Ao longo da corrida eleitoral de 2022, o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva assumiu por diversas vezes o compromisso de desmembrar o atual Ministério da Justiça e da Segurança Pública em dois – alegava ser necessário dar maior prioridade à segurança. Passadas as eleições, em 9 de dezembro, pouco antes da despedida do Brasil da Copa, o petista alterou sua orientação, no que alguns viram como a primeira quebra de promessa de campanha. Lula anunciou a manutenção do desenho adotado por Bolsonaro de um ministério único, a ser chefiado pelo senador Flávio Dino, do PSB maranhense.
Em entrevistas à imprensa, Dino disse que a manutenção do modelo de Bolsonaro foi proposta pela equipe de transição, após ponderar melhor sobre os efeitos do desmembramento. O fundamento, disse o futuro ministro, é a necessidade de integração entre a Justiça e a Segurança Pública como esferas de atuação do estado. Afinal, de pouco adianta a polícia agir numa direção e os tribunais ou o Ministério Público agirem em outra. Uma boa política de segurança requer sinergia entre as diferentes engrenagens do sistema, o que reter os dois temas numa mesma pasta ajudaria a promover.
A fala de Dino soa razoável, mas a verdade é que não existe fórmula exata para se organizar governos, havendo prós e contras em modelos com maior ou menor concentração.
Criar ministérios específicos pode ampliar custos, não só financeiros (o que costuma interessar mais à imprensa), mas de coordenação. Mas também ajuda a dar visibilidade às pautas e permite maior especialização e agilidade na gestão. Dividir foi a solução adotada, por exemplo, na Economia, área em que Lula sinalizou o desmembramento da superpasta ocupada por Paulo Guedes em nada menos que três unidades: Fazenda; Planejamento; e Indústria e Comércio.
Nesse contexto, a opção de Lula por um ministério único para a Justiça e a Segurança parece fundada mais em razões práticas que teóricas. Uma delas, senão a principal, é a ocupação em massa, por policiais e outros agentes do setor, dos cargos e funções comissionadas do atual Ministério da Justiça e da Segurança Pública – uma realidade com a qual a equipe de transição certamente deve ter se defrontado. Essa prática teve início ainda nos governos do PT, mas se consolidou nos governos Michel Temer e Jair Bolsonaro.
O ministério não divulga dados precisos sobre o perfil dos ocupantes de seus cargos e funções, mas quem anda pelos corredores do Palácio da Justiça sabe que hoje o prédio mais se parece com um quartel ou batalhão. A criação de um Ministério da Segurança agravaria o cenário, gerando pressão para que as polícias fossem ali acomodadas, numa divisão de espaços entre “juristas” no Ministério da Justiça e policiais no Ministério da Segurança, que colocaria em risco (se é que não subverteria de vez) a capacidade do terceiro governo Lula de construir um legado próprio no combate à violência.
Policiais podem trazer uma contribuição importante para a formulação e implementação de políticas de segurança, mas elas não podem ser matéria exclusiva da polícia. Pelo contrário, uma boa política de segurança envolve ações públicas e sociais de prevenção; elaboração de planos e pactos integrando União, estados e municípios; e produção de bons diagnósticos sobre a dinâmica da violência nos territórios. Isso tudo demanda a capacidade de diálogo com ativistas de ONGs, universidades, e setores como educação, saúde e assistência social nos três níveis de governo – federal, estadual e municipal. Policiais não têm treinamento para isso.
A tarefa do governo Lula em relação às polícias é subordiná-las à lei e aos governos eleitos.
Além disso, há intensas disputas corporativas entre as diferentes polícias, de maneira que a ocupação de cargos e funções, por exemplo, por policiais civis gera uma demanda de representação por policiais militares com a qual o governo passa a ter que lidar. Com toda uma estrutura nova a ser ocupada, o Ministério da Segurança Pública desmembrado poderia facilmente sucumbir a essa lógica de loteamento.
Por fim, é inegável que as polícias se tornaram muito próximas do bolsonarismo, como ficou evidente pela atuação da Polícia Rodoviária Federal nas eleições e pela (não) reação de diversas polícias aos atos golpistas que se seguiram às eleições. Tomará tempo e energia política desfazer essa associação. Até lá, a tarefa do governo Lula em relação às polícias é subordiná-las à lei e aos governos eleitos – ou, como Dino tem dito, fazer delas uma verdadeira burocracia. A criação de uma pasta que, em maior ou menor grau, acabaria inevitavelmente controlada por policiais poderia comprometer esses esforços – isso se a pasta não se convertesse num instrumento para entrincheirar o bolsonarismo no estado.
Como disse Lula na campanha, a segurança pública deve ser uma prioridade do novo governo. Foi o fracasso das gestões do PT no setor que deu combustível a políticos de extrema direita, como Jair Bolsonaro e Sergio Moro, cujas propostas – armamento da população civil e licença a policiais para matar – são tão inócuas quanto atrativas para amplos segmentos da população.
Apesar da queda dos índices de homicídios, o Brasil continua sendo um país violento, e algumas formas de violência aumentaram, como a violência de gênero, o crime organizado na Amazônia e as mortes por armas de fogo em conflitos interpessoais. E a legislação atual – um dos poucos legados positivos do governo Temer – atribui ao governo federal a tarefa de coordenar uma política nessa área, o que torna menos plausível a saída adotada no governo Dilma de dizer que a segurança é matéria de competência dos estados. Tudo isso convidaria a criação de um ministério próprio para a segurança pública.
Mas decisões políticas têm seu contexto e, se na desafiadora transição para um país pós-Bolsonaro, criar esse ministério significaria permitir a colonização da pauta pelas polícias, é melhor trabalhar com o que temos.
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