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A joia da corrupção do ex-presidente Bolsonaro

Ex-presidente acumulou ao longo de sua gestão episódios de uso da máquina pública para favorecer projetos pessoais.

A joia da corrupção do ex-presidente Bolsonaro

Crédito: José Dias/PR

Lembram daquele presidente humilde que comia pão com leite condensado, aparecia de bermuda e chinelão e assinava documentos com uma caneta bic? Pois então. No apagar das luzes do mandato, ele mobilizou o estado brasileiro para tentar surrupiar do próprio estado brasileiro com joias avaliadas em R$ 17 milhões.

Não fosse a firmeza de um auditor da Receita Federal, que interrompeu a tramoia, Bolsonaro estaria hoje com seu patrimônio multiplicado em aproximadamente 7 vezes. Ao longo do último ano de mandato, ele usou ostensivamente o estado brasileiro para tentar se reeleger a todo custo. Sem sucesso, tentou usar o estado pela última vez para tentar levar milhões em joias para casa. Foi assim que terminou o mandato do presidente que se elegeu prometendo acabar com a corrupção.

As provas dos crimes de peculato, advocacia administrativa e facilitação de contrabando foram se avolumando durante a semana e ainda estão sendo analisadas pela Polícia Federal e Controladoria Geral da União. O caso está fartamente documentado por áudios, vídeos, fotos, depoimentos e documentos oficiais. Já não há qualquer dúvida de que as joias entraram no país ilegalmente e que funcionários públicos ligados ao presidente afrontaram as leis para tentar liberar as joias retidas na alfândega.

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O bolsonarismo já colocou a operação passa-pano na rua, mas todo dia um fato novo vem à tona, dificultando a fabricação de uma narrativa que absolva o ex-presidente. Bolsonaristas tentam vender a ideia pueril de que as joias são um mero presente pessoal dado pelo princípe saudita ao casal presidencial brasileiro. O episódio seria irrelevante e a imprensa estaria fazendo tempestade em copo d`água. Flávio Bolsonaro e o advogado Frederick Wassef insistem que as joias são um presente de caráter “personalíssimo”, o que tornaria legal a apropriação delas. Tentar comparar joias milionárias a um simples souvenir soa como piada. Mas esse papo só convenceu a ala mais bovina dos eleitores de Bolsonaro. Há uma pororoca de fatos atropelando essa narrativa. Não há pra onde correr. O episódio já desgastou a imagem do ex-presidente aos olhos de parte do seu eleitorado.

Há dois conjuntos de joias que entraram ilegalmente no Brasil: um masculino e outro feminino. O feminino foi apreendido pela Receita Federal com um então assessor de Bento Albuquerque, ex-ministro de Minas e Energia, que tentou entrar no país pela saída “nada a declarar”. Os auditores alfandegários avaliaram o conjunto em R$ 16,5 milhões e cobraram o imposto milionário do assessor. Como não foi pago, o produto ficou retido na alfândega. O conjunto masculino foi trazido escondido na mala do próprio ministro Bento Albuquerque, mas passou batido pela fiscalização. Segundo ele, as joias foram entregues nas mãos de Jair Bolsonaro no ano passado que, depois de muito tempo se fazendo de louco, admitiu estar em posse delas. Trata-se de uma confissão feita poucos dias depois de afirmar categoricamente que não havia recebido as joias. Se isso não é uma clara confissão de peculato, não sei o que mais pode ser.

‘Tentar comparar joias milionárias a um simples souvenir soa como piada. Mas esse papo só convenceu a ala mais bovina dos eleitores de Bolsonaro’.

O conjunto que Bolsonaro levou pra casa na surdina vale no mínimo R$ 400 mil, o que é um valor muito baixo perto dos R$ 16,5 milhões em joias que ficaram retidos na Receita Federal. O ex-presidente então fez o diabo para conseguir liberar o resto das joias. Três ministérios foram acionados e houve pelo menos 8 tentativas de se liberar as joias que entraram ilegalmente no país. Os servidores da Receita se mantiveram firmes e resistiram à pressão dos homens ligados ao presidente. Depois de falhar a pressão do então ministro Bento Albuquerque, o presidente mobilizou o Itamaraty, que pediu ao órgão fiscal que tomasse as “providências necessárias para liberação dos bens retidos”. Mas os auditores bateram o pé e insistiram que isso só seria possível com pagamento de multa e impostos que somariam R $12,3 milhões. Depois dessas tentativas frustradas, Bolsonaro jogou mais pesado e mobilizou a chefia da Receita para tentar liberar as joias. Mesmo pressionados pela chefia, os servidores da Receita não cederam. Todas essas pressões foram registradas em ofícios.

Os integrantes do governo que participaram da tramoia tinham plena consciência de que o que faziam era errado e atuaram para esconder o escândalo durante o ano eleitoral. Um mês após a apreensão, uma carta enviada pelo então ministro Bento Albuquerque ao governo saudita omitiu que a joia havia sido retida pelos fiscais da alfândega. O bolsonarista agradeceu os presentes e mentiu ao príncipe saudita ao dizer que eles haviam sido incorporados à “coleção oficial brasileira”. Ou seja, o governo brasileiro mentiu em documento oficial enviado a um governo estrangeiro para não atrapalhar a campanha eleitoral de Bolsonaro.

Depois das sucessivas tentativas frustradas de liberar as joias, os bolsonaristas resolveram dar um tempo no assunto. Segundo apuração do Estadão, o “esquecimento” das joias chamou a atenção dos auditores da Receita, que emitiram um auto de infração declarando a “pena de perdimento aos bens por abandono”. Foi dado ainda um prazo para o governo recorrer, mas devido à falta de manifestação, o “abandono” foi oficializado. Faltavam apenas três meses para a eleição.

‘Há motivos de sobra para desconfiar de que estamos diante de um caso de propina’.

Uma última cartada para recuperar o presente milionário dos sauditas só veio acontecer depois da eleição, dois dias antes de Bolsonaro abandonar a presidência e fugir para os EUA. O então presidente ordenou que um emissário do Planalto viajasse para Guarulhos para tentar reaver os milhões retidos. O emissário, que é sargento da Marinha, usou um avião da FAB para tentar cumprir a missão. No documento de solicitação de voo da FAB, consta que o objetivo da viagem seria o de “atender demandas do senhor presidente da República naquela cidade”.

Além dos crimes de peculato, advocacia administrativa e facilitação de contrabando, há ainda um outro crime que deve ser investigado: o de corrupção passiva. Não há registro na história da geopolítica mundial um chefe de estado dando a outro chefe de estado um presente com valor próximo de R$ 17 milhões. Nem Donald Trump, amigão do governo saudita, recebeu presentes desse calibre. O valor máximo de um presente recebido pelo ex-presidente americano foi de US$ 17,6 mil. Além do valor, causa desconfiança a forma como o presente foi transportado: escondido nas malas de um ministro e de seu assessor. Portanto, há motivos de sobra para desconfiar de que estamos diante de um caso de propina. Omar Aziz, eleito presidente da Comissão de Transparência e Fiscalização do Senado, anunciou que investigará isso. Ele promete passar um pente-fino em todos os negócios feitos pelo governo Bolsonaro com o mundo árabe, especialmente com fundos de pensão ligados ao governo saudita. Há desconfiança também em relação à venda de uma refinaria da Petrobras a um fundo de investimentos dos Emirados Árabes. Segundo a Federação Única dos Petroleiros, a refinaria foi vendida pela metade dos valores de mercado. A venda foi concluída um mês após a comitiva voltar do Oriente Médio com as malas cheias de joias.

Enquanto protagoniza mais um escândalo no Brasil, o ex-presidente segue morando nos EUA como um refugiado político não-oficial. Apesar de tantos episódios tão ou mais graves, o escândalo das joias é talvez o que tenha maior potencial para destruir de vez o que lhe resta de cacife político. Não há nada mais representativo do moralismo bolsonarista do que um ministro e um assessor tentando entrar no país com joias milionárias escondidas na bagagem.

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