UMA DAS MAIORES IGREJAS evangélicas do Brasil, a Igreja Pentecostal Deus é Amor é acusada por um ex-integrante de comprar um imóvel com o dinheiro de ofertas de fiéis e depois revendê-lo para a própria instituição por R$ 4 milhões. A denúncia de que a igreja teria pago duas vezes por uma mesma propriedade foi feita ao Intercept pelo advogado Francisco Tenório, ex-fiel da Deus é Amor.
O Intercept teve acesso à escritura desse imóvel onde funciona um templo da igreja, localizado na avenida Mateo Bei, 2567, no bairro de São Mateus, na zona leste de São Paulo. O documento oficializado no 9º. Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo comprova as duas negociações feitas.
Segundo Tenório, a igreja fez campanha para pedir ofertas aos seguidores durante seus cultos para comprar o prédio, adquirido no dia 17 de janeiro de 2000, por R$ 350 mil. O imóvel, então, foi registrado em nome de David Oliveira de Miranda – filho do pastor David Martins de Miranda, líder e fundador da Deus é Amor, morto em 2015 –, e também de sua então esposa, Raquel Borges de Miranda, conforme registra a escritura.
Sete anos depois, Raquel e David Oliveira de Miranda, conhecido como David Miranda Filho, decidiram se separar. No processo de partilha de bens do divórcio, em 11 de dezembro de 2017, o imóvel foi vendido novamente à Deus é Amor pelo casal, como comprova o registro do cartório.
“O imóvel foi comprado com dinheiro de ofertas para ser uma sede regional. E a igreja dizia que era um templo próprio. Eles ‘venderam’ o templo próprio para a própria Deus é Amor por R$ 4 milhões. Foram R$ 2 milhões para o David Filho e R$ 2 milhões para a Raquel Borges. Eu assinei um termo de compromisso de compra, como testemunha, com a data de 6 de dezembro de 2016”, afirmou Tenório, hoje consultor de instituições religiosas e autor do livro “O Direito da Igrejas” (edição independente). Ele explicou que não ficou com cópia do documento de compra do imóvel.
“Como esse bem foi incorporado ao patrimônio do David Filho, em 2000, isso configura estelionato, pois o bem foi adquirido com dinheiro da igreja e o próprio missionário David Miranda dizia que era templo próprio da instituição. Mas pôs no nome do filho para proteger a família”, afirmou o advogado. David Oliveira de Miranda, ou David Filho, não integra mais os quadros da Deus é Amor. Desde 2017, possui a sua própria denominação, a Igreja Pentecostal Santificação no Senhor, no bairro do Brás, na região central de São Paulo.
Francisco Tenório contou que assinou o documento de preferência de compra do imóvel como testemunha quando estava na sede da igreja à espera de uma reunião. “Eu tinha ido tratar de um caso do pai da Raquel, que era meu cliente, em um outro contexto. Aí, na mesma reunião, o departamento jurídico da igreja aproveitou a oportunidade e me fez o pedido para assinar como testemunha. Afirmaram que a Raquel já tinha recebido os R$ 2 milhões e o David também. Eu assinei lá na hora porque não tinha outra pessoa, e eles não queriam chamar os membros que trabalham no prédio nem empregados, para que ninguém soubesse. Esse contrato ia ser levado para o cartório de registro de imóveis para passar para o nome da igreja em definitivo”, detalhou. “Depois da reunião, a Ereni Miranda, presidente da igreja e viúva de David Miranda, pediu para eu aguardar. E o próprio David Filho veio me cumprimentar. Eles queriam ver minha cara”.
Tenório nunca ocupou cargos na Deus é Amor. “Eu era apenas um membro, mas tinha boa relação com a direção, e era próximo da cúpula”, explicou. Depois de ter se desligado da igreja, em 2004, ele atuou também como advogado de Sérgio Sora, ex-pastor e ex-vice-presidente da denominação, que foi casado com Leia Miranda, também filha do fundador David Miranda.
Engorda do patrimônio pessoal
Não é raro instituições religiosas adquirirem bens e os colocarem em nomes de seus líderes, mesmo a prática sendo questionada. Outra gigante do ramo pentecostal, a Igreja Universal do Reino de Deus, por exemplo, criou em 1989 a campanha “Sacrifício de Isaque”, pedindo que seus fiéis dessem toda a oferta possível para a igreja criar a primeira televisão evangélica no país, com transmissão de conteúdo neopentecostal 24 horas por dia.
Essa ideia ficou só na promessa. A TV Record hoje é uma emissora comercial e tem como principais acionistas o líder e fundador da igreja, Edir Macedo, e sua mulher, Ester Rangel Bezerra. Outras dezenas de empresas ligadas ao grupo Universal estão em nome de bispos e pastores ou familiares de Macedo.
A Deus é Amor ainda possui dois templos em Santo André, município da grande São Paulo, que estavam em nome do missionário David Miranda, o pai, como comprova o inventário do religioso, ao qual o Intercept teve acesso.
David Miranda deixou aos seus herdeiros uma agência de turismo, emissoras de rádio, dezenas de imóveis, salas comerciais e carros luxuosos, além de aplicações financeiras. Em 2015, o valor dos bens partilháveis foi estimado em R$ 86,3 milhões. O advogado Francisco Tenório acredita, no entanto, que podem ultrapassar R$ 500 milhões, somando-se os bens e investimentos em nomes de outros familiares e outros supostamente existentes no exterior, em países como os Estados Unidos, Uruguai e Peru. Vários imóveis que constam no inventário também foram registrados pelo valor venal, abaixo dos valores atuais de mercado, como é comum em transações imobiliárias.
Em seu livro “O Direito das Igrejas”, o advogado Tenório diz ser comum igrejas também adquirirem emissoras de rádio com o dinheiro de dízimos e ofertas, alegarem que elas não podem ser colocadas em nome da instituição religiosa e, assim, passarem a engordar o patrimônio pessoal de seus líderes. Essa justificativa de que as igrejas não podem colocar as emissoras em seu próprio nome não procede, esclarece o advogado, já que elas podem criar fundações para esse fim, “como ocorre, por exemplo, com emissoras católicas, como a Rede Vida e TV Aparecida, e também outras evangélicas”. Alguns líderes religiosos que colocam esses bens em seu nome passam a cobrar da própria igreja valores mensais pelo arrendamento da emissora, como denuncia Tenório, em seu livro.
Segunda onda
A Deus é Amor foi fundada por David Miranda em 1962 na chamada “segunda onda” do pentecostalismo no Brasil. Na definição do professor de Sociologia da USP Ricardo Mariano, autor do livro “Neopentecostais: Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil”, é uma das representantes do deuteropentecostalismo, termo que designa a segunda onda do movimento religioso, iniciada nos anos 1950, com o surgimento de igrejas como a Brasil para Cristo, Evangelho do Quadrangular e Casa da Benção, que enfatizavam a cura divina, as profecias e o dom de falar línguas divinas.
Criado em área rural na cidade de Reserva, no Paraná, David Miranda foi aprendiz de mecânico e trabalhou como escriturário na fábrica de papel Klabin. Veio para São Paulo em 1957. Era um católico fervoroso e chegou a ser um congregado mariano – seguidor da Congregação Mariana, uma associação de leigos católicos.
A Deus é Amor tem aversão a opções de lazer como TV, cinema, teatro e futebol. Para muitos de seus seguidores, a televisão seria “a imagem e o olho eletrônico da besta”. As seguidoras da igreja são proibidas de cortar o cabelo e usar maquiagem nas sobrancelhas. “Calça comprida é coisa para homem”, disse, no ano passado, a presidente da igreja, Ereni Miranda. Os homens também não podem ter barba.
Desde a morte do fundador e líder principal, no entanto, a Deus é Amor vive momentos conturbados. Sua morte acirrou uma disputa interna pelo comando da instituição. A filha Leia Miranda e seu ex-marido Sergio Sora, que chegou a ser vice-presidente da instituição, foram expulsos em 2005 e fundaram uma nova denominação, a Igreja Evangélica Vida em Cristo.
Apontado como provável futuro líder da igreja, David Miranda Neto foi afastado no ano passado.
David Miranda Filho foi desligado em 2016. À época, foram vazados áudios nos quais ele teria convidado uma jovem para ter relações sexuais. Depois de se separar de Sergio Sora, Leia Miranda voltou à Deus é Amor em 2015. Em setembro do ano passado, foi novamente afastada pela própria mãe, Ereni, por um período de cinco anos, por um comportamento considerado inadequado. Em áudios vazados, ela teria teria admitido que teve relações sexuais com um homem casado.
Apontado como provável futuro líder da igreja, David Miranda Neto, que vinha tentando modernizar a igreja com uma linguagem pop, luzes e outras tecnologias nos cultos, também foi afastado em setembro do ano passado, quatro dias depois da punição imposta à sua tia Leia, mais uma vez por causa de vazamentos.
Foram divulgadas entre os fiéis fotos de David Neto, de sua esposa Karina e a filha em uma piscina. Pelo regulamento da igreja, os homens precisam usar sempre, em público ou privado, calça comprida e camisas, no máximo, de mangas curtas. Regatas, nunca. Andar sem camisa é proibido em qualquer hipótese. As mulheres devem usar saia ou vestido que cubra o joelho, e as roupas não podem mostrar a barriga ou axilas. Tanto ao homem e a mulher jamais são permitidos sunga ou biquinis. David Neto disse não considerar esse ato um pecado, mas acatou a decisão da igreja. Segundo ele, “pessoas que caíram estavam querendo levar alguém junto”, afirmou, referindo-se indiretamente à sua tia Leia.
O Intercept enviou à Igreja Pentecostal Deus é Amor na sexta-feira, 3, uma série de questões sobre as denúncias apresentadas. Não houve resposta até o fechamento desta reportagem
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