De abril de 2021 a março de 2022, 173 aeronaves que passaram pelo Aeroporto Internacional Juscelino Kubitschek, em Brasília, perderam o sistema de radionavegação, chamado de RNAV, durante os procedimentos de pouso ou de decolagem. Isso colocou em risco tripulantes e passageiros a bordo desses aviões, de acordo com relatório da Agência Nacional de Telecomunicações, a Anatel. Em documento obtido pelo Intercept, a Aeronáutica classificou o problema como uma “ameaça real e permanente à segurança dos voos”.
Nesse mesmo relatório, a Anatel apontou explicitamente que o problema foi provocado por quatro bloqueadores de sinal de drones instalados pelo Gabinete de Segurança Institucional, o GSI, que interferiam diretamente nas aeronaves. A pasta era comandada à época pelo General Augusto Heleno, que, assim como o então presidente Jair Bolsonaro, se mostrava paranóico com a possibilidade de espionagem ou ataques de adversários políticos em Brasília. Por isso, ordenaram que dois bloqueadores fossem colocados no Palácio do Planalto, local onde Bolsonaro despachava; um no Palácio da Alvorada, residência oficial da Presidência; e outro no Palácio do Jaburu, casa do vice, Hamilton Mourão.
Em entrevista ao lado do apresentador José Luiz Datena, em outubro de 2022, Bolsonaro chegou a comentar que só começou a utilizar as áreas abertas do Palácio do Alvorada quando o sistema para bloquear os drones foi devidamente instalado. “Nada usufruí desse governo, nem a piscina aqui do lado. E no começo eu não podia sair aqui fora, sabe por quê? Porque eu poderia ser assassinado por drones, até botar um sistema antidrones e eu poder frequentar um pouquinho aqui nas poucas horas de lazer que eu tenho. A vida que eu arrisco o tempo todo e vocês estão vendo”.
Os quatro aparelhos foram autorizados para a compra pelo GSI em março de 2020. Eram do modelo SCE 0100 – droneblocker e foram comprados da empresa SegurPro por R$ 2,4 milhões, de acordo com publicação no Diário Oficial da União. O governo federal especificou que os equipamentos precisavam ser capazes de “monitorar a área delimitada, detectando possíveis invasões de drones não autorizados, bem como permitir a neutralização do mesmo”. No edital de compra dos bloqueadores, o GSI explicitou que a aquisição dos aparelhos era para proteção “pessoal do Presidente da República” por ter uma agenda com “compromissos oficiais e privados, os quais envolvem cenários complexos e distintos, locais controlados ou não, e uma intensa interação com público variado”.
Somente após inúmeros testes, os técnicos da Anatel concluíram que o canal 3 desses bloqueadores degradava “o sistema de recepção das aeronaves nas rotas de pouso e decolagem do aeroporto de Brasília”. O relatório foi finalizado em 17 de maio de 2022 e, embora seja público, não foi abertamente divulgado à imprensa – diferentemente do que acontece com outros documentos semelhantes. No texto, a situação é descrita como “de grave urgência, com possível risco à vida”.
No informe que circulou internamente para os técnicos da Anatel, em maio de 2022, está escrito também que “a fiscalização constatou que o uso de bloqueadores de drones na faixa do GPS traz graves riscos à segurança da navegação aérea”.
O texto sinaliza que, “com a perda da capacidade RNAV a cerca de 60 km do aeroporto, além do risco à vida, ocorrem também sérios prejuízos financeiros aos agentes operadores dos serviços aeronáuticos do país, como as companhias aéreas, as administradoras dos aeroportos e a própria Aeronáutica, responsável pela operação do sistema RNAV”.
‘A fiscalização constatou que o uso dos bloqueadores traz graves riscos à segurança da navegação aérea’.
Conversei com um piloto de linha aérea da ativa e instrutor de simulador que explicou a importância do sistema RNAV nos aviões. Segundo ele, a radionavegação é como se fosse o Waze de um carro, fornecendo em tempo real a localização da aeronave durante o voo. Ela também auxilia na aproximação exata da pista, por meio de um sistema chamado ILS, no procedimento de pouso. De acordo com esse mesmo piloto, os aviões possuem outros sistemas de redundância e, caso o RNAV apresente algum defeito, é possível utilizar um substituto tanto para a localização durante o voo, quanto para o pouso.
Obtive acesso ao relatório do Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo, o Cindacta, detalhando todos os 173 problemas reportados por pilotos envolvendo o sistema RNAV durante o período mencionado no aeroporto de Brasília. O ápice de notificações aconteceu em 26 de novembro de 2021, com 24. Nos três dias seguintes, também foram registrados altos números – juntos, somaram 40 reclamações.
O Sindicato Nacional dos Aviadores, a pedido do Intercept, avaliou o relatório do Cindacta. Segundo eles, na maioria dos eventos relatados pelos pilotos, a perda do sinal e seus efeitos associados “foram temporários”. Isso porque “as funções e capacidades perdidas foram recuperadas imediatamente após a aeronave sair do alcance da fonte da interferência”.
A associação disse ainda que, por questão de segurança, é correto que os pilotos reportem imediatamente “qualquer interrupção observada, degradação ou desempenho anormal dos equipamentos”. E, em casos de problemas recorrentes, “na fase de planejamento e execução de voo, deve-se considerar a disponibilidade de procedimentos alternativos”.
Em 19 de janeiro de 2022, um avião perdeu o sistema RNAV durante o procedimento de pouso e precisou arremeter, ou seja, abortar o pouso durante o procedimento e para ganhar altitude para uma nova tentativa.
Segundo o piloto ouvido por mim, esses procedimentos provocam prejuízos econômicos às companhias, pois cada aeronave está programada para fazer uma decolagem e um pouso por viagem. A arremetida é considerada um novo procedimento de levantar voo, gerando mais gasto de combustível.
Em fevereiro de 2022, o Cindacta emitiu um comunicado suspendendo o uso do sistema RNAV no aeroporto Juscelino Kubitschek por considerar que as ocorrências registradas por pilotos na aproximação ou saída das aeronaves traziam riscos. Na nota, o centro afirmou ter tomado a medida por considerar seu “compromisso com a manutenção do mais alto nível de segurança operacional”.
“Tal suspensão perdurará até que a Anatel possa resolver essa situação com as empresas de telefonia celular que operam algumas antenas que possivelmente estão gerando tal interferência”, disse outro trecho, sem saber que os problemas eram provocados pelos bloqueadores de drones.
Por meio do ex-secretário executivo do Ministério das Comunicações, Fabio Wajngarten, nós tentamos contato com Jair Bolsonaro para comentar a aquisição dos bloqueadores de drones e os problemas causados na aviação. A resposta foi que o ex-presidente sequer devia saber desse assunto.
Localizei o general Augusto Heleno para falar sobre o relatório da Anatel. Ele disse que não tomou conhecimento do documento à época. Ofereci, então, para enviar o material para sua análise. A resposta foi: “Não tenho nada com isso. Já saí do GSI. Isso não é mais problema meu”. Heleno disse ainda que foi um erro fazerem publicações sobre os bloqueadores de drones, pois “são coisas de caráter secreto” e “ninguém divulga isso”. E arrematou afirmando que “não tem mais nada a falar”.
Solução difícil
A agência reguladora só começou a investigar o problema em 3 de novembro de 2021, após um pedido formal feito pela Aeronáutica, relatando constantes perdas de sinal reportadas pelos pilotos às torres de comando. No entanto, segundo consta no relatório, houve uma grande dificuldade de rastrear o sinal dos bloqueadores, pois eles eram intermitentes – os quatro pontos eram ligados e desligados à medida que o GSI identificava uma necessidade na agenda de Bolsonaro ou de Mourão.
Sem conseguir descobrir de onde vinha o problema, a Anatel foi paulatinamente desligando sistemas que supunha serem os causadores da interferência. Entre 16 de novembro e 20 de dezembro de 2021, a agência desligou parte do sistema de cinco estações de telecomunicações – quatro da Telefônica Vivo e uma da Claro.
Como os problemas persistiram, entre 21 a 25 de janeiro de 2022, os técnicos desligaram a mesma tecnologia em outras quatro estações de telefonia – mais três da Vivo e uma da Tim.
Nós procuramos as operadoras de telefonias citadas nesta reportagem para falar sobre os possíveis prejuízos causados pelo desligamento das estações, tanto para elas quanto para os usuários. Apenas a Telefônica Vivo respondeu, dizendo que segue as determinações da Anatel.
Em 15 de fevereiro, foi convocada uma reunião do Comitê de Infraestrutura e Segurança de Voo, com participação das empresas de aviação, da Agência Nacional de Aviação Civil, a Anac, da Anatel e da Aeronáutica. Esta última chegou a oferecer um avião de testes, por meio do Grupo Especial de Inspeção de Voo, para que técnicos do órgão de telecomunicação fossem a campo e tentassem identificar a razão da interferência.
Três dias depois, no entanto, a Anatel encaminhou um ofício solicitando o uso da aeronave, mas o apoio foi “informalmente negado” pela Força Aérea. O jeito foi pedir à Polícia Civil do Distrito Federal que cedesse seu helicóptero – o que foi acatado.
O problema só foi identificado quando a Anatel entrou em contato com a IACIT, que produziu os quatro bloqueadores usados pelo GSI. A empresa brasileira confirmou a venda, a especificação da frequência de uso (1.565 a 1.585 MHz) e a alta potência dos produtos.
Sem descobrir de onde vinha o problema, a Anatel foi desligando parte de estações da Claro, da Vivo e da Tim.
Os testes com helicópteros da polícia levaram a agência reguladora a concluir que os quatro bloqueadores estavam provocando a interferência e a recomendar o desligamento dos sistemas – o que foi atendido pelo GSI. No relatório consta que, depois que os aparelhos ficaram inativos, em 31 de março de 2022, “não houve mais relatos de reportes de interferências de degradação do sistema de GPS”.
Quando o problema foi efetivamente resolvido, o comando da Aeronáutica, por meio do engenheiro Coronel Antonio Sandro Paz, enviou um informe agradecendo a Anatel pelo serviço prestado. No documento, não há referência direta sobre a causa da interferência. Está escrito que foi feito “o desligamento de equipamento que estaria interferindo no sinal GPS”.
Mais adiante, a Aeronáutica reconhece a gravidade da situação dizendo que “as emissões interferentes na faixa do GPS constituem ameaça real e permanente à segurança dos voos” e que “os sistemas GNSS são de extrema importância” para o Aeroporto de Brasília.
Briga com o Iphan e liberação da Anatel
Antes mesmo de causar problemas na radionavegação das aeronaves, os bloqueadores de drone foram tema de uma extensa polêmica durante o ano de 2020, envolvendo o GSI e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan.
Originalmente, o GSI pretendia instalar grandes antenas de 20 metros nas lajes dos Palácios do Planalto, Alvorada e no Jaburu para detectar e neutralizar equipamentos aéreos. O Iphan, no entanto, barrou as modificações, alegando que os imóveis eram tombados e precisavam ser preservados com a arquitetura original desenhada por Oscar Niemeyer.
“A partir das simulações desenvolvidas, fica evidente que os equipamentos propostos impactam diretamente tanto os Palácios como bens tombados individualmente quanto o Conjunto Urbanístico de Brasília”, argumentou parecer técnico do órgão, divulgado em abril de 2020.
Pelas notícias publicadas à época, o GSI chegou a modificar o projeto, reduzindo o tamanho das antenas, e pressionou o Iphan a aceitar as alterações – o que, novamente, não foi atendido. Para tentar convencer o instituto, o General Heleno chegou a ordenar que se colocasse uma estrutura fake, em outubro daquele ano, para demonstrar aos técnicos do Iphan que não haveria impacto nos imóveis tombados.
Somente após quase um ano de embate, em abril de 2021, o GSI conseguiu vencer a queda de braço e instalar os bloqueadores, em tamanho reduzido em relação ao projeto inicial: no Planalto, com antenas de 1,5 metro; no Alvorada e Jaburu, de 5 metros.
O GSI de Lula disse que o sistema de drones ‘está operacional’ e ‘não há previsão de ser descontinuado’.
Em fevereiro deste ano, já no governo Lula, a Anatel aprovou uma resolução ampliando o uso dos bloqueadores de drones para a Presidência da República, o GSI, o Ministério da Defesa, o Ministério da Justiça, as Forças Armadas e a Abin – desde que aprovado pelo órgão e numa área previamente permitida. O governo petista se manifestou a favor da manutenção do sistema de defesa utilizado por Jair Bolsonaro.
Procuramos o GSI da gestão Lula, que disse que o sistema de drones no momento “está operacional” e “não há previsão de ser descontinuado”. Eles afirmaram ainda que não receberam o relatório da Anatel “apontando interferência na radionavegação das aeronaves em Brasília”, mas que seguem o que foi definido pelo órgão sobre uso dos equipamentos, com uma distância de 200 metros entre eles, conforme ato normativo.
Enviamos um e-mail para a Anatel na segunda-feira e falamos por telefone com a assessoria do órgão duas vezes no dia seguinte, mas não obtivemos resposta até a publicação desta reportagem.
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