NOVOS DOCUMENTOS incluídos no processo de falência da FTX estão lançando luz sobre a verdadeira extensão da operação de tráfico de influência da empresa, gigante do comércio de criptomoedas. Na semana passada, a FTX protocolou sua matriz de credores, um documento que lista ex-fornecedores e investidores da empresa.
A lista inclui quase uma dúzia de especialistas em relações públicas – profissionais que geram comentários positivos na mídia em nome de clientes –, bem como consultores políticos, think tanks e grupos comerciais.
Às vezes, o dinheiro ia direto para operações políticas. O Majority Forward, um grupo de financiamento com doações anônimas, criado para eleger Democratas ao Senado, recebeu dinheiro. Em alguns casos, os profissionais contratados, como firmas de relações públicas, eram pagos diretamente por seus serviços. Em outros, os grupos que receberam doações afirmam que são independentes, mas tinham interesses alinhados com a FTX.
Por exemplo, o documento indica uma doação ao Center for a New America Security (CNAS), um importante think tank de Washington ligado a temas de segurança nacional, que trabalhou na definição de políticas de regulamentação do mercado cripto.
O documento permitiu vislumbrar o que ocorria por trás das cortinas do intrincado labirinto de influência da FTX. Na esteira de sua ascensão meteórica como uma bolsa de criptoativos, a FTX logo começou a gastar quantias extraordinárias de dinheiro para comprar prestígio e aliados em posições de poder. Agora que a empresa é acusada de desviar bilhões de dólares dos seus investidores – e seu fundador, Sam Bankman-Fried, enfrenta acusações de fraude – os olhos se voltam para os demais poderosos envolvidos nas negociações com a FTX.
As relações entre muitas das entidades listadas na declaração de falência e a FTX já eram conhecidas – a empresa fez a divulgação das atividades de lobby em relação a algum de seus consultores – mas a lista de credores mostra que a gigante do mercado cripto também mantinha vários influenciadores profissionais até então não revelados.
Um experiente braço político ligado à FTX até então não revelado é o ex-presidente do Conselho Municipal de Nova York, Corey Johnson. Sua empresa, a Cojo Strategies, aparece na lista de fornecedores da FTX. Outra é Susan McCue, uma ex-assessora do senador Democrata Harry Reid, de Nevada, que prestou consultoria a diversos Democratas do Senado e desempenhou um papel na liderança de vários Comitês de Ação Política (PACs) Democratas, entre outros organismos que recebem doações de financiadores ocultos. A firma dela, Message Global, está listada no documento.
Outras empresas de consultoria conectadas ao poder estão espalhadas pela listagem, que possui mais de 116 páginas. Outro credor, a Patomak Global Partners, uma empresa especializada em influenciar reguladores financeiros, é liderada por Paul Atkins, ex-membro da Comissão de Valores Mobiliários. A empresa de Atkins exibe sua lista de ex-funcionários do governo como “um telescópio para antecipar tendências no horizonte e ajudar a posicionar nossos clientes para o sucesso a longo prazo”. (Johnson, McCue, e Patomak não responderam aos pedidos de comentário.)
Regulamentação do mercado cripto
A doação para o CNAS – um poderoso grupo think tank ligado a ambos os partidos políticos, mas conhecido por indicar nomes para funções de segurança nacional em administrações Democratas – veio em um momento em que a organização defendia uma regulamentação mais leve para o mercado cripto.
“Para competir na corrida da economia digital com a China, os Estados Unidos devem promover um ambiente mais inovador para as fintechs”, disse o representante do CNAS, Yaya J. Fanusie, em testemunho ao Comitê de Finanças do Senado em 14 de julho de 2021. “Se a regulamentação dos valores mobiliários não evoluir para levar em conta as novas capacidades técnicas e empresariais oferecidas pela tecnologia blockchain e de transmissão de dados, os Estados Unidos podem ficar limitados na revolução de dados que está apenas começando.”
O CNAS também mantém uma força-tarefa cripto, na qual a FTX atuava como membro. A força-tarefa mantinha contato com funcionários do governo ligados à segurança nacional, oferecendo orientação política que refletia os argumentos do setor cripto de que os tokens digitais em blockchain representam um baixo risco para o financiamento de terrorismo.
A ata de uma reunião do CNAS com Brian Nelson, subsecretário para Terrorismo e a Inteligência Financeira do Departamento do Tesouro, inclui um resumo da discussão e indicou que o oficial “reconheceu o esforço de muitos na indústria para engajar em um diálogo construtivo e apoiar os esforços do governo para mitigar o uso indevido de ativos virtuais para lavagem de dinheiro.” O uso de criptos para “atividades ilícitas permanece abaixo da escala das finanças tradicionais”, conforme Nelson.
A força-tarefa do CNAS é co-presidida por Sigal Mandelker, que ocupava a posição de Nelson no Tesouro antes de se demitir em 2019 para entrar no setor privado. Mandelker agora atua como sócia da Ribbit Capital, que investe na FTX. Ela falou na conferência SALT’s Crypto Bahamas no verão passado. A conferência exclusiva para “líderes no setor de criptografia e finanças tradicionais” também contou com palestras de Bankman-Fried, do ex-presidente Bill Clinton e do ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair.
A palestra de Mandelker no evento foi sobre a manutenção de normas permissivas para o mercado cripto.
“O instinto do governo muitas vezes é se concentrar no risco e não colocar tanta ênfase na oportunidade”, disse. Os verdadeiros riscos aos quais os reguladores deveriam estar atentos, segundo Mandelker, eram o de “acabar com a inovação [das cripto]”. (Mandelker não respondeu a um pedido de comentário.)
“O CNAS recebeu uma doação de US$ 25,000 da FTX em 2022, como apoio geral à sua pesquisa sobre segurança nacional”, disse Shai Korman, diretor de comunicações do CNAS, ao Intercept. “A FTX também era membro da força-tarefa para Fintech, Cripto, e Segurança Nacional. A FTX não é mais parte da força-tarefa e a CNAS devolveu a doação na íntegra.”
Relações Públicas, bancas de advocacia e vídeo games
A FTX já teve um status quase mítico na imprensa, sendo matéria de capa e aparecendo em reportagens que exaltavam a gigante das cripto e seu jovem líder, Bankman-Fried. Essa cobertura raramente acontecec de maneira orgânica, e a FTX contratou um exército de empresas de relações públicas para melhorar sua imagem.
Entre elas estava a M Group, uma grande empresa de relações públicas com sede em Nova York, conhecida por seu contato com jornalistas importantes. Entre as outras empresas contratadas pela FTX estão a TSD Communications e a Full Court Press Communications.
A lista de credores inclui a Rational 360, uma empresa de relações públicas em parte liderada pelo ex-secretário de imprensa da Casa Branca, Joe Lockhart. E-mails obtidos por Matt Stoller, diretor de pesquisa do American Economic Liberties Project, mostram que a Rational 360 pressionou ativistas e influenciadores políticos a falar em favor de um projeto de lei que passaria a autoridade reguladora das cripto para a Comissão de Negociação de Futuros de Commodities (CFTC). Enquanto a Comissão de Valores Mobiliários lida com muitas ações de fiscalização contra empresas de cripto, a Comissão de Negociação de Futuros de Commodities é vista como mais amigável aos interesses deste mercado, e possui menos exigências quanto à transparência.
Grandes escritórios de advocacia também são presença importante nas últimas revelações do processo de falência. Uma das empresas listadas é a Cleary Gottlieb Steen & Hamilton, que representou a Rússia em uma disputa de títulos de US$ 3 bilhões contra a Ucrânia, antes de fechar seu escritório em Moscou no ano passado. A Buckley LLP, outra grande firma de advogados sediada em Washington que apareceu na lista de credores da FTX, anunciou no início deste mês que se fundiria com a Orrick, sediada em San Francisco, para criar uma empresa combinada no valor total de quase US$ 1,5 bilhão, focada em “consultoria normativa e de fiscalização” nas áreas de finanças e tecnologia.
Entre a lista de credores da FTX aparecem alguns países – embora os detalhes das relações financeiras sigam desconhecidos. No entanto, a lista de países parece um catálogo de nações com regulamentações financeiras frouxas: Ilhas Virgens Britânicas, Bermudas, Ilhas Cayman, Ilha de Man, Liechtenstein, Luxemburgo, Emirados Árabes Unidos, Seychelles e Suíça aparecem no documento.
Além de bancos nacionais e empresas poderosas no mundo das relações públicas corporativas, a lista de credores também traz restaurantes de luxo como o Carbone em Miami e o luxuoso resort Margaritaville em Nassau.
A North America League of Legends Championship Series, propriedade de uma franquia de eventos de jogos eletrônicos, também está listada entre os credores. Bankman-Fried, conhecido por jogar o game “League of Legends” durante reuniões com investidores, acordou um patrocínio de US$ 96 milhões com a Riot Games. Em dezembro, conforme era relevada a extensão dos problemas com a FTX, a Riot anunciou que iria tentar cortar laços com Bankman-Fried.
Em alguns casos, as relações no mundo do entretenimento ofereciam mais um canal de acesso político. A lista de credores inclui a agência de talentos WME, com um memorando mencionando o ator Larry David, celebridade que endossava a FTX e apareceu em um comercial do Super Bowl promovendo a empresa de cripto.
A WME é de propriedade da Endeavor, uma investidora da FTX que possui 38,000 ações da empresa. A Endeavor também é administrada por Ari Emanuel, irmão de Rahm Emanuel, embaixador no Japão indicado pelo presidente Joe Biden .
Nota do editor: em setembro de 2022, o Intercept recebeu US$ 500 mil da Building a Stronger Future, fundação de Sam Bankman-Fried, como parte de uma doação do total de US$ 4 milhões para financiar nossa cobertura sobre biossegurança e prevenção da pandemia. Essa doação foi suspensa. De acordo com nossos procedimentos, o Intercept divulgou o financiamento nas reportagens subsequentes sobre as atividades políticas de Bankman-Fried.
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