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Carnaval, marketing e pobreza: depois da pandemia, voltamos à festa e às apoteoses da desigualdade

Quando as fantasias de Casa Grande e Senzala vão ser efetivamente deixadas para trás nos carnavais do Brasil?


Ilustração: Nicholas Steinmetz para o Intercept Brasil

Escrever coluna é correr o risco contínuo de soar extemporânea: as coisas sempre acontecem no atropelo e, muitas vezes, estão lá você e seu texto jornalístico prontinhos quando explode mais um assunto urgente – e o trabalho finalizado vai para o brejo. “Não existe nada mais perecível do que a notícia”, já dizia uma colega de redação. Mas desta vez a extemporaneidade deste texto é pensada e bem vinda: precisou acabar o Carnaval, a nossa ofegante epidemia, para que eu conseguisse organizar imagens e impressões que me atravessaram nestes dias de folia. Eu vi muita beleza de longe e de perto; celebrei a nossa volta monumental às ruas depois de dois anos pandêmicos; fui atrás de blocos cantando “Voltei, Recife” pela milésima vez como se fosse a primeira.

Mas não teve felicidade, espetáculo ou cachaça que apagassem as diversas e apoteóticas expressões de desigualdades que também atravessaram minhas retinas: elas estavam, por exemplo, nos dois milhões de dólares pagos pela Brahma à modelo e empresária Gisele Bündchen para ficar três horas no camarote da marca; nos esgotos a céu aberto que riscavam as periferias de Olinda; nas dezenas de grupos de maracatu formados majoritariamente por pessoas negras e pobres se apresentando para as brancas oligarquias políticas de Pernambuco; nas casas e pessoas humildes arrastadas pelas chuvas no litoral de São Paulo; no vídeo “fofo” da cadelinha influencer  viajando de classe executiva rumo a Paris.

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Não é novidade que o mundo é um caldeirão de disparidades, eu sei. Mas é exatamente por isso que precisamos estar acesas sobre o que acontece ao nosso redor, principalmente depois do que passamos nos últimos anos, fosse no planeta chacoalhado pelo coronavírus, fosse especificamente no Brasil esculhambado por um governo de extrema-direita.  O gatilho da coisa toda está justamente aí: parte de mim acreditou que voltaríamos para a nossa maior festa popular, suspensa por dois anos, com alguns urgentes aprendizados impostos pelos enormes sofrimentos físicos e psicológicos derivados da pandemia, da violência política, do escracho na saúde. De um vírus que desenhou, para quem ainda não estava alerta, que pobreza extrema não é somente uma condição social, mas é também um troço que mata; que políticos, médicos e empresários que se auto-intitulam de patriotas agiram deliberadamente para levar a população do próprio país ao cemitério (afinal, vale lembrar, “óbito também é alta“).

Mas tocaram os clarins e foi como se estivéssemos presos no país de marchinhas preconceituosas como “olha a cabeleira do Zezé”, e não na nação de Pabllo Vittar. Como se olhássemos o camarote da Brahma e víssemos Gisele em 2004, em sua primeira participação no rega-bofe, e não quase 20 anos depois. Não era somente o look da modelo que de certa forma se repetia: ali se cristalizavam velhas estratégias de marketing, da hiper visibilização de pessoas e temas enquanto outros permanecem (propositalmente) no escuro. A Ambev, dona da Brahma e do camarote de celebridades, é um ótimo exemplo para pensar sobre isso: há anos, tem buscado se modernizar e se inserir no mercado da “responsabilidade social”. É o caso da sua água mineral Ama, lançada em 2017. Aos jornais que compraram a ideia pelo valor de face, a fabricante de bebidas diz que “o lucro com a venda do produto é integralmente revertido para projetos e obras de acesso à água potável no semiárido”.  Ou seja, na verdade você e eu pagamos os projetos ao comprar a água, uma vez que a Ambev repassa o valor enquanto, claro, conta conosco para fazer publicidade orgânica do produto.

Mas vale especialmente atentar para o abismo entre o valor investido no projeto social e a aparição da modelo. No primeiro, uma ação que, segundo a empresa, chegou a mais de 35 mil pessoas, foram empregados R$ 3 milhões em 2018, o que equivale a cerca de R$ 4 milhões nos dias atuais (valor corrigido pelo Índice Nacional de Preço ao Consumidor). São apenas 40% do montante total investido para pagar a uma única pessoa – Gisele – para que ela fosse até o camarote da Brahma. Para isso, a cervejaria desembolsou R$ 10,3 milhões por três horas de close.

Obras na na rodovia PE-015, que liga à cidade de Olinda e se arrastam há anos Foto: Fabiana Moraes

Só que nem a água nem o super cachê são a parte mais visível dos negócios da empresa: com os holofotes voltados para a “responsabilidade social” ou Gisele, outros interesses da Ambev vão seguindo só no sapatinho. Na estratégia da água mineral Ama, realizada a partir  de um mapeamento de parcerias, fundações e ONGs estabelecidas nos sertões nordestinos e em Minas Gerais, acionistas como Jorge Paulo Lemann emulam programas de universalização da água já tocados, por exemplo, pelo governo federal e entidades como a Articulação Semiárido Brasileiro, a ASA. Assim, trazem para o privado, e usando fortemente a estratégia do “empreendedorismo”, questões que já foram resolvidas com êxito através de políticas públicas (Nestlé, Ambev e Coca-Cola possuem enorme interesse na privatização da água, como mostrou o Joio e o Trigo aqui). O problema é que, há anos, programas como o Um Milhão de Cisternas sofreram duros revezes, especialmente no governo de – adivinhem quem – Jair Bolsonaro. Com o desmonte, partidos do Centrão passaram a usar os reservatórios de água como moeda de troca para obter votos, como já escrevi aqui. E não apenas legendas como o PP de Arthur Lira se beneficiaram das “bondades” de Jair: a Ambev e a Coca-Cola embolsaram R$ 1,6 bilhão após um decreto assinado pelo ex-presidente e o então ministro da Economia Paulo Guedes. Com ele, as empresas puderam cobrar créditos por impostos que nunca pagaram, como lemos nesta reportagem do TIB em parceria com o Joio e o Trigo. “A Ambev visa ocupar o cenário de desmonte de políticas públicas voltadas para comunidades pobres do meio rural do semiárido brasileiro”, bem sintetiza o pesquisador Valdênio Meneses (UFPR) neste artigo.

(…)

Agora peço licença e saio do camarote cheio de holofotes e do semiárido posto no escuro e me dirijo para Olinda. Lá, encontro outra enorme mostra que, depois de dois anos sem Carnaval, com formas de trabalho e geopolítica transformadas, as coisas mudaram para continuar como estão. Fui novamente ao encontro anual de maracatus de baque solto na Cidade Tabajara, algo que faço há mais de dez anos. Na subida, baianas, damas, guerreiros e caboclos tentavam proteger as fantasias do esgoto a céu aberto que corria pelas calçadas. Chegavam para apresentar beleza e eram recebidos com precariedade.

Fui até uma área do Centro Cultural Casa da Rabeca, onde dezenas de grupos de caboclinhos, maracatus e bois se apresentam. Em um espaço mais protegido, prefeitos, deputados, governadores, líderes comunitários e outras pessoas influentes postavam-se para ver as dezenas de agremiações e ouvir os mestres.  Vários deles homenageiam as figuras de poder e cantam seus feitos, ainda que eles não tenham necessariamente acontecido. Esta mesma dinâmica acontece em cidades que visitei, como Aliança e Nazaré da Mata, onde ocorrem encontros de maracatus.

Sempre me constrangi profundamente com a forma com que o poder local se relaciona com estes artistas, como se os últimos viessem de longe prestar homenagem aos reis ou senhores. Senti isso na primeira vez que estive ali, no começo da década de 2010, e encontrei o ex-governador Eduardo Campos, morto em um acidente de avião em 2014. Senti o mesmo na segunda de carnaval, mais de dez anos depois, quando encontrei no mesmo lugar o filho de Eduardo, o recém-eleito deputado federal Pedro Henrique de Andrade Lima Carneiro Campos, ou simplesmente Pedro Campos (PSB).

Deputado Pedro Campos, irmão mais novo do prefeito de Recife, no encontro de Maracatus. Foto: Fabiana Moraes

Aos 27 anos, Pedro (irmão mais novo de João Campos, prefeito de Recife) nunca tinha concorrido a uma eleição desse porte, mas sagrou-se como o terceiro deputado federal com mais votos no pleito de 2022 (172.526 mil votos). Com seus olhos claros, pele branca e patrimônio declarado de R$ 1.771.075, o deputado tinha seu nome cantado diversas vezes pelos mestres de maioria negra, que  o saudavam e agradeciam a sua presença. Sorrisos, Instagram, filtros, aplausos, tradições e invenções repaginadas – mas nem tanto.

Para além das sinceras demonstrações de apreço, os cantos elogiosos também são fruto da enorme cultura de dependência que atravessa as milhares de pessoas que botam, com pouca grana e muito suor, sua dança nas ruas. Com um empresariado local muitas vezes refratário a contribuir com o que não consideram “moderno” (ou branco) e com prefeituras dominadas pelo gosto do gestor ou gestora da vez, os maracatus passam por constrangimentos diversos para conseguir se apresentar. São pessoas que trabalham em frigoríficos, na construção civil, entregando comida, em casa ou nos canaviais e precisam gastar quantias razoáveis em vestimentas, em viagem, em alimentação. Não, esse corre também não é novidade, mas o que pensar de uma nova geração de políticos que não se incomoda em performar práticas simbólicas e anacrônicas tão comuns em uma terra que até hoje adora a tradição do servilismo? Aliás, quais são mesmo as “tradições” que queremos manter? Como não racializar essa relação? Quando as fantasias de Casa Grande e Senzala vão ser efetivamente deixadas para trás nos carnavais do Brasil?

Passei um bom tempo ali observando as dinâmicas de raça e de classe que se repetiam na folia ao redor. A música Dia da Graça, de Candeia, não saía da minha cabeça: “Mas depois da ilusão, negro volta ao humilde barracão/Negro, acorda, é hora de acordar/Não negue a raça, torne toda manhã dia de graça (…) E deixa de ser rei só na folia/E faça da sua Maria uma rainha todos os dias/E cante um samba na universidade/E verá que teu filho será príncipe de verdade”.

(…)

Voltei para casa e passei novamente pelo show de urbanização precária que infelizmente marca a Olinda para além do sítio histórico. Uma cidade incrível que dificilmente tem gestores à sua altura. Passei por outra apoteose, a do trabalho precarizado, com muita, muita gente tentando vender alguma coisa para sobreviver. No Instagram, o cachê de Gisele e a cadelinha Fifi, digital influencer canina que eu, na minha profunda ignorância, desconhecia, eram os assuntos da vez. Com elas, concorria no noticiário a tragédia das dezenas de mortes no litoral de São Paulo em decorrência da má gestão urbanística, e não exatamente das chuvas.  Leio e escuto que muita gente aproveitava o caos e as mortes para ganhar dinheiro.

Carnaval, desigualdade, ganância. Infelizmente, nesse bolo de coisas, apenas Fifi gastando R$ 30 mil em uma passagem aérea era novidade.

Dedico esta coluna a Gilberto, Eduarda e Davi, do Maracatu Pantera da Vila, de Chã de Alegria. É para essa família, que representa tantas outras nos carnavais sem holofotes, que vão as minhas loas.

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