Quando foi resgatada, em 2005, a onça Gavião pesava 100 quilos. Passou 11 anos de sua vida amarrada como um cachorro em um cabo de aço de 20 metros. Teve suas garras cortadas. Com ela, os policiais encontraram uma grande quantidade de armas. Naquele dia, a força-tarefa com Ibama, Ministério Público Federal e a Polícia Federal buscavam caçadores de onças na fazenda São Jorge, em Lambari do Oeste, no Mato Grosso.
Um vídeo com cenas de matança durante a caça de três onças havia sido vazado para o programa do Ratinho. A força tarefa foi atrás dos caçadores ilegais, mas não encontrou ninguém na fazenda – além de Gavião e das armas. A onça foi levada a um abrigo. Um veterinário chamado Éderson Viaro, conhecido como Dersão, foi apontado como o responsável pelos maus-tratos e pela caça ilegal.
Quase duas décadas depois, foi na fazenda de Viaro que encontramos o Clube de Caça e Tiro Esportivo do Estado de Mato Grosso.
Já mostramos no Intercept que os estados da Amazônia Legal tiveram uma explosão de clubes de tiro nos últimos anos. A expansão desse tipo de estabelecimento seguiu a rota do agronegócio e explodiu sob Bolsonaro. Os clubes cercam indígenas, municiam agromilícias e ajudam a explicar a violência acima da média da região. Agora, um novo levantamento feito com base em dados fundiários, cruzados com os registros de clubes de tiro do Exército, traz uma nova camada de informação: a maioria desses clubes fica em zonas rurais – e muitos dentro de fazendas, algumas com histórico comprometedor.
Encontramos, por exemplo, clubes de tiro em fazendas ligadas a sojeiros, políticos e acusados de diversos crimes, como lavagem de dinheiro e invasão de terras indígenas – além da caça ilegal.
Em 2004, um caçador preso em Cáceres apontou Dersão, dono da Fazenda São Jorge, como seu patrão. O fazendeiro teria conseguido escapar do flagrante da Fundação Estadual do Meio Ambiente no Parque Estadual do Guirá, região do Pantanal. Na ocasião foi informado que Dersão era considerado um caçador experiente e tinha autorização do Exército para transportar armas, sob a justificativa de fazer parte de clube de tiro, podendo conduzir o armamento para participar de competições.
Dersão também foi acusado de maus tratos contra animais silvestres depois da divulgação da notícia que a onça Gavião foi mantida em cativeiro em sua propriedade por pelo menos 11 anos. Vídeos divulgados na época mostravam até a participação de estrangeiros nos safáris organizados por ele e o uso de cachorros para auxiliar na caça.
O Clube de Caça e Tiro Esportivo Mato Grosso foi fundado poucos anos depois das denúncias, em 2010. É presidido pelo advogado Marcelo Barroso Viaro, filho de Dersão. Em 2022, Dersão chegou a assinar um Termo de Ajustamento de Conduta com o MPF em 2022 em que se compromete a parar de caçar animais silvestres e realizar safáris.
A página do clube está desatualizada e o site, fora do ar. O advogado Marcelo Barroso Viaro foi procurado no número que consta em seu cadastro no Conselho Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, mesmo telefone que consta no site do clube de tiro. Em contato pelo Whatsapp, informaram que o celular não era dele.
Outro histórico preocupante no Mato Grosso é o clube Associação de Tiro de Alta Floresta, fundado em 2018, que fica na zona rural da cidade mato-grossense de mesmo nome. Seu presidente, André Bianchini Serafin, é também sócio da Brasil Tropical Pisos, uma fabricante que, segundo seu site, exporta pisos e decks de madeira maciça “para mais de 35 países”. O clube está localizado em um lote rural em nome da empresa.
A Brasil Tropical Pisos é ré em uma ação civil pública em que o Ministério Público Federal a acusa de fazer parte de um grupo que invadiu o Parque Nacional do Juruena. O espaço, criado em 2006, fica em uma área próxima à divisa do Mato Grosso com o Amazonas, em pleno arco do desmatamento.
A região ainda está em vias de ser delimitada como território indígena. Um despacho da Fundação Nacional do Índio, de 2011, aprovou as conclusões para reconhecer os estudos de identificação e delimitação da Terra Indígena Apiaká do Pontal e Isolados, onde moram indígenas das etnias Apiaká, Munduruku e por um grupo de indígenas isolados “cuja filiação étnica resta desconhecida”.
A Brasil Tropical Pisos foi condenada em primeira instância a deixar a área do parque em que se localiza a Fazenda Soberana, de 18 mil hectares, e não fazer novas ocupações na área. Em um recurso em abril deste ano, a empresa alega que o decreto de criação do parque caducou, sob o argumento que o processo não foi concluído, com o pagamento de indenizações aos antigos proprietários das terras. A Brasil Tropical afirma ainda que já deixou o local, além de ter ingressado com um processo de desapropriação indireta para receber pela área.
O presidente André Serafin não foi incluído na ação, sob o argumento que a empresa tinha patrimônio próprio para responder na justiça. O Intercept tentou falar com Serafin no telefone do clube de tiro, mas não houve retorno do contato.
Clube de um, fazenda do outro
O levantamento feito pelo Intercept também encontrou um clube de tiro funcionando dentro da Fazenda Santa Bárbara, uma produtora de soja que nos registros do Incra consta como pertencente à Amaggi, empresa da família do ex-governador do estado e ex-ministro da Agricultura Blairo Maggi.
Ao Intercept, a Amaggi afirmou que “foi compromissada” a venda da Fazenda Santa Bárbara em junho de 2018 e “desde então transmitida a posse” e que as atividades econômicas na área “vêm sendo realizadas pelo comprador” – razão pela qual afirmam não ter “nenhuma relação com o referido clube de tiro”. O Cadastro Ambiental Rural do imóvel foi cancelado, mas nele consta o nome da Rotta Agropecuária, uma produtora de soja, algodão e gado.
Localizado em Sapezal, no Mato Grosso, o Clube de Tiro e Caça Patriotas foi fundado em outubro de 2021, em meio ao boom de estabelecimentos do tipo no governo Bolsonaro. O clube de tiro não tem relação direta com os sócios da Rotta e nem da Amaggi – ele é presidido pelo empresário Henrique Caceres Ribas, dono de uma construtora no município de Sapezal.
Só no Mato Grosso, ainda encontramos outros cinco clubes de tiro dentro de fazendas – em quatro deles, os presidentes dos clubes são diferentes dos administradores das propriedades rurais.
A mesma situação acontece em Roraima. Lá, o clube de tiro Associação Desportiva Hubertus é presidido por Luiz Antonio Araujo de Souza e fica em uma área da Wilt Empreendimentos. A empresa está em nome da família do médico Jan Roman Wilt, morto em outubro deste ano. Ele foi preso durante a Operação Exodus da Polícia Federal em 2006, ao lado de outros seis empresários e de José Evandro Moreira, à época presidente da Companhia de Água e Esgoto de Roraima, e cunhado do então governador Ottomar Pinto, morto em 2007.
Wilt é apontado também como dono de hospital e hotel. Assim como outros presos na ação, foi acusado de crime contra o sistema financeiro, lavagem de dinheiro, evasão de divisa e formação de quadrilha, com a movimentação de dinheiro não declarado em offshores. A suspeita era de que o dinheiro teria se originado de desvio de recursos públicos e contrabando de diamantes, segundo a imprensa noticiou na época. O médico era um atirador premiado, com participação em diversos campeonatos nacionais.
A Wilt Empreendimentos e a Associação Desportiva Hubertus foram procuradas no telefone que consta em seus cadastros. O número, no entanto, pertence a um escritório de contabilidade onde não souberam informar o contato dos responsáveis por ambas.
Clubes em unidades de conservação
O levantamento do Intercept, feito pelo geógrafo Eduardo Carlini, especializado em cartografia, aponta que aproximadamente seis em cada dez novos estabelecimentos abertos entre 2019 e 2021 na região Amazônica ficam em áreas rurais, e não em cidades, onde há mais concentração populacional.
O número de novos clubes abertos em áreas rurais não é preciso porque a definição do que é área urbana e área rural em cada município é definido por legislação municipal, explica Carlini. A estimativa leva em conta a interpretação das imagens de satélite das regiões e o fato de alguns desses clubes estarem localizados em áreas identificadas como pertencentes a imóveis rurais, de acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra.
Nem todos os clubes de tiro rurais apontados na pesquisa são abertos ao público.
A análise aponta ainda que existem seis clubes construídos dentro de unidades de conservação: três deles no Amazonas, dois em Rondônia e um no Acre, algumas delas em áreas públicas. São os casos da Área de Proteção Ambiental Lago do Amapá, no Acre, da Floresta Estadual de Rendimento Sustentável Periquito e do Rio São Domingos, em Rondônia, e das áreas de proteção ambiental da Margem Direita do Rio Negro – Setor Panuari-Solimões, Tarumã/Ponte Negra e Presidente Figueiredo/Caverna do Maroaga, no Amazonas.
Também existem 17 clubes de tiro dentro de antigos assentamentos. Em geral, aponta o geógrafo, não são os assentamentos de reforma agrária, mas sim antigos instrumentos de colonização usados pela ditadura brasileira, como o Projeto de Assentamento Rápido, o Projeto Integrado de Colonização e o Projeto de Assentamento Dirigido. Foram seis casos constatados no Mato Grosso, seis em Rondônia, três no Pará, um no Acre e outro em Roraima.
Nem todos os clubes de tiro rurais apontados na pesquisa são abertos ao público. Em agosto de 2021, tentei visitar dois deles em Rondônia. Para tentar chegar, usei aplicativos como o Google Maps, mas o acesso terminava em porteiras fechadas, sem qualquer informação na entrada. Nem mesmo os vizinhos sabiam da existência desse tipo de atividade no local. Rondônia, como o Intercept já mostrou, é o estado em que mais clubes foram abertos no governo Bolsonaro e também onde mais houve assassinatos de camponeses em 2021.
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