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GREVE DE ÔNIBUS: Cidades brasileiras correm risco de ficar sem transporte

Constantemente tratada de forma secundária, a mobilidade urbana pode voltar ao centro do debate da única forma que consegue no Brasil: pelo caos nas ruas.

Legenda.

GREVE DE ÔNIBUS: Cidades brasileiras correm risco de ficar sem transporte

Longe de ser um alívio, a falência dos sistemas de transporte coletivo urbano vai acabar por endividar ainda mais as famílias.

Foto: Rubens Cavallari/Folhapress

O Brasil vive uma longa crise nos transportes coletivos. Parte significativa dos usuários – e, consequentemente, das receitas – foi retirada em 2020 dos ônibus, metrôs, barcas etc. como parte das medidas de restrição da circulação necessárias para conter a pandemia. Sem subsídios na maior parte dos casos, empresas que prestavam o serviço aos mais diversos municípios foram autorizadas a cortar linhas, a demitir rodoviários, ou mesmo a retirar ônibus de circulação, a exemplo do que se passou em Teresina.

Só que a atual instabilidade, longe de ter sido resolvida com o afrouxamento das medidas sanitárias, continua piorando, exigindo que o governo federal, pela primeira vez na história, aportasse recursos nas empresas de transporte coletivo. Foram R$ 2,5 bilhões para ser mais exato, enxertados no que ficou conhecido como “PEC Kamikaze”, que tinha por objetivo principal garantir a reeleição de Bolsonaro. Esse auxílio, sem contrapartidas, complementou inéditos subsídios municipais, tirando da tarifa a exclusividade de fonte de receitas das empresas do setor.

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Por vias tortas, sem regramento ou mudanças substanciais na forma como o transporte coletivo urbano é tratado no Brasil, algo começou a mudar, mas sem a compreensão de que o modelo adotado no país está fortemente ancorado em uma sociedade que não mais existe.

Primeiro que o crescimento da informalidade tira pouco a pouco o papel outrora fundamental do vale-transporte, exclusivo para trabalhadores regidos pela CLT, na sustentabilidade dos sistemas. Mas o aumento da pobreza joga um peso ainda maior, porque eleva os índices de imobilidade urbana. Soma-se a isso a diminuição da necessidade de deslocamentos, provocada pela crescente adoção do home office; a captura da clientela dos ônibus pelos aplicativos; e o crescimento da comercialização de motocicletas. Em poucas palavras, os ônibus já não têm mais usuários cativos, perdendo o monopólio que exercia para boa parte das classes populares.

Entretanto, longe de ser um alívio, a falência dos sistemas de transporte coletivo urbano, por incentivar o uso dos automóveis particulares, acaba por endividar ainda mais as famílias. Piora também as condições de tráfego nas cidades, provoca perdas significativas de produtividade de toda a economia – o trabalhador passa mais tempo em congestionamentos e há aumento nos níveis de stress, degrada a saúde da população – devido ao aumento dos sinistros de trânsito (ainda chamados de “acidentes”) e da poluição –, agrava a crise climática, aumenta a segregação socioespacial (e racial), etc., ou seja, um desastre completo.

Esquecida até pela Constituição

Há quase dois séculos, greves e revoltas são atravessadas por questões relacionadas à mobilidade urbana no Brasil. O historiador João José Reis relatou no seu livro “Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia” a paralisação de Salvador comandada por negros (escravizados e libertos, brasileiros e africanos) que, entre outras atividades, transportavam pela cidade pessoas e mercadorias com suas cadeiras de arruar. Essa foi provavelmente uma das primeiras ações focadas na melhoria das condições de trabalho remunerado no país, parte do processo incompleto de transição entre o trabalho cativo e o livre.

Algumas décadas depois, entre 1879 e 1880, foi a vez do Rio de Janeiro, já capital do Império, ser tomado pela Revolta do Vintém após o aumento da tarifa dos bondes. Em 1930, o foco voltou a Salvador no que ficou conhecido como “Quebra-bondes”, motim também provocado pelo preço da tarifa e pela péssima qualidade do serviço. Desde então, revoltas com o mesmo caráter aconteceram nas mais diversas cidades – muitas vezes com pautas mais amplas do que a mera insatisfação com os aumentos tarifários –, porém quase sempre se materializando na destruição de ônibus ou outros transportes. Foi assim na Revolta das Barcas de 1959, em Niterói, cidade da região metropolitana do Rio, até chegarmos ao ainda incompreendido Junho de 2013, com reivindicações espalhadas por quase todo o país.

Apesar dos inúmeros momentos marcantes que proporcionou ao longo da história das nossas cidades, ameaçando periodicamente governos das mais diferentes orientações ideológicas, a mobilidade urbana paradoxalmente continuou a ser tratada de forma secundária pelas elites políticas e econômicas e pelos responsáveis por desenhar políticas públicas.

Mesmo a atual Constituição, promulgada em 1988, só veio a incluir o “direito ao transporte” em 2015, após a aprovação de uma emenda proposta pela deputada federal Luíza Erundina, então no PSB. Porém, sem que sua efetividade fosse garantida por meio de regulamentações futuras.

Temos um empresariado incapaz de propor novos modelos, apegado que é ao obsoleto pagamento por passageiros.

Até os governantes mais sensíveis às questões sociais, que declaram priorizar o combate às desigualdades, carregam em seus planos de governo e em suas políticas públicas um olhar tacanho em relação à mobilidade urbana, quase sempre voltado a obras de infraestrutura que incentivam ainda mais a estigmatização e o abandono dos transportes coletivos, ampliando o espaço e a velocidade permitida aos automóveis particulares, enquanto os ônibus sobram para aqueles mais pobres, em especial para as mulheres que resistem ao uso das motocicletas.

Isso não significa que tudo seja marasmo. Já existe, por exemplo, a proposta de criação do Sistema Único de Mobilidade, elaborada por um conjunto de organizações, pesquisadores e especialistas no tema que afirmam que “o governo federal e os governos estaduais precisam se responsabilizar e pensar em ações e políticas públicas junto da sociedade civil”. Entre as responsabilidades previstas, está a de ajudar no financiamento da prestação do serviço. Seria uma mudança significativa na forma como os governos entendem a mobilidade urbana, superando boa parte dos conflitos históricos e contornando parcialmente o poder do empresariado do setor. Entretanto, a proposta ainda não foi colocada como prioridade pelos legisladores e ou pelo governo federal.

Se uma nova onda de revoltas populares à esquerda (leia-se: por mais direitos) parece não estar no horizonte por conta das esperanças depositadas no governo Lula, não se deve descartar a possibilidade de um locaute – uma espécie de greve de patrões – provocado por um empresariado em estado avançado de insolvência e incapaz de propor novos modelos de gestão e financiamento dos transportes coletivos no país, extremamente apegado ao obsoleto pagamento por passageiros e não ao serviço prestado à toda sociedade, que vai muito além do usuário direto que gira a catraca.

Assim, um conjunto de revoltas que foram iniciadas pelos trabalhadores dos transportes e atravessaram mais de um século, eclodindo sistematicamente a partir da insatisfação dos usuários, agora pode ser impulsionado pelos empresários. Sem a previsão de um novo auxílio para o setor em 2023 ou da regulamentação do transporte enquanto direito e com a falta de perspectiva no curto prazo de melhoria das condições de vida da maior parte da população – o que poderia levar a uma recuperação do número de usuários dos ônibus –, a mobilidade urbana pode voltar ao centro dos debates da única forma que consegue no Brasil: pelo caos nas cidades.

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