Fabiana Moraes

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A militância da imprensa comercial que a Folha de S.Paulo ainda tenta esconder

Democracia forte requer objetividade jornalística qualificada, mas veículos poupam mercado financeiro, fardados e empresas em seus noticiários.

Democracia forte requer objetividade jornalística qualificada, mas imprensa comercial poupa mercado financeiro, fardados e empresas em seus noticiários.

Essa não é uma conversa para jornalista. É um assunto que todo dia cruza a vida de todas e todos nós, sejamos professoras, desembargadoras, vendedoras de pipoca, estudantes, atendentes de call center, empresárias. Ela dá conta da cobertura jornalística pela qual sabemos que a gasolina baixou ou disparou, se as praias estão boas para o banho, quem está na frente das pesquisas nas eleições, que famoso casou com quem, qual a situação de determinada comunidade, o que será votado no Congresso Nacional, etc.

Para isso, profissionais da imprensa – diferentemente da maioria dos influencers, por exemplo – precisam apurar, entrevistar, pesquisar, checar dados, escrever de maneira que a notícia chegue a mais pessoas e se responsabilizar pelo que divulgam. São regras vitais para o jornalismo e, sem elas, a profissão não se sustenta: todas estão sob o guarda-chuva da chamada objetividade. E essa palavra, embora não seja o sangue de Jesus, tem poder.

A questão é que cada uma dessas ações são escolhas. E atrás delas não estamos apenas nós, repórteres e editoras, mas os meios para os quais trabalhamos. Como tais escolhas podem revelar as maneiras como olhamos, convencionou-se a adotar o critério da objetividade jornalística como forma de garantir mais equilíbrio e justeza nas coberturas. Mas, há muito, essa objetividade, que sempre foi acompanhada pela subjetividade pessoal e coletiva, foi instrumentalizada para que empresas de mídia pudessem se eximir ideologicamente daquilo que elas mesmas produzem e publicam.

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Há semanas, um dos jornais-referência do país, a Folha de S.Paulo, tem abordado o tema em artigos. Eles saíram em ao menos quatro momentos: em 18 de março, 1517  e 22 de abril. Em todos, repete-se o grande perigo de “renunciar à objetividade” (algo que a academia e mesmo jornalistas estariam supostamente propondo) e assim acabar com o “jornalismo profissional”, nos tornando um bando de militantes. Guardem essas expressões.

É realmente uma pena que a banda volte a tocar valsa e polca quando o momento pede samba e rock. A crítica à objetividade jornalística não se refere ao abandono de métodos e técnicas, mas sim a como esses métodos e técnicas foram usurpados, inclusive para ameaçar a democracia. Não se trata de “destruir os pilares do jornalismo”, mas de qualificar radicalmente a objetividade necessária à profissão para, assim, fortalecê-la. É incrível como parte importante da imprensa brasileira continua apontando o dedo para fora quando deveria fazer uma profunda revisão de si mesma. Em nenhum momento coloca-se em questão, por exemplo, o que foi feito da objetividade jornalística da Folha, d’O Globo e de outros veículos da “imprensa profissional” quando estes apoiaram a ditadura ou cobriram a Lava Jato.

Façamos uma minitour pelo artigo de 22 de abril para vasculhar melhor questões invisibilizadas no debate.

A Folha aborda os perigos da direita populista para o jornalismo, cita Trump e Bolsonaro e mostra como ambos fustigaram “pontos basilares da democracia”, como a soberania do voto popular e o respeito às minorias. 

Está corretíssima.

Então, resta indagar por qual razão o jornal, ao mesmo tempo que aponta o perigo, contribui gostosamente para sua disseminação. No dia em que Lula cometeu uma gafe, como gosta de dizer quase diariamente a Folha, e se tornou novamente presidente do Brasil, o jornal deu palco a um dos maiores causadores da corrosão democrática que assola a política mundial, Steve Bannon, ex-estrategista de Trump e brother dos Bolsonaro. Ele afirmou categoricamente que a “vitória de Lula foi roubada”, declaração falsa usada no título e que rapidamente estampou outros sites jornalísticos e as redes de direita tresloucadas.  

Também no contexto das eleições, ainda no fim do primeiro turno, a objetividade jornalística do Grupo Folha serviu para essa inesquecível postagem do ex-presidente, baseada em notícia xenófoba e manipulada do UOL (escrevi sobre a questão aqui):

São muitas as contradições que colocam em xeque a forma como a empresa utiliza regras e técnicas jornalísticas, instrumentalizando-as a seu favor e as utilizando para corroer a própria democracia que diz defender.  Não é novidade que todo negócio – e o jornalismo comercial é um – tenha interesses específicos. O problema é tentar, como se hoje fosse possível, fazer o jogo da imparcialidade se batizando novamente de “apartidário”, como se não apoiar claramente um partido político ou um projeto de país significasse que a empresa é ideologicamente neutra.

Quero destacar outros pontos. Nos últimos anos, a Folha criou uma editoria de Diversidade, contratou repórteres negros e negras, concedeu assinaturas grátis para mulheres, etc. Essas boas iniciativas, no entanto, aconteceram ao mesmo tempo em que o veículo tratou inicialmente Bolsonaro não como um danoso ponto fora da curva, mas sim uma espécie de cara folclórico que tinha ao seu lado um “supercraque” do sistema financeiro, o eau du Pinochet Paulo Guedes. Enquanto aplaudiu a reforma trabalhista do governo Temer, focando em um “estado enxuto e moderno”, o veículo deixou, objetivamente, de tratar de como ela causaria estragos, especialmente na vida de mulheres negras. Elas, que sempre conviveram com os salários mais baixos do mercado, são agora as mais atingidas pelo modelo precarizador enfiado goela abaixo da população (estudos a respeito aqui, aqui e aqui).  Achando que a “representatividade”, sozinha, é a resposta para neutralizar o racismo, o Grupo Folha age como se o trainee negro em seus cursos não fosse também o filho de uma vendedora convivendo com o assédio por medo de ser demitida e não arrumar outro emprego. 

Vale dizer que estamos falando de um gênero e uma cor cujo poder é inversamente proporcional ao dos homens brancos que, até agora, assinaram as colunas do jornal defendendo a objetividade. Recomendo a todos ouvir a reflexão de Kathleen Carroll, ex-editora executiva da The Associated Press, sobre a objetividade jornalística: “É objetivo segundo o padrão de quem? Parece o padrão de caras brancos, educados e razoavelmente ricos. Quando as pessoas não sentem que estão na cobertura das notícias, é porque [elas] não atendem a essa definição”. 

Bingo, Kathleen. A fala está no estudo Beyond Objectivity, citado na própria Folha.

Bora falar dos militares?

Na defesa da objetividade jornalística, a expressão “respeito aos fatos” é um hit. Então vamos a alguns deles, com foco nas Forças Armadas: nos últimos anos, mais de 80% dos gastos com a Defesa foram para o setor pessoal, não para infraestrutura e tecnologia, por exemplo. Somente em 2020, o estado gastou R$ 41,5 bilhões com pensionistas parentes de militares mortos, militares da reserva e reformados. Mas esse cenário não faz com que o Grupo Folha, que tem setoristas cobrindo a área, escute comumente os oráculos do mercado para falarem, escandalizados, do peso dessas benesses no erário público, especialmente nos altos postos. Ao contrário: os heróis da democracia à Bolsonaro ganham supermimos do grupo. Aqui tem um, recente

A própria forma como a empresa tratou a reforma previdenciária dos fardados já foi um presentaço. Em 17 de dezembro de 2019, quando Bolsonaro sancionou as mudanças que só levariam a mais gastos públicos, o título e a chamada da matéria na Folha sobre o assunto foram, objetivamente, sóbrios:

No meio do texto, destaca-se uma fala do ex-presidente e, logo depois, as dos então comandante da Marinha, Ilques Barbosa, e ministro da Defesa, Fernando Azevedo. Todos elogiavam, é claro, a canetada. Não poderia ser diferente: os militares da reserva ouvidos por Oyama conseguiram manter o salário integral após a aposentadoria (não permitido para civis) e o direito a reajuste salarial, como se estivessem na ativa. Apenas em abril deste ano o jornal noticiou com o devido título aquilo que se desenhou em 2019:

Em vez de objetividade jornalística, tivemos um silêncio permissivo, como analisou o pesquisador Álvaro Larangeira neste artigo. Ele vai no ponto: as ditaduras estão em conjunção com o projeto político-econômico ideal para os veículos citados. Mas os jornais que apoiaram um regime de exceção e até agora dão aqui e ali uma lustradinha nas botas militares só conseguem ver “militância” nos outros. 

Cadê a cobertura do setor privado?

Citados no artigo de 22 de abril, UOL, Estadão, O Globo, G1 e Valor Econômico são os exemplos do “jornalismo profissional” que a Folha preza. Todos têm excelentes profissionais, sem dúvida. Mas vale a pergunta: que jornalismo fazem então veículos como este Intercept Brasil, Marco Zero Conteúdo, Sumaúma, Repórter Brasil, Gênero e Número, Catarinas, Amazônia Real, Ponte Jornalismo, Agência Pública, O Joio e o Trigo (dos dois últimos, tenho a honra de ser conselheira), para citar alguns? Todos seguem critérios de apuração, checagem, entrevistas, escrita acessível. São povoados por profissionais respeitadas e respeitados. 

A grande diferença é que, ao contrário da “grande imprensa”, todos cobrem com maior atenção e crítica o setor privado nacional, tão poupado pelos jornalões quanto os militares. Não falo de matérias pontuais, geralmente as que aparecem quando um escândalo pipoca, mas de acompanhamento de perto, fuçando as grandes empresas como se fuça o Congresso Nacional. 

Mas, até agora, não vemos repetidos no noticiário “profissional”, de maneira clara (e clareza é um ícone da objetividade jornalística), OS NOMES de empresários que financiaram as tentativas de golpismo no país, boa parte deles vindos do agronegócio; os NOMES DAS EMPRESAS que fazem parte da destruição ambiental e humana causada pelo garimpo ilegal; os NOMES LIGADOS À ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA que resulta em tragédias como as das chuvas em São Paulo;  OS NOMES LIGADOS À ESCRAVIZAÇÃO DE PESSOAS em vinícolas, na indústria têxtil e em aplicativos de transporte, comida e entregas, etc. 

É por se posicionarem sobre tais casos, que ferem diretamente a democracia brasileira – algo que o Grupo Folha também precisa qualificar —, que Joio, Intercept, Sumaúma, etc., estão fora da “imprensa profissional”, o que os aproxima dos “militantes”. O Grupo Folha, que ouve Bannon e general da reserva com gerações de filhas garantidas pelo dinheiro público, é que não é.

Não há, nesse movimento de crítica à objetividade, ninguém afirmando que deve-se abrir mão dela. Mas assumir que seu uso infeliz nos trouxe ao lugar instável no qual vivemos agora é importante. Os iluministas da Folha já deveriam saber que democracia forte requer objetividade jornalística qualificada. E essa objetividade tem que enfrentar nossas grandes feridas, como o patrimonialismo, o racismo, o machismo, o genocídio indígena, por exemplo. Elas operam na subjetividade que a imprensa comercial insiste em manter no armário. 

Infelizmente, depois de tudo o que passamos, o Grupo Folha ainda é o que já não deveria ser.

Para saber mais, um ótimo texto de O Joio e O Trigo  e a última newsletter do Farol Jornalismo. Escrevi recentemente um livro dedicado à subjetividade e objetividade jornalísticas, lançado pela Arquipélago Editorial.

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