foi embora, trocamos número de telefone, nos abraçamos e ele foi para os Estados Unidos”.
Fábio também foi mandado embora de casa. No dia em que morreu, havia enviado uma mensagem ao neto de Edir Macedo. “Fiquei sabendo por um bispo que meu avô não gostou do fato de que Fábio tinha um histórico com drogas e mandou o bispo Romualdo colocá-lo fora de casa. Isso deixou o bispo e sua esposa muito depressivos, porque eles amavam o filho”, contou Filipe. “O que aconteceu? O Fábio não tinha para onde ir, não tinha o que fazer. Infelizmente voltou para a vida de droga. No dia em que morreu me mandou uma mensagem. Fui a última pessoa a falar com ele. Ele enviou um áudio, que infelizmente não tenho mais. Ele falou: ‘Filipe, agradeço sua amizade, quando vier a Los Angeles me avise. Te amo e tal’. No dia seguinte acordei, e minha mãe falou que ele morreu de overdose”, contou.
‘Foi o senhor que mandou a gente adotar. Nós não queríamos, mas o senhor falou que deveríamos adotar’.
Em julho de 2020, o bispo Romualdo Panceiro já havia relatado a mesma história em um vídeo divulgado nas redes sociais ao responder a um ataque de Edir Macedo que chamou a nova igreja aberta pelo ex-aliado, Igreja das Nações do Reino de Deus, de “botequim”. Panceiro disse que Macedo o obrigou a mandar Fábio embora, e que o rapaz morreu no mesmo dia em que implorou perdão ao fundador da Universal, sem ser atendido.
“O senhor lembra o dia em que meu filho morreu? O senhor deu ordem para tirar ele de casa, mesmo ele ligando para o senhor, e eu estava do lado, implorando perdão. O senhor disse: ‘eu não te perdoo’. O senhor lembra? Naquela mesma noite, ele morreu. O senhor nunca ligou pra falar: ‘Romualdo, o senhor me desculpe. Eu errei’”, relatou o ex-aliado de Macedo.
Panceiro culpou Macedo por todos os problemas ocorridos nos casos de adoção em Portugal. “Foi o senhor que mandou a gente adotar. Nós não queríamos, mas o senhor falou que deveríamos adotar. E o senhor sabe que todos os problemas que aconteceram foram por conta da clara direção do senhor. Eu nunca reclamei para ninguém sobre isso. Mas todos os bispos sabem”, afirmou o ex-aliado na gravação.
De acordo com uma denúncia publicada em fevereiro de 2018 no Blog do Pannunzio, do jornalista Fábio Pannunzio, o garoto Fábio havia saído de Portugal para viver com Panceiro – inicialmente nos Estados Unidos –, mas fora registrado, em 28 de maio de 1998, em um cartório em Biritiba-Mirim, na Grande São Paulo, como se fosse filho natural do bispo e de sua mulher, com o nome oficial de Felipe Barbosa Panceiro. Esse artifício é costumeiramente chamado de “adoção à brasileira”.
O próprio Edir Macedo também teria recorrido ao que se convencionou chamar de “adoção à brasileira”, segundo o mesmo Blog do Pannunzio, ao registrar como seu filho natural um bebê que recebeu da mãe biológica, em 1995, enquanto celebrava um culto no templo da Universal no bairro da Abolição, no Rio. Macedo descreveu a entrega desse bebê a ele em sua própria biografia oficial.
O Blog de Pannunzio e a TVI portuguesa exibiram uma certidão de nascimento na qual constava que, em 4 de dezembro de 1995, Edir Macedo teria comparecido ao 11ºo. Cartório de Registro Civil do Rio de Janeiro, no bairro de Pilares, e declarado o nascimento de Moysés Rangel Bezerra, bebê do sexo masculino, como filho dele e de sua mulher, Ester Rangel Bezerra, nascido no dia 14 de novembro de 1985, no Hospital Padre Olivério Kraemer, no Rio de Janeiro.
Outro ex-bispo da Universal, Alfredo Paulo Filho, que foi responsável pela Universal em Portugal entre 2002 e 2009, viveu uma tragédia na pacata aldeia de Paio Pires, no Seixal, nos arredores de Lisboa, em novembro de 2020. O seu filho Lucas Paulo, adotado quando tinha 6 anos no Brasil, matou a mãe, Teresa Paulo, com 20 facadas nas costas, pescoço, tórax e braços. Lucas também havia sido pastor da Universal. Por acaso, ele apareceu nas reportagens da TVI, em 2017, falando sobre as adoções dos jovens Filipe, Luís, Vera e Fábio.
Na ocasião do assassinato, vazou um um áudio de Edir Macedo em uma reunião com bispos afirmando que o diabo “tem o direito de tirar a vida” de “quem vive no adultério e no pecado”. Macedo não citou nomes, mas tudo indicava que ele se referia à tragédia familiar vivida por Alfredo Paulo, um ex-aliado que se transformou em um de seus maiores inimigos. “Hoje, ele está colhendo frutos. Eu não estou condenando ninguém. Ele está se condenando. O que você planta hoje, vai colher amanhã”, afirmou Macedo na reunião.
Filipe só soube ou teve contato com os primos Luís e Vera e com Fábio, adotado por Panceiro, quando morou em São Paulo em 2015. Luís se tornou pastor e hoje vive no México. “Nunca encaixou o meu relacionamento com ele, como foi com o Fábio. O Luís era mais crente, está casado e na igreja”, disse Filipe. Vera voltou para Portugal depois de conhecer sua família biológica e “nem gosta de falar com ninguém da igreja, é muito reservada, não quis mais saber de nada e tem contato zero com os pais adotivos”, segundo Filipe.
A demissão
Hoje, Filipe não tem contato com o avô. “Ele nunca me ligou. E eu nunca liguei para ele. Meus pais nunca me deram o contato. Mas meu avô é um cara carinhoso. Foi muito carinhoso comigo quando convivi com ele. Minha avó [Ester Bezerra, esposa de Macedo] também era ultracarinhosa, e eu contava com ela para tudo que eu precisasse. O meu avô, eu o via sempre no escritório dele. A gente sentava lá, conversava, e ele me dava orientação”, recordou.
“Acho que se eu pedisse uma ajuda para o meu avô, ele daria. Mas meus pais não querem”, afirmou. “Meu avô trouxe um presente para mim do Brasil quando eu já vivia no exterior. Ele dizia que eu era o neto preferido dele”.
Ao trabalhar na igreja e na americana ULFN, na Califórnia, em 2020, durante a pandemia de covid-19, Filipe revelou ter tido problemas com bispos e pastores, porque teria denunciado coisas que julgava erradas, como religiosos que traíam as esposas ou que não tinham qualquer preparo para assumir determinadas funções na TV.
“Nunca deram cargo para alguém que tivesse formação. Sempre colocaram bispos e pastores sem preparo para assumir funções. E olhe que na Califórnia, onde fica Hollywood, o que não falta são faculdades com cursos de cinema, vídeo, edição. É a terra da produção. Tem muitos jovens que precisam de oportunidade para começar, mas eles preferem dar funções para pastor ou para imigrantes, porque é mais barato pagá-los”, acusa Filipe. Segundo ele, o presidente da emissora era contra a prática, mas eram os bispos e pastores que mandavam. “Ele conhece a lei, mas a igreja fazia isso para economizar. E tinham os bispos e pastores que acabavam se envolvendo com profissionais mulheres contratadas para trabalhar na TV. Isso sempre aconteceu”, revelou.
Em razão das críticas, segundo ele, acabou acusado por um pastor de vender drogas quando trabalhou na TV. “Eu disse para o bispo: ‘Será que eu seria doido de vender droga aqui dentro?’. Mas ninguém acreditava em mim. Acreditavam mais no pastor”. Filipe, assim, seria mais uma vez removido de posto, desta vez da Califórnia, retornando para o Texas, onde passou a maior parte de sua juventude.
Nos últimos meses, já em Houston, o neto de Edir Macedo reclamou de cortes feitos em seu salário. Não concordava com descontos de ausência ao trabalho por motivos que considera justificáveis, como, por exemplo, levar ao médico sua mulher, que não fala inglês. “Ele trabalhava igual a um escravo e não recebia pelos dias que ia. Já estava começando a faltar coisas em casa, a acumular contas”, afirmou Julianni.
A esposa enviou mensagens a Cristiane Cardoso reclamando. Disse ter esperado uns 15 dias, mas a mãe de Filipe “não resolveu”. Julianni decidiu reclamar por meio de postagens nas redes sociais. “Resolvi ir para a internet e soltar tudo de uma vez. Falei que não gostavam da minha filha. E falei para as pessoas irem no Instagram e cobrarem o Renato. Ele ligou ameaçando o Filipe. Demorou para pagar o que devia e depois o demitiu”, afirmou a companheira de Filipe. “Eles nunca pararam de humilhar a gente, de fazer maldades”, acusou Julianni.
O Intercept enviou perguntas à Universal sobre os fatos relatados por Filipe Bezerra Cardoso, mas a instituição não mandou respostas até o fechamento desta reportagem.
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