Na manhã de terça-feira, 14, a Meta fez um anúncio. Em seu blog, a empresa confirmou: dez mil funcionários serão demitidos ao longo dos próximos meses. A empresa ainda vai congelar a contratação em cinco mil vagas que estão abertas. O texto foi enviado aos funcionários da companhia por Mark Zuckerberg e diz que as medidas serão tomadas para que a Meta, dona do Facebook, Instagram e WhatsApp, se torne “uma empresa de tecnologia melhor” e melhore seu “desempenho financeiro em um ambiente difícil”.
A demissão em massa anunciada não é a primeira da companhia, e o aviso chega aos funcionários pouco mais de quatro meses após a Meta mandar embora 11 mil pessoas – 13% da força de trabalho total, à época –, em um movimento que começou no fim de 2022 e ainda não mostra sinais de estar terminando.
A era das demissões em massa em empresas de tecnologia – responsáveis por contratar pessoas consideradas as melhores cabeças do mundo em escritórios modernos e cheios de benefícios – começou no ano passado, e é um choque de realidade em um setor que se aproveitou como ninguém de vender promessas e especulação.
A era das demissões começou pelos Estados Unidos no ano passado. Em todo o ano de 2022, o mercado de tecnologia do país demitiu 161 mil pessoas. Agora, só em janeiro e fevereiro de 2023, já foram 119 mil, segundo levantamento do Layoffs.fyi, um site colaborativo que mapeia informações de demissões em massa, checa a veracidade e compila os números em uma planilha aberta ao público.
Estão lá demissões como a da Meta e da Amazon, que demitiu dez mil pessoas de uma vez, mas também de startups menores e até alguns dados sobre o Brasil. Roger Lee, criador da plataforma, não esperava que suas informações, utilizadas por veículos como a Bloomberg e o Wall Street Journal, servissem à comunidade. “Eu criei o Layoffs.fyi para alertar sobre as demissões nas empresas de tecnologia e ajudar os funcionários demitidos a encontrar uma nova empresa”, falou ao Intercept. “Acontece que o site também se tornou um recurso útil para a comunidade de tecnologia em geral”.
Lee não foi o único a ter essa ideia. O Layoffs Brasil usa o mesmo sistema de planilhas e contabilizou milhares de demissões nos últimos meses no país. Até o começo de março, cerca de três mil pessoas enviaram suas próprias informações, como gênero e nível de senioridade, aos criadores da plataforma. Com os dados, a equipe analisou que, na maioria dos setores demitidos pelas empresas, as mulheres são as mais afetadas. Dos 17 setores compilados pela equipe, mulheres são mais de 50% das demissões.
O Intercept conversou com 107 brasileiros afetados por demissões em massa entre o segundo semestre de 2022 e fevereiro de 2023. No Brasil, conversamos com funcionários e ex-funcionários do Enjoei, OLX, Buser, XP, C6, WillBank, Kavak, AmBev, Pier, Alice, Quinto Andar, Arco Educação, Wildlife Studios, Afterverse, CESAR, Sensedia, Digital House, IdWall, iCarros, Domestika, ClickSign, Toptal e Yahoo Brasil, além de colaboradores da Meta, Google e Twitter.
Foram ouvidos estagiários, funcionários plenos e funcionários seniores, de cargos altos ou gerência, principalmente no Brasil. Para manter a segurança das pessoas que contaram suas histórias, que têm medo de ficar mal vistas no mercado de trabalho, além de sofrerem represálias legais, os nomes e os cargos, assim como informações específicas sobre o trabalho, serão mantidos em sigilo caso permitam a identificação da fonte.
Mova-se rápido e quebre coisas
No último aviso, a Meta deu a notícia do corte primeiro aos funcionários, depois ao público. Mas, quatro meses antes, não foi por Zuckerberg que os funcionários em todo o mundo souberam que seus empregos estavam em risco. Naquela quarta-feira, 9 de novembro de 2022, eles estavam em alerta. Depois de dois dias de silêncio total pelos diretores e RH, funcionários da empresa no Brasil e nos Estados Unidos começaram a receber e-mails informando seu desligamento. Por aqui, os cortes começaram às 8h da manhã. O passo-a-passo seguiu exatamente o que o jornal americano Wall Street Journal disse, três dias antes, que aconteceria.
No domingo, 6 de novembro de 2022, o veículo havia publicado uma reportagem rica em detalhes afirmando que haveria uma demissão em massa no Facebook. A precisão da publicação levou funcionários brasileiros a se perguntarem se a fonte para as informações não seria apenas interna, mas também oficial – ou seja, o próprio Facebook. “Não é normal você dar pitacos com esse nível de detalhe”, disse ao Intercept Pedro, um dos ex-funcionários demitidos no Brasil. E a postura da Meta ajudou a colocar uma pulga atrás da orelha. “Nesses dois dias, a gente ficou esperando algum comunicado, algo como ‘gente, estão rolando algumas fofocas, não acreditem em nada de fora da Meta’, mas eles ficaram caladinhos”, completou o funcionário.
O Facebook não costuma ser uma empresa que demite seus funcionários. Aos trabalhadores, inclusive, Mark Zuckerberg havia dito em um on-hands – reunião em que os diretores da empresa passam comunicados e respondem perguntas dos colaboradores – que a empresa se tornaria mais enxuta com o congelamento de contratações e diminuindo seu quadro de funcionários organicamente, com demissões pontuais por desempenho.
‘Oi, hoje é meu primeiro dia de licença-paternidade e chegou um e-mail dizendo que estou demitido’
Pedro havia sido recrutado de outra empresa para o Facebook e trabalhava lá há pouco tempo. Segundo ele, seu time desempenhava bem e constantemente batia metas – por isso, pensou, estavam todos salvos. Não estavam. Às 8h05, ele largou seu treino às pressas e correu para o computador. Uma mensagem recebida por um colega, dizendo ter sido demitido, o colocou em alerta. Ele passou alguns minutos atualizando seu e-mail até uma nova mensagem aparecer.
“Uma atualização importante para a organização” era o assunto do e-mail enviado por Zuckerberg para todos os funcionários. A empresa confirmou as informações do Wall Street Journal e descreveu os benefícios que ofereceria aos demitidos, o “severance package”. Comum nos Estados Unidos, em que leis trabalhistas são escassas, o severance é um pacote de benefícios que podem incluir salários extras e planos de saúde estendidos. Este e-mail, padrão para todos, foi um aviso – os funcionários efetivamente demitidos receberiam uma segunda mensagem. Ela não demorou a chegar.
Neste segundo e-mail, houve quem fosse demitido imediatamente, mas também quem recebesse um ambíguo texto dizendo que nada aconteceria enquanto não voltassem a trabalhar – este, enviado especificamente para quem estava em algum tipo de licença, incluindo as de maternidade e paternidade. No Brasil, não é comum empresas demitirem funcionários afastados. No caso de demissão de uma mulher grávida, por exemplo, a empresa deve pagar salários referentes aos meses restantes de gestação e mais cinco salários referentes à estabilidade no emprego garantida pela licença-maternidade. O mais comum, então, é esperar o retorno do funcionário, que não estará mais resguardado pela estabilidade garantida pela CLT, e realizar a demissão. Foi exatamente isso que a Meta fez, segundo os funcionários que ouvimos.
Nos Estados Unidos foi ainda pior. “Horas antes das demissões, entrei em um grupo de WhatsApp dos funcionários dos Estados Unidos e passei o dia acompanhando as mensagens”, contou Pedro. “É de chorar. ‘Oi, hoje é meu primeiro dia de licença-paternidade [na Meta, o período de licença-maternidade e licença-paternidade é igual] e chegou um e-mail dizendo que estou demitido’. ‘Oi, estou grávida de três meses’. ‘Oi, estou grávida de seis meses’. ‘Oi, eu estou em licença-maternidade’. Lá não tem CLT, mas a Meta não era uma empresa melhor?”.
Nenhum funcionário recebeu uma justificativa definitiva para a sua demissão, e o cenário depois dos e-mails foi definido como uma “cena de massacre”, segundo Juliana, outra funcionária da Meta no Brasil. “A gente tem um sistema que é como um Facebook interno, e íamos atualizando para ver o organograma. Parecia aquela série Round 6, em que as pessoas desaparecem”, ela disse. Logo após os e-mails, todos os acessos eram cortados. Segundo o comunicado de Zuckerberg, essa decisão foi tomada para evitar o acesso dos ex-funcionários a informações sensíveis.
Funcionários ouvidos relataram pressão – o termo usado por um deles é “leve ameaça” – pela assinatura dos papéis.
Depois do e-mail de demissão, os funcionários receberam os documentos de encerramento de contrato de trabalho para assinatura. No meio deles, estava o severance package. Zuckerberg prometeu 16 semanas de salário aos funcionários, além de duas semanas adicionais por cada ano trabalhado. Também incluía o plano oferecido a extensão do plano de saúde por seis meses. No Brasil, as promessas não foram inteiramente cumpridas, segundo os funcionários.
As informações eram referentes ao aplicado nos Estados Unidos. Apesar de Zuckerberg dizer em seu comunicado que localmente as condições seriam equivalentes, o que foi oferecido aos funcionários brasileiros passou longe. Com FGTS, multa de 40% e rescisão a pagar, valores que a Meta não arcaria nos Estados Unidos, a empresa possivelmente apenas complementou o valor restante entre o prometido e o que era direito dos funcionários. Apesar desta ser a conclusão a que chegaram os dois funcionários ouvidos, não existem informações oficiais sobre a discrepância no cálculo. A extensão do plano de saúde também foi adaptada ao contexto brasileiro. Em vez dos seis meses prometidos, os funcionários daqui receberam apenas três, segundo me contaram.
O bônus estava atrelado à assinatura de um documento, ao qual o Intercept teve acesso. Ao assinar, o ex-funcionário concordava com os valores oferecidos pela Meta como complemento aos benefícios legais, mas também concordava em não processar a empresa e que manteria sigilo sobre os termos de sua demissão. Ao não assinar, o ex-funcionário receberia apenas o valor determinado por lei. A empresa definiu um prazo para a devolução do documento assinado, e ambos os funcionários ouvidos relataram pressão – o termo usado por um deles é “leve ameaça” – pela assinatura dos papéis.
Insatisfeitos com o não-cumprimento do que Zuckerberg alardeou, ex-funcionários reclamaram com o RH, mas tudo o que conseguiram foi igualar o tempo de duração do plano de saúde com o odontológico.“É como se os países que não são os Estados Unidos fossem uma segunda classe”, desabafou um deles.
Pressão de investidores
Inspirado na demissão da Meta, o TCI, um fundo de investimentos da Alphabet, controladora do Google, pediu a Sundar Pichai, CEO da gigante, a redução no número de funcionários da empresa. Com a desculpa de alteração de prioridades, o Google atendeu o pedido e demitiu cerca de 12 mil funcionários. O anúncio ocorreu no fim de janeiro, mas as demissões no Brasil só aconteceram em 10 de fevereiro. Nesse meio tempo, os funcionários foram largados à própria sorte.
“Estamos vivendo momentos de extrema tensão até que as decisões sejam tomadas”, me disse Antônio, funcionário do Google, dois dias antes das demissões acontecerem. “Para uma empresa que sempre se pautou no bem-estar e na saúde mental de seus funcionários, sabemos de muitos que estão passando por momentos de ansiedade generalizada e pânico”. Não ficou claro aos funcionários, nem mesmo nas justificativas das demissões, como a empresa chegou ao número de pessoas que seriam demitidas em cada equipe e em cada país.
Os desligamentos aconteceram na manhã de uma sexta-feira. Mais de 60 pessoas foram mandadas embora de uma vez, cerca de 4% dos funcionários no Brasil. Segundo Antônio, não era possível saber quem foi demitido ou não. Para tentar descobrir, os funcionários se organizaram em uma força-tarefa para enviar mensagens uns aos outros em chats internos, coordenando a ação pelo WhatsApp. Os que não recebessem as mensagens estariam sem acesso ao sistema, logo demitidos.
‘A competição por funcionários talentosos na indústria da tecnologia diminuiu significativamente, o que permite que a Alphabet reduza a remuneração por funcionário.’
Os funcionários desligados apenas receberam um e-mail em seu endereço de e-mail pessoal, pois haviam perdido acesso às ferramentas de trabalho. O funcionário que falou conosco não foi demitido, mas se compadeceu pelos seus companheiros de trabalho, inclusive de seu próprio time, que foram dispensados. “Foi frio e impessoal”, ele resumiu.
No mesmo dia em que anunciou as demissões, Pichai recebeu outra correspondência do TCI. Nela, o fundo diz estar animado em ver que o Google “agora está tomando algumas medidas para dimensionar corretamente a base de custos”, mas que “a administração precisará ir além”. Apesar de elogiar o movimento, o TCI acredita que mais 20% do número total de funcionários deveria ser cortado: “a decisão de cortar 12 mil postos de trabalho é um passo na direção certa, mas não reverte nem o fortíssimo crescimento no quadro de funcionários de 2022”. O fundo sugere que o Google retorne ao contingente de funcionários que possuía no fim de 2021.
A carta do TCI aproveita a oportunidade para reforçar que demitir não é o suficiente – é necessário também que o Google reduza a média salarial. “A competição por funcionários talentosos na indústria da tecnologia diminuiu significativamente”, a carta diz, “o que permite que a Alphabet reduza a remuneração por funcionário”.
“Eles mesmos criaram esse mercado, onde sempre contrataram os melhores dos melhores, via processos seletivos de infinitas entrevistas onde avaliam tudo”, afirma Antônio. “A cobrança também é alta, com processos rigorosos de performance duas vezes ao ano e muita, muita pressão para você atingir a meta. Logo, os salários oferecidos eram uma retribuição não só por isso, mas para manter talentos fora da concorrência”. “Por que cortar pessoas e não benefícios?”, ele questionou.
Procurado, o Google não respondeu nossas perguntas e se limitou a enviar o link do comunicado feito pelo CEO da empresa em 20 de janeiro, quando as demissões foram anunciadas, intitulado “uma difícil decisão para nos preparar para o futuro”.
Primeiro dos gigantes a inaugurar a onda de demissões em massa, o Twitter impactou severamente seus funcionários logo após a venda da empresa, em outubro de 2022. Elon Musk prometeu aos investidores que demitiria 75% dos funcionários da rede social, segundo informações reveladas pelo jornal americano The Washington Post. Uma semana depois ele voltou atrás, e decidiu que demitiria apenas metade dos funcionários.
Os impactos da compra são sentidos pelos usuários da plataforma, que virou um ambiente de experimentação das vontades do bilionário. O Twitter passou por instabilidades técnicas, perdeu funções básicas e de segurança, como autenticação por duas etapas por SMS, e tenta empurrar goela abaixo dos usuários uma versão paga que garante um selinho azul de verificação ao lado do nome – um prato cheio para golpistas e disseminadores de notícias falsas.
Após efetivada a compra, não levou uma semana para que os funcionários perdessem seus trabalhos. Ouvimos Bruna, ex-funcionária do escritório brasileiro, sobre o ocorrido.
Pequena em relação aos demais escritórios, a sede em São Paulo estava ciente que demissões aconteceriam, mas não tinha certeza se seria afetada. Nas palavras da funcionária, ela achou que o momento seria “mais de se compadecer pelos outros”. Até que às 17h de quinta-feira, 3 de novembro, um aviso chegou por e-mail. A mensagem dizia que no dia seguinte todos os funcionários receberiam um comunicado às 10h. Se o e-mail chegasse no endereço de trabalho, nada havia acontecido. Se o recebimento fosse no e-mail pessoal do funcionário, ele estava sendo demitido. Ela não precisou esperar até a manhã de sexta-feira para saber que estava fora.
Demorou uma semana até o RH entrar em contato e confirmar sua demissão.
Ainda na quinta-feira, trabalhando até mais tarde, o e-mail dela se desconectou automaticamente enquanto escrevia uma mensagem. Pelo celular também não era possível acessar. Ao tentar entrar na ferramenta de mensagens de trabalho, o acesso também falhou. Ela avisou sua equipe, e todos os funcionários começaram a checar seus acessos. Antes mesmo do anúncio oficial, quem havia sido demitido já sabia. Às 10h o e-mail de demissão chegou em seu e-mail pessoal, mas não haviam informações além do que ela já sabia. Demorou uma semana até o RH entrar em contato e confirmar sua demissão.
No mesmo dia em que as demissões aconteceram, Elon Musk anunciou, em um tuíte, que os funcionários impactados pela demissão no Twitter receberiam um “severance package” de três meses de salário. O pacote de benefícios também incluiria as ações da empresa que os funcionários tinham direito e a extensão do plano de saúde ou um valor em dinheiro correspondente. A funcionária que ouvimos afirma não ter recebido nada além do que é garantido pela lei trabalhista brasileira. Reportagem publicada em janeiro de 2023 na revista americana Wired aponta que, nos Estados Unidos, os funcionários também ficaram com as mãos abanando.
Tirando o coletinho da empresa
“Aqui sempre teve a cultura de que se vira sócio. Aquela coisa mente de dono, sabe? A XP é provavelmente uma das empresas com essa cultura mais forte”. Foi assim que Fernando, funcionário da XP, corretora de investimentos brasileira, descreveu a cultura organizacional da empresa para o Intercept. Ele segue empregado, mas acompanhou as demissões em massa que a empresa vem promovendo desde novembro de 2022.
A XP elevou o conceito de “vestir a camisa da empresa” ao sentido literal, e é famosa por seus coletinhos pretos com o logo branco e com a bandeira do Brasil. Na hora da demissão, porém, não bastou vestir o colete da empresa.
Entre os demitidos, conta Fernando, havia pessoas com alta performance e até funcionários-sócios, que possuem participações na empresa pelo seu desempenho. “Demitiram pessoas que estavam apostando e dando o sangue para chegar a ser sócios para manter o lucro dos lá de cima”, ele analisa. Outro funcionário que ouvimos concorda com a análise. Demitido em janeiro, ele afirma ter recebido uma avaliação positiva do seu chefe, inclusive com prospecção de uma promoção, apenas horas antes de ser mandado embora com a justificativa de “corte de custos e desalinhamento cultural”.
Outro funcionário ouvido pelo Intercept cogita que as demissões podem ter começado por quem ganhava muito acima da faixa de salário de seus cargos, mesmo que isso vá contra o discurso da empresa de que “só depende de você”. Independente de qual seja o real motivo, como é comum em empresas que refletem a Faria Lima, o discurso meritocrático da XP só existe enquanto não afeta os lucros.
‘A gente ficava tenso se na outra semana seríamos um dos desligados.’
Depois de iniciadas as demissões, ainda segundo o funcionário, o CEO da companhia, Thiago Maffra, teria dito em uma reunião geral com os funcionários que “cada um deveria trabalhar por dois” e que quem não estivesse disposto a isso não teria lugar na empresa. “Era normal começar a trabalhar às 9h e parar 19h30, 20h todos os dias. E o bônus não era nada transparente, então ninguém sabia se o bônus de alta performance era realmente maior do que se você só fizesse sua carga de trabalho normal”, disse um dos funcionários demitidos. Segundo ele, os empregados costumavam trabalhar até durante as férias, com a anuência do RH da empresa.
Além do discurso de Maffra, os times também teriam passado a ser pressionados a buscar mais redução de custo nas operações. “Não tem nenhuma fala explícita dizendo que se não reduzirmos custos será reduzido em pessoas, mas esse é o entendimento que todos estamos tendo”, um dos funcionários relata.
Segundo ele, em vez de fazer uma grande demissão, a empresa fez levas de demissões menores, que chamaram menos atenção. Isso fez com que o clima no escritório ficasse tenso, relatou o funcionário entrevistado. “Como aconteceram várias ondas, a gente ficava tenso se na outra semana seríamos um dos desligados. O sentimento parece ser de que pausaram as demissões, já foi o que tinha que ir, mas que podem ocorrer mais se as metas de redução de custos não forem batidas ao longo do ano”, disse.
Do encantamento ao corte
De acordo com o levantamento do Layoffs Brasil, 647 empresas foram responsáveis pelas demissões no Brasil, e as áreas com mais demissões foram em fintechs, edtechs, foodtechs, healthtechs e e-commerce. Os nomes, popularizados em inglês, na verdade se referem a setores amplamente conhecidos pela população: bancos, escolas, empresas de delivery, planos de saúde e lojas, respectivamente.
Os trabalhadores de tecnologia demitidos, portanto, não são necessariamente programadores ou funcionários de TI. Há atendentes, analistas, redatores, designers, vendedores, publicitários. A tecnologia usada para designar os trabalhadores não diz respeito aos funcionários, mas às empresas.
Para Túlio Custódio, doutor em sociologia que analisa o trabalho freelancer na indústria criativa, essa fusão entre os funcionários e o mercado acontece pela necessidade das empresas, hoje, de se autoidentificarem como tecnológicas por usarem tecnologia, não por a fornecerem. Ele chama isso de “solucionismo tecnológico”, “a ideia de que você consegue resolver todos os problemas da sociedade a partir de uma evolução ou uma inovação tecnológica, baseada em um caráter de investimento privado”, em suas palavras.
‘As big techs, pelo seu caráter, são empresas voltadas para o crescimento do capital, e não do trabalho.’
Para Custódio, o discurso de solucionismo tecnológico cria uma expectativa ao redor dessas empresas. “A forma como elas trabalham sua imagem é muito consoante com a ideia de liberdade, de autonomia, que é de fato algo que as pessoas têm cada vez mais demandado”, ele diz. “Essas big techs, pelo seu caráter, são empresas voltadas para o crescimento do capital, e não do trabalho. Isso significa que todas as decisões de negócio, inclusive a forma como elas empregam trabalho, sempre tem esse caráter móvel. É preciso impulsionar determinada ferramenta, determinada coisa? Contrata um monte de gente. É preciso reduzir? A primeira coisa que se enxerga é exatamente os profissionais, porque o trabalho nesse espaço não é um investimento, ele é um custo”, analisou.
A situação é ainda mais agravada no Brasil, inserido na estrutura do capitalismo periférico. Isso, o sociólogo observa, aprofunda as lacunas entre o que os trabalhadores esperam viver e o que de fato viverão. Grandes empresas de tecnologia, como Meta, Google e Twitter, não concentram suas tomadas de decisão no Brasil, mesmo que as decisões sejam sobre a atuação da empresa no país. Foi assim com as demissões: nas três empresas, não apenas as ordens de demissão, como também os nomes de quem seria demitido, vieram das matrizes, nos Estados Unidos.
Os funcionários, contratados aos montes para garantir a expansão que as empresas de tecnologia conquistaram durante a pandemia, são agora dispensados para as empresas reorganizarem o fluxo de dinheiro. Mas os caixas não estão exatamente no vermelho. “No início do ano passado, as demissões estavam concentradas em startups menores que precisavam cortar custos emergencialmente. Hoje, após o aumento na taxa de juros dos Estados Unidos – que subiu de 0,25% em março de 2020, no início da pandemia, para 4,75% em fevereiro de 2023 –, até mesmo empresas bem consolidadas recorreram às demissões por verem declínio na demanda, em seus ganhos e no preço de suas ações”, diz Roger Lee, do Layoffs.fyi.
Em 15 de novembro de 2022, o memorando do fundo de investimentos TCI para a Alphabet afirmava, por exemplo, que no terceiro trimestre de 2022, o último com dados consolidados na data em que a mensagem foi enviada, o lucro da companhia havia crescido 6%. Mas, para os investidores era pouco, já que o grupo estava crescendo em um ritmo anual de 23%. “Big techs são empresas que nascem de um capital de investimento e atendem, portanto, a interesses muito específicos de acionistas”, afirma Custódio.
Enviamos perguntas sobre as demissões para Meta e XP, que não retornaram até o fechamento da reportagem. Também contatamos a sede do Twitter, que não possui mais uma equipe de comunicação no Brasil, e não fomos respondidos.
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