A construção de um megaempreendimento de energia eólica ameaça soterrar sítios arqueológicos pré-históricos, secar nascentes de rios e devastar áreas de vegetação preservada entre o sertão da Paraíba e do Rio Grande do Norte – além de expulsar populações quilombolas e de agricultores familiares descendentes de indígenas ali estabelecidos.
Batizado de Complexo Eólico Pedra Lavrada, o projeto prevê a instalação de 372 aerogeradores, em aproximadamente 1,6 mil hectares, numa região conhecida como Seridó. Atualmente, o empreendimento aguarda a emissão da licença pela Superintendência de Administração do Meio Ambiente da Paraíba, onde tramita o processo, para iniciar as obras. O prazo estimado para conclusão da implantação do projeto é de 26 meses, a partir da obtenção da licença.
A empresa responsável é a Ventos de São Cleófas Energias Renováveis, um braço da Casa dos Ventos – gigante brasileira do setor, com 35% de capital da multinacional de combustíveis francesa TotalEnergies.
Oito cidades do Seridó fazem parte do projeto. No Rio Grande do Norte: Currais Novos, Acari, Carnaúba dos Dantas e Parelhas; e, na Paraíba, Pedra Lavrada, Nova Palmeira, Picuí e Frei Martinho.
As torres e acessos, quando instalados, vão ficar bem próximos de um conjunto de 40 sítios arqueológicos, visto como um dos principais patrimônios histórico-culturais do país, segundo o historiador e arqueólogo Joadson Vagner Silva, que já prestou consultoria para outros projetos eólicos. São lugares de vestígios únicos no mundo, com a presença de pinturas e gravuras rupestres em grutas, fragmentos de rochas lascadas utilizadas como ferramentas, restos de fogueiras e sepultamentos de populações ancestrais que ali viviam. Um dos restos ósseos mais antigos é de uma criança e remonta a aproximadamente 9,4 mil anos, de acordo com pesquisadores que fizeram as escavações no local.
Uma análise dos bens arqueológicos indica que, naquele território, houve densas populações indígenas nômades, divididas em pequenos grupos que viviam com base na caça e na coleta de frutos e plantas silvestres.
“O modo de vida deles era baseado em acampamentos e um dos principais vestígios deixados por eles são fogueiras, muito presentes aqui. A mais antiga identificada tem 3.600 anos. Isso tudo está em risco agora. O que causa estranheza é que a empresa não identificou nenhum desses vestígios”, afirmou Silva.
Ele faz parte de um grupo de 49 membros da sociedade civil que se uniram para tentar barrar o projeto como foi apresentado. Eles redigiram uma nota técnica, enviada ao Ministério Público Federal, às promotorias estaduais, a órgãos do governo dos dois estados envolvidos e a institutos como o Iphan e o Incra na qual apontam uma série de falhas e inconsistências no estudo e no relatório de impacto ambiental apresentados pela Ventos de São Cleófas.
‘O que nos preocupa é a proximidade do empreendimento com essas áreas. O patrimônio arqueológico é um testemunho, uma página de um livro da história de toda a população brasileira’.
Uma das inconsistências diz respeito justamente à falta de identificação dos sítios, especialmente das fogueiras, todas ignoradas pela empresa no primeiro estudo apresentado. No relatório de avaliação de impacto entregue ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, a companhia cita apenas a Cachoeira do Pedro, um dos 40 sítios arqueológicos do local. E, nessa única indicação, a distância entre o sítio e a área diretamente afetada pelo empreendimento está errada. A empresa indica que a localidade fica a 1,2 quilômetro do parque, quando fica bem mais próximo, a 290 metros, de acordo com os pesquisadores do Seridó Vivo.
“O que nos preocupa é a proximidade do empreendimento com essas áreas. O patrimônio arqueológico é um testemunho, uma página de um livro da história de toda a população brasileira”, defendeu Silva.
Outros sítios ignorados pela empresa ficam ainda mais próximos da área afetada, como o Casa de Pedra e o Sítio Pote, respectivamente a 40 metros e 60 metros da área onde serão instalados os aerogeradores. Há ainda um conjunto de 20 sítios pré-coloniais, que circundam os riachos do Bojo e Olho d’Água, por onde se pretende abrir uma estrada exclusiva para a operação do parque eólico. O sítio Casa Santa, por exemplo, um dos mais importantes da região, está situado a 530 metros de uma área reservada para três torres de produção de energia, segundo o arqueólogo Silva.
Próximos a essas localidades está o cemitério das Cruzes, um lugar de peregrinação no qual foram sepultadas vítimas de uma epidemia de cólera, no fim do século 19. E vizinho a ele, a 650 metros do complexo eólico, está o sítio Pedra do Alexandre, um cemitério indígena pré-histórico com registros de enterramentos feitos ao longo de 8 mil anos. Os possíveis danos a esses locais também estão ausentes no estudo de impacto elaborado pela Ventos de São Cleófas.
Os sepultamentos indígenas, comuns em todo o Seridó, rememoram um grande massacre cometido entre os séculos 17 e 18, que ficou conhecido como Guerra dos Bárbaros. Os pesquisadores julgam ser um dos episódios de resistência nativa contra a invasão portuguesa, com um fim comum à história de colonização no país: a escravização e a consequente dizimação das populações indígenas.
“Esse patrimônio arqueológico é o testemunho da grandeza de todos esses povos originários que existiam na área e deve ser visto com respeito e consideração a essas populações”, explicou Silva.
O arqueólogo se diz bem preocupado com as as grandes explosões necessárias para a abertura das estradas e das covas onde serão construídas as bases dos aerogeradores, equipamentos com 105 metros de altura por 150 metros de diâmetro, cada um.
“Nos estudos de impacto ambiental e na audiência pública não foi mencionada a autorização para os explosivos. Mas as explosões, em áreas montanhosas com rocha, são imprescindíveis em um empreendimento dessa envergadura”, alertou o arqueólogo.
Procurada, a Casa dos Ventos disse que não há risco de soterramento de bens arqueológicos, “visto que o projeto está sendo concebido a uma distância segura dos sítios identificados, o que será ratificado tempestivamente dentro do trâmite do licenciamento arqueológico junto ao Iphan”.
Afirmou ainda que as atividades de detonação e movimentação de terra serão assistidas por programas ambientais seguindo “as melhores práticas da engenharia”. Questionada sobre a ausência dos sítios no relatório, a Casa dos Ventos informou que trata-se de um “arranjo preliminar” seguindo “a legislação vigente para esta etapa de análise”. A empresa reforçou que não identificou nenhum sítio na área diretamente afetada pelo projeto e que novos estudos serão feitos posteriormente com assistência do Iphan.
Patrimônio natural
A s serras buscadas pelo empreendimento contradizem o senso comum sobre a Caatinga, de que por lá só existem terra seca e pequenos arbustos retorcidos. O trecho de interesse da Ventos de São Cleófas é predominantemente úmido, esverdeado e possui um ecossistema rico em plantas e animais em risco de extinção.
Nesse local, a empresa planeja desmatar 1.477 hectares de vegetação nativa. A supressão vegetal nessa área para instalação do parque eólico pode decretar a morte da biodiversidade, transformando essa faixa preservada em deserto.
“A grande preocupação é que a Caatinga acabe desaparecendo”, explicou o biólogo Damião de Oliveira, mestre em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e também integrante do projeto Seridó Vivo.
Embora a preservação vegetal conserve a umidade nas serras, o Seridó está no semiárido brasileiro e, naturalmente, sofre com a falta de chuvas. A média pluviométrica da região é de no máximo 600 milímetros ao ano – para fins de comparação, é a mesma quantidade de água registrada em três dias durante a trágica tempestade no litoral norte de São Paulo, no fim de fevereiro, de acordo com o Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura da Unicamp.
Grandes empreendimentos, como o Complexo Pedra Lavrada, demandam muita água local para a construção das estruturas dos aerogeradores e das estradas. Para suprir a falta de chuva, a Ventos de São Cleófas sugeriu a perfuração generalizada de poços artesianos. O problema é que a água subterrânea é um bem raro na região, já que, além da estiagem, a estrutura rochosa do Seridó naturalmente dificulta a infiltração da água no solo.
’A história dessas pessoas está inscrita nos territórios. Se você tira o território, não tem mais história, não tem mais memória, não tem mais marcas’.
Além do risco de secar os rios, existe a possibilidade de contaminar a água com o óleo que cai dos aerogeradores e do maquinário, conforme a própria empresa prevê no estudo ambiental. O documento indica que o projeto terá interferência direta em 16 cursos d’água que abastecem a bacia do rio Piranhas-Açu, a principal fonte hídrica das comunidades ali instaladas.
O parque também ameaça o movimento de aves que migram para a região nos períodos chuvosos em busca de refúgio para fazer seus ninhos. Além disso, aves de rapina são comumente vítimas das pás dos aerogeradores em parques eólicos já em funcionamento.
Populações de morcegos também podem ser drasticamente afetadas com a chegada do complexo – tanto pelo risco de colisão quanto pela destruição do habitat. Sem eles, a engrenagem da Caatinga não gira.
“Os morcegos realizam uma parte significativa da polinização de muitas plantas do bioma. Quanto mais empreendimentos, mais impacto a essas populações. Isso pode levar a um colapso desse ecossistema”, afirmou o biólogo.
A Casa dos Ventos diz que realizou estudos suficientes para avaliação “de todos os impactos ambientais para o empreendimento”. A empresa afirmou que o estudo foi conduzido por mais de 30 profissionais, ao longo de três anos de trabalho, e que, por meio dele, foram propostos 31 programas ambientais e ações de para garantir a viabilidade do projeto.
Síndrome de turbina e ameaça aos quilombolas
Às margens da área prevista para o complexo eólico, estão comunidades quilombolas e de agricultores familiares com ascendência indígena, em ao menos seis dos oito municípios envolvidos no projeto. Muitas comunidades não são tituladas pelo Incra, embora sejam reconhecidas por si próprias e pela tradição oral que se manteve dos antepassados. De acordo com os pesquisadores do Seridó Vivo, muitas não foram consultadas adequadamente sobre o projeto, conforme prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, a OIT.
“O relatório de impacto ambiental só conta as comunidades cadastradas no Incra. Como poucas comunidades são tituladas, eles não levam em conta quase nenhuma comunidade quilombola, nem os descendentes de indígenas. Eles tentam apagar que existem comunidades tradicionais que vão ser afetadas”, criticou a antropóloga Julie Antoinette Cavignac, professora da Universidade Federal do Rio Grande Norte.
Alguns aerogeradores estão projetados para ficar distantes 400 ou 500 metros das casas dos quilombolas, o que pode comprometer as estruturas dos imóveis e gerar distúrbios mentais relacionados ao constante barulho das hélices. O principal deles é conhecido pela comunidade científica como “síndrome da turbina”, que gera dores de cabeça, náuseas, raiva, ansiedade, insônia e falta de concentração.
Os efeitos, de acordo com Cavignac, tendem a expulsar gradualmente as populações tradicionais do território .“A história dessas pessoas está inscrita nos territórios. Se você tira o território, não tem mais história, não tem mais memória, não tem mais marcas”, analisou a antropóloga.
Uma das comunidades diretamente afetadas, não reconhecida pelo Incra, é a Comunidade Negra Serra do Abreu, onde a Ventos de São Cleófas planejou abrir uma estrada. Lá, atualmente, vivem 34 famílias.
Diana Barbosa dos Santos, presidente da Associação Comunidade Negra Serra do Abreu, contou que, há alguns anos, representantes da Casa dos Ventos começaram a visitar a comunidade e a apresentar o projeto eólico como se fossem mil maravilhas.
“Procuraram meu sogro diversas vezes para ele assinar documentos. Ele assinou vários papéis sem ler, porque o estudo dele é pouco. Diziam que iam pagar alguma coisa, mas nunca recebeu um centavo”, detalhou.
Para Maria das Neves Valentim, articuladora do Fórum Mudanças Climáticas do núcleo do Rio Grande do Norte, a possível repulsão das comunidades tradicionais é a continuidade de uma história de exploração e descaso no semiárido nordestino.
“A natureza desse projeto é a atualização, com a falácia da sustentabilidade, do velho colonialismo extrativista, como foi com a cana-de-açúcar. Ou seja, somos um quintalzão. Agora, nós somos uma fazenda para produzir energia”, comparou.
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