Conteúdo sensível: relatos sobre abuso infantil.
Cássia não consegue falar da filha sem chorar. Emoção compreensível para uma mãe que conta ter ouvido da criança, com apenas 3 anos de idade, que o pai lhe fazia “cosquinha no bumbum e na pepeta”. Algumas atitudes de Leonardo já tinham levantado suspeitas. “Ele trancava a porta do quarto quando estava com a criança e a chamava para vê-lo tomando banho”. Por isso, quando ouviu o relato da filha, foi à delegacia e denunciou tanto a suspeita de estupro de vulnerável contra a criança quanto uma tentativa de estupro que a mãe diz ter sofrido após a separação.
O registro de ocorrência feito em janeiro de 2014 foi o estopim dos problemas de Cássia e da filha. A mãe foi acusada pelo ex de alienação parental. A prática, cuja existência é contestada por especialistas, consistiria em destruir o vínculo da criança com o pai e manipulá-la para contar abusos que não ocorreram. A falsa teoria sustenta que relatos feitos pelas vítimas à polícia, ao conselho tutelar, a médicos, a psicólogos e a assistentes sociais seriam fruto de falsas memórias implantadas pela mãe.
A Lei de Alienação Parental foi sancionada em 2010. Ela se baseia em uma síndrome de mesmo nome nunca reconhecida pela Organização Mundial da Saúde e criticada pelo Conselhos Federal de Psicologia, o Conselho Nacional de Assistência Social e Conselho Nacional de Saúde. Segundo a lei, que existe apenas no Brasil, de acordo com quatro entrevistados, são alienadores quem interfere na formação psicológica das crianças – segundo a teoria que a sustenta, implantando nelas falsas memórias. Por isso, essas pessoas devem ser punidas com multa, terapia compulsória ou perda da guarda dos filhos.
Para a psicanalista Ana Iencarelli, especializada no atendimento a crianças e adolescentes sobreviventes de abuso, é impossível implantar lembranças inventadas na memória de crianças, devido à forma como se dá seu desenvolvimento cognitivo. “Na infância, a capacidade de pensar depende do raciocínio concreto. A criança precisa experimentar para adquirir a memória. Precisa pensar numa coisa do universo dela”, explicou. Mas a justiça brasileira desconsidera essa informação.
Cássia perdeu a guarda da filha em 2017, três anos após sua primeira denúncia. A decisão foi da juíza Fabiana da Cunha Pasqua, da 7ª Vara de Família da Comarca de Belo Horizonte, em Minas Gerais. Amparada por laudos da psicóloga Alessandra Rodrigues de Alvarenga e da assistente social Camila Pessoa, a magistrada ressaltou na sua sentença que havia “de um lado, o pai, sofrendo com a ausência da criança […] e, de outro, a mãe insistindo que a menina fora abusada”.
Por isso, avaliou a juíza, a alternativa mais segura era a criança, então com 7 anos, morar com os avós paternos – na mesma casa onde vivia o homem denunciado por abuso. Pasqua ignorou, por exemplo, o que a menina havia falado em sessões com a sua psicóloga, contratada pela mãe. De acordo com um relatório e o depoimento da profissional em audiência, a criança se recusava a falar do pai e demonstrava ansiedade e angústia quando mencionava que ia encontrá-lo. A psicóloga pediu que ela escrevesse, e foi isso que ficou registrado no papel: “ele pôs a língua na minha pepeca”, “ele mostrou o pipiu pra mim” e “ele mexeu na minha pepeca”.
Mesmo assim, a justiça afastou a criança da mãe, considerada alienadora. Cássia só poderia ver a filha uma vez por semana, em visitas de até uma hora supervisionadas dentro do fórum. Foi dessa forma por quase dois anos, até que, em 2019, ela conseguiu o direito de ficar com a criança das 9h às 18h, em domingos alternados. Ela contou que bastaram dois meses desse contato estendido para ouvir da filha que o pai estaria abusando dela à noite, quando os avós dormiam.
Cássia denunciou novamente o ex-marido por estupro de vulnerável e, dessa vez, conseguiu uma liminar que lhe dava a guarda provisória. Mas em menos de dois meses a juíza Pasqua determinou o retorno da criança à casa dos avós, agora amparada por laudos da psicóloga Fernanda Simplício Cardoso, da assistente social Andreza Rodrigues de Avelar e por um parecer da promotora Andrea Mismotto – nenhuma delas levou a sério o depoimento da criança. Sobre a nova denúncia, a promotora Mismotto afirmou que os “indícios de cometimento do crime pelo pai são frágeis”.
Hoje, a filha de Cássia é uma adolescente de 12 anos e só pode ver a mãe em domingos alternados, sob a vigilância de uma pessoa de confiança de ambas partes.
Esse caso resume parte das injustiças que o Intercept vai expor na série “Em nome dos pais”, que será dividida em três reportagens e um minidocumentário, além de um texto para assinantes da nossa newsletter. Para preservar as crianças, vamos alterar os nomes dos seus familiares e revelar apenas a identidade dos membros do sistema de justiça que atuaram nos processos. Com base em documentos, vídeos, áudios e autos de ações judiciais a que tive acesso com exclusividade, mostraremos quem são os juízes, promotores, psicólogos e assistentes sociais que estão tirando filhos de suas mães para entregá-los a pais acusados de estupros de crianças ou de violência doméstica.
Pseudociência pró-pedofilia
Os rastros dessa crueldade aparecem em laudos, pareceres e sentenças há pelo menos 12 anos, desde a sanção da Lei de Alienação Parental. No papel, homens e mulheres poderiam ser alienadores. Na prática, as mães é que são majoritariamente penalizadas, principalmente aquelas que denunciam os pais por abusos.
Em ao menos 215 processos que chegaram ao Superior Tribunal de Justiça até novembro de 2022, homens condenados por abuso sexual contra crianças e adolescentes alegaram que as mães das vítimas estavam praticando alienação parental. O levantamento foi feito pelo juiz Romano José Enzweiler, um dos poucos magistrados que criticam publicamente a legislação. Junto à advogada Cláudia Galiberne Ferreira, ele escreveu um livro desmontando a falácia da alienação parental.
Segundo Enzweiler e Ferreira, a lei é machista e tem servido tanto para livrar homens de acusações de violência sexual ou doméstica, quanto para inibir denúncias desse tipo, devido ao medo da mãe de perder a guarda da criança. Há razão para o temor. “Em muitos casos, as sentenças punem a verdadeira vítima, a criança, e aplicam pena desproporcional, com a reversão da guarda e a proibição de acesso da mãe ao filho, o que não ocorre nem com mulheres presas, acusadas de crimes hediondos”, seguiu o magistrado.
Maria Berenice Dias, advogada e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família, discorda que a lei prejudique as mulheres. Ela é desembargadora aposentada do Tribunal do Rio Grande do Sul e foi uma das primeiras magistradas a usar o termo Síndrome de Alienação Parental em suas decisões. “As mães [são as mais denunciadas por alienação parental porque] ficam com a guarda dos filhos, de modo geral. É um dado cultural. E elas nutrem esse sentimento, de achar que o pai não sabe trocar fralda, não vai saber dar mamadeira, que ele não sabe cuidar. Homens acusados de abuso sexual, violência doméstica e devedores de pensão não são favorecidos pela lei de maneira nenhuma”.
A Síndrome da Alienação Parental foi muito conveniente para quem a criou – um psiquiatra que defende abertamente a pedofilia.
A Lei de Alienação Parental, contudo, se baseia em falsas teorias da década de 1980 do psiquiatra Richard Gardner, citado no texto inicial do projeto de lei, que reproduz um artigo de 2006 escrito por Dias. Para a psicanalista Iencarelli, é um equívoco considerar as ideias dele. Gardner, disse ela, apenas rebatizou como Síndrome de Alienação Parental o comportamento comum – e passageiro – de os ex-parceiros usarem a criança “como moeda de troca” ao fim de uma relação. “Ele pegou esse momento emocional e tipificou como uma alteração psíquica que ele atribui [apenas] à mãe. Ele diz que a mulher, frustrada, vai desenvolver a alienação”.
A teoria foi muito conveniente ao trabalho do psiquiatra, que produzia laudos para defender pedófilos, segundo Romano e Ferreira. O estadunidense se manifestava abertamente a favor da pedofilia e criticava a “atitude exageradamente punitiva e moralista em relação a relações sexuais entre adultos e crianças”, como afirmou em um de seus livros. Nessa mesma obra, ele argumentou que o sofrimento de vítimas de abuso infantil só existe porque “nossa sociedade reage de forma desproporcional à pedofilia”. Em outro livro, Gardner escreveu que as crianças “são naturalmente sexuais e podem seduzir adultos em encontros para iniciarem-se sexualmente”.
A advogada Dias, que atualmente defende homens em processos de alienação parental, considera irrelevante o histórico de Gardner. “Todos nós conhecemos a campanha de desqualificação feita, principalmente, por pessoas que estão com a separação mal-elaborada e que agem para atingir o outro. Não deve acabar com a lei por causa de quem é a pessoa que inventou o nome”, defendeu.
São as ideias misóginas de Gardner, contudo, que têm norteado as decisões de reversão de guarda no Judiciário brasileiro – mas não só isso. Segundo Ferreira, profissionais do direito, da psiquiatria, da psicologia e do serviço social estão sendo doutrinados desde que a Lei de Alienação Parental entrou em vigor. “É uma lavagem cerebral. Não tem contraponto, ninguém diz que essa síndrome não é reconhecida”, criticou. “A mera acusação de alienação parental vira uma verdade absoluta, porque essa pseudociência passou a ser ensinada nas faculdades como realidade incontestável”.
De fato, existem poucos trabalhos acadêmicos brasileiros que questionam a ideia da alienação parental, assim como dados sobre as consequências da lei. Há, no entanto, alguns levantamentos feitos em tribunais de segunda instância que dão indícios do machismo da legislação. Um artigo de Sheila Stolz e Sibele de Lima Lemos, membros do Grupo de Pesquisa Direito, Gênero e Identidades Plurais da Universidade Federal do Rio Grande, mostrou que, em mais de 90% das 118 decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul analisadas em 2019 e 2020, são mulheres as acusadas de alienação.
Os processos que envolviam denúncia de abuso sexual correspondem a quase 23% das decisões analisadas, e mais da metade delas tinha laudos e provas do abuso. Mesmo nessas situações, uma a cada cinco mulheres perdeu a guarda das crianças para os homens. As que conseguiram ficar com os filhos eram obrigadas a levá-los para visitar o pai, sob ameaça de serem denunciadas por alienação parental e perderem a guarda. Para Dias, “há mentira” nas histórias de mães que tiveram que entregar filhos para pais abusadores. “De modo geral, 99% dessas alegações nos processos de alienação parental são falsas”, ela alegou, sem citar fontes.
Outro estudo revelou que as mães são as acusadas de alienação, nos processos que envolvem esse tema no tribunal de Minas Gerais, em mais da metade dos casos em primeira instância e em seis a cada 10 ações que chegam à segunda instância. Dos processos que envolvem, de um lado, acusações de abuso sexual contra crianças e adolescentes e, do outro, acusação de alienação parental, os magistrados foram convencidos de que a mãe é uma alienadora em 62% dos casos na segunda instância.
Dias mais uma vez contesta a informação. “É muito raro haver qualquer penalização pela prática de alienação parental. Por mais que seja comprovado que a mãe pratica atos de alienação para afastar, nem pena de advertência a gente consegue”, afirmou.
Crime quase perfeito
As mesmas injustiças evidenciadas pelos levantamentos nos tribunais do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais acontecem em todo o Brasil, como revelam os 11 processos que investiguei para a série “Em nome dos pais” – todos recheados de laudos, pareceres e decisões questionáveis. Em muitos casos, os homens são inocentados por falta de provas – que estavam no processo o tempo todo, mas foram ignoradas. Foi o que aconteceu no caso de Cássia.
O exame de corpo de delito na criança de 3 anos, em 2014, identificou uma “esquimose de cor arroxeada” na sua vagina. O pai, Leonardo, disse que ela poderia ter se machucado na bicicleta ou descendo do berço sozinha. A explicação pareceu convincente para a polícia, que não identificou a descrição de ações diretamente relacionadas à lesão.
A escuta qualificada da criança, na qual ela contou para psicólogos da delegacia que o “papai colocou a mão na minha pepeta”, também foi desprezada. A delegada Isabella Franca destacou que a frase foi dita por interferência da avó, que acompanhava a criança e a incentivou a repetir o que teria dito antes para a mãe. Franca também lembrou que a denúncia de Cássia foi feita no mesmo dia que o pai entrou com pedido de divórcio. Entre se aprofundar no caso ou concluir que tudo não passava de falsa denúncia de uma mulher vingativa, a delegada optou por salvar Leonardo da investigação.
Livre da polícia, ele alegou estar sendo vítima de alienação parental e pediu a guarda da filha na Vara de Família em setembro de 2015, enquanto outro processo corria na Vara Criminal. Em todas essas instâncias, contudo, a vantagem sempre esteve com o pai. Para a psicanalista Iencarelli, esse é o tipo de crime quase perfeito, pois não deixa rastros facilmente detectáveis e basta duvidar da palavra da criança e da mulher.
Em um relatório psicossocial produzido numa ação penal de medida protetiva em julho de 2015, a psicóloga Maria Cristina Leão disse que “não constataram evidências sobre a ocorrência do suposto abuso”. No entanto, nesse mesmo documento, a psicóloga admite que a criança ficava apreensiva quando via o pai e pedia para estar com a mãe.
As demonstrações de que algo estava errado também eram dadas pela criança na escola. Seu desenvolvimento pedagógico estava estagnado, segundo um relatório assinado pela coordenação de educação infantil em agosto de 2015. O documento diz ainda que, logo após as visitas ao pai serem retomadas, a menina foi vista no banheiro tirando água do vaso sanitário e lavando a boca. Levada para a coordenação, ela “diz que está com medo e verbaliza seu encontro” com Leonardo. “Ele fez coisa feia comigo. Não lembro direito, mas é coisa errada. Quando estava na sala, chamei minha mãe, minha avó e meus tios, mas ninguém me ajudou”. Na mesma semana, a criança correu atrás dos colegas, sugerindo que beijassem sua boca.
Segundo informou a psicóloga da menina em um relatório de novembro de 2016, a criança tinha dificuldade para falar sobre os abusos, então ela propôs que escrevesse – foi quando a criança botou no papel que o pai “pôs a língua na minha pepeca”. Alguns meses depois, inquirida pela a juíza Pasqua, a psicóloga respondeu que não acredita que a escrita tenha sido sugestão ou influência de alguém, pois “dificilmente a criança ensaiaria o que escrever”.
O incômodo da menina por ter que encontrar Leonardo consta também em um relatório de maio de 2020 do Conselho Tutelar, que resgata o histórico de atendimento à criança desde 2016. O documento descreve que, em abril de 2017, ela estava inquieta e não queria ver o pai, porque ele “insistia em querer beijar sua boca e apalpar seu bumbum”. Ela disse que tinha combinado com “as tias do fórum” para ficar boazinha com o pai, senão a mãe seria presa. Ela também não podia contar que ficava sozinha com ele. Segundo o relatório, a criança só contou o combinado depois que os conselheiros prometeram não falar para ninguém. Ela confidenciou ainda que havia contado para “as tias” que o pai havia machucado sua mão.
As “tias do fórum”, segundo o relatório, eram a assistente social Camila Pessoa e a psicóloga Alessandra Rodrigues de Alvarenga. Um relatório assinado por elas em maio de 2017 favoreceu Leonardo. Nele, Pessoa defendeu a reversão da guarda e Alvarenga disse que as “condutas maternas podem ser identificadas como atos de Alienação Parental que vem interferindo na possibilidade de convivência entre pai e filha”.
Conversas gravadas pela mãe dão indícios da parcialidade de Alvarenga e Pessoa, cujos laudos embasaram a decisão da juíza Pasqua de dar a guarda da criança aos avós. De acordo com a transcrição de um dos áudios que está nos autos do processo, Pessoa sugere – indicando que tem anuência de Alvarenga – que Cássia retire a medida protetiva contra ele. “Pelo que a gente está entendendo, você também está interpretando que o que aconteceu [o estupro que disse ter sofrido após a separação] foi algo pontual da relação de vocês. Então, o contexto que pedia a medida protetiva naquela época, se ele não cabe mais, para que manter?”.
Depois disso, elas foram substituídas no processo pela psicóloga Fernanda Simplício Cardoso e a assistente social Andreza Rodrigues de Avelar. Mas as coisas não melhoraram – mesmo diante das novas suspeitas de abuso sexual contra a criança.
Abuso ‘supervalorizado’
A filha de Cássia tinha acabado de completar 9 anos de idade e as duas já podiam se encontrar a cada 15 dias para ficar o domingo inteiro juntas. Foi quando a mãe disse ter visto a calcinha da filha cheia de pomada. De acordo com o boletim de ocorrência registrado em 19 de maio de 2019, a criança teria dito a ela que a avó sabia do que acontecia e cuidava “com pomadinha para aliviar a ardência”. O último abuso teria acontecido dois dias antes.
Cássia decidiu que não entregaria mais a filha e conseguiu com o juiz plantonista Renato César Jardim a guarda provisória, mas durou pouco tempo. O juiz aposentado Geraldo Luiz Ribeiro – que foi membro do Judiciário de Minas Gerais até 2015 – assumiu a defesa de Leonardo justamente nessa época. A mãe acredita que a influência do novo advogado contribuiu para que as coisas se complicassem ainda mais.
Poucas semanas depois de o juiz aposentado assumir a defesa de Leonardo, a promotora Andrea Mismotto escreveu um parecer em que desprezava o depoimento da criança em uma oitiva especializada. Na sua avaliação, a “versão da vítima está longe de ser verossímil” e suas informações “parecem forjadas”. Uma das coisas que a promotora considerou “fora da curva” foi a declaração de que Leonardo exibia partes do corpo para a menina, pois “a prática mostra que o autor de violência sexual” não age dessa forma. “O frequente é o suspeito valer-se de filmes ou fotografias eróticas, mas não do próprio corpo”.
‘Às vezes, eu tinha dificuldade para ir ao banheiro, doía, ardia muito. Saía uma gosma branca da minha coxa’.
Segundo a psicóloga Rozane Fialho, que atende crianças e adolescentes, a generalização não faz sentido, já que esses padrões de comportamento podem variar em alguns aspectos. “Como ela não embasa a resposta utilizando dados, foi uma afirmação sem fundamentação teórica”.
Alguns dias depois do parecer, a assistente social Avelar entregou um estudo em que avaliava negativamente o “estreito vínculo afetivo” e a lealdade que a filha tem com a mãe, porque isso estaria comprometendo a “relação da criança com a família paterna”. Fazendo menção a depoimentos que a menina já havia dado antes, Avelar cravou que “as queixas que a criança expôs no atendimento não condizem com os dados colhidos no decorrer do estudo”.
A psicanalista Iencarelli lembra que não é competência da assistente social se envolver em questões psicológicas e, por isso, o relatório está repleto de suposições para invalidar a voz da menina. “Essa tese de lealdade é apenas uma opinião não científica. O desenvolvimento saudável da criança é um processo contínuo de identificações. Isso não é doença”, criticou. “Quando desconsidera as queixas da menina sem fundamentação, deixa clara a intenção de desqualificar sua palavra, já insinuando que a criança é mentirosa ou fantoche da mãe”.
Na mesma época, a psicóloga Simplício entregou um estudo psicológico em que sugeria o retorno da menina para a casa dos avós e classificava as atitudes de Cássia como abusivas, “apesar de ancorada na hipótese de maus tratos contra a criança”. O estudo também foi elaborado sem ouvir a vítima, sob o pretexto de preservá-la e para “evitar que o suposto abuso seja supervalorizado”.
A advogada Dias concorda que crianças e adolescentes não devem ser ouvidos em processos que envolvem alegação de alienação parental, “porque isso as coloca em uma crise de lealdade. Eu sempre peço que não sejam escutadas”.
Enquanto ainda estava com a guarda provisória da filha, no início de julho de 2019, Cássia a levou ao Hospital Metropolitano Odilon Behrens, em Belo Horizonte. Segundo o relatório enviado ao Conselho Tutelar e assinado pela assistente social Cláudia Yara Rangel e pela psicóloga Arlêta Maria Serra, a criança foi ouvida individualmente, antes da mãe, e deu um depoimento espontâneo. Ela disse que foi difícil o período que ficou com o pai, porque “toda noite ele ia com uma roupa preta […] mexia na minha parte íntima da frente […]. Às vezes eu sentia só a mão dele e às vezes eu sentia uma coisa lisa […]. Eu não abria o olho porque tinha medo […]. Às vezes, eu tinha dificuldade para ir ao banheiro, doía, ardia muito. Saía uma gosma branca da minha coxa […]. A Rita [avó] passava muita pomada para esconder o que ele fez”. Em relação à Cássia, o relatório informou que ela estava “chorosa e com dificuldade de absorver o acontecido com a filha”.
Quatro dias depois do depoimento, a juíza Marixa Fabiane Rodrigues absolveu Leonardo da acusação de estupro de vulnerável feita em 2014, pois entendeu que nada provou a violência sexual. Para ela, o que estava provado “é que as informações que a criança detém de seu suposto abuso advêm única e exclusivamente das informações que lhe são repassadas” pela mãe e pela avó materna. Em outra decisão, nesse mesmo dia, a juíza negou a medida protetiva para a criança, pois entendeu que o discurso dela era “totalmente desconexo e fora da realidade”.
Em março de 2020, Leonardo foi absolvido em segunda instância e, em setembro de 2021, Cássia foi indiciada pela Polícia Civil por denunciação caluniosa. Dois meses depois, a psicóloga Simplício produziu um relatório em que refuta completamente a possibilidade de Cássia ter direito à guarda compartilhada, embora a profissional saiba que a preferência da criança é ficar com a mãe.
O problema, escreveu Simplício, é que a “personalidade litigante” de Cássia, não somente contra o ex-marido, “mas em relação a profissionais que atuaram no processo, pressupõe a sua inabilidade, no presente momento, para exercer o papel de guardiã de uma criança”.
Já o pai, segundo a psicóloga, reúne “condições psicológicas favoráveis ao exercício da guarda”, mas não tem moradia e vive com os sogros, pais da atual esposa. Este seria o único impeditivo, mas Leonardo já resolveu o problema – em dezembro de 2021, informou à justiça que comprou uma casa e reiterou o pedido para ficar definitivamente com a filha, mas o processo ainda está em andamento, e a menina continua morando com os avós.
Por meio da assessoria de imprensa do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, a promotora Andrea Mismotto respondeu que não se manifestará “em respeito ao ordenamento jurídico, que dispõe sobre a obrigatoriedade do sigilo de processos com tal objeto, para proteção da vítima”.
A delegada Isabella Franca não respondeu às perguntas que fiz por meio da assessoria de imprensa do da Polícia Civil de Minas Gerais. A promotora Andrea Mismotto tampouco respondeu às perguntas que fiz por meio da assessoria de imprensa do Ministério Público de Minas Gerais.
Perguntei ao desembargador aposentado e atual advogado Geraldo Luiz Ribeiro se a sua influência no tribunal contribuiu de alguma forma para obter decisões favoráveis ao seu cliente, mas ele não respondeu. Disse apenas que não poderia “fornecer dados do processo, que tramita em segredo de justiça, para resguardar interesses de menor”.
Estupro ou banho vigoroso
Em setembro de 2012, o filho de 2 anos de Marina voltou de uma visita à casa do pai, Lucas, assustado, inquieto e chorando. A criança estava com diarreia e vomitava. Foi a primeira vez que ela desconfiou de possíveis abusos – suspeita reforçada, contou, depois que viu o ânus do filho ferido e dilatado. Entrou em pânico, mas sabia que não podia fazer uma acusação tão grave sem provas.
Dois meses depois, a cena se repetiu – choro, vômito, diarreia e ânus dilatado após outra visita ao pai. Dessa vez, Marina não hesitou. “Perguntei: ‘Papai está mexendo no seu bumbum?’. Ele me respondeu na hora: ‘Tá, e dói muito'”. Ciente de que sua palavra e a da criança não seriam suficientes, ela peregrinou por quatro dias nos hospitais de São Paulo, na tentativa de fazer exames físicos e avaliação psicológica no filho. Segundo a avó materna, porém, foram informadas de que só conseguiriam atendimento depois de registrar queixa na delegacia.
Esse depoimento, reforçado por mais três pessoas, além de dois relatórios psicológicos indicando que o menino fora vítima de abuso, não convenceram a juíza Margot Chrysostomo Corrêa. Com base no laudo do psicólogo judiciário Alexandre Lara de Moraes e no parecer do promotor Alexandre Salem Carvalho, a magistrada sentenciou, com direito a letras maiúsculas: “abuso NÃO HOUVE”.
Um dos relatos aparentemente ignorados foi o da psicóloga da criança em uma audiência com a juíza em 2015. Com décadas de experiência, a profissional havia atendido o menino por dois anos e meio e avaliava que ele demonstrava indícios de abuso sexual. Nas brincadeiras com bonecos masculinos, disse a profissional, ele os “ataca, tranca, joga fora e só continua o jogo quando esse personagem é destruído”. O incômodo era tão grande, continuou a psicóloga, que ele chegava a ter ânsia de vômito quando olhava para o boneco. “Se precisava ir ao banheiro, tinha nojo dele mesmo”.
A juíza perguntou, então, se isso tinha alguma relação com o pai ou se acontecia “por conta da influência da mãe”. A psicóloga respondeu que não havia “nenhuma condição de ele ter sido induzido pela mãe ou por qualquer outra pessoa”. Para a psicóloga, não existia dúvidas de que a criança “passou por vários períodos em que houve uma manipulação anal”. Corrêa não se convenceu e chegou a levantar a hipótese de que o menino podia não ter sido estuprado, mas sim passado por “uma manipulação de um banho mais arrojado”. A resposta da psicóloga foi óbvia: se fosse apenas um banho, a criança não teria esse comportamento.
Patrimônio dilapidado
“A“A Lei de Alienação Parental não protege as crianças”, afirmou a advogada Cláudia Galiberne Ferreira, coautora de um livro que contesta a legislação. “Ela foi feita para calar as mulheres de duas formas: na mais branda, para negociar melhor a guarda, a pensão e a partilha dos bens; na mais sórdida, para evitar que as mães denunciem violência e abusos”, criticou.
Marina tinha uma razão a mais para temer que a denúncia contra o ex-marido se voltasse contra ela. Ele é dono de uma empresa de engenharia. Trata-se, portanto, de um homem com dinheiro suficiente para contratar os melhores advogados e enfrentar um longo processo judicial.
O incômodo com homens era tão grande que o menino tinha ânsia de vômito ao olhar para bonecos.
Ela, por outro lado, teve o patrimônio dilapidado. Disse que contraiu cerca de R$ 240 mil em dívidas com honorários de advogados e teve quase R$ 64 mil de sua previdência privada e seus FGTS penhorados para pagar custas dos processos. “Minha mãe até vendeu uma barra de ouro que tinha de herança, para evitar que o apartamento da minha avó fosse leiloado”, acrescentou.
Marina pediu assistência judiciária gratuita, mas o direito lhe foi negado após Lucas alegar que a ex-mulher tinha condições de arcar com as despesas processuais. Ela também precisou desistir da ação de partilha de bens, mesmo tendo mantido união estável por quatro anos, contou. “Para ter esse direito, eu precisaria provar que ele tinha uma cobertura de luxo, de mais de 300 metros quadrados, com sauna e piscina. Como não havia nada no seu nome, meus advogados orientaram que era melhor abrir mão, ou eu seria obrigada a partilhar meus rendimentos financeiros e pagar as custas processuais”.
Hoje, Marina afirma ter apenas o salário de consultora ambiental, porque foi contratada pela empresa da família – de resto, segundo ela, todas as suas economias acabaram.
Desequilibrada, agressiva e dissimulada
Não bastassem as enormes perdas financeiras resultantes do processo, Marina ainda teve seu caráter atacado diversas vezes ao longo da ação. Na sua sentença, em dezembro de 2015, a juíza Corrêa levantou uma dúvida: se a mãe, ao fazer a denúncia, “agiu de forma a prejudicar dolosamente o pai […] ou se sua conduta é fruto de um desequilíbrio emocional fortíssimo”. Acabou concluindo que Marina tinha “um comportamento obsessivo, doentio e extremamente prejudicial” à criança. Foi sua pior derrota: Marina perdeu a guarda do filho para o ex.
A avaliação da juíza foi amparada por um parecer do promotor Alexandre Salem Carvalho – que, por sua vez, se valeu do laudo do psicólogo Alexandre Lara de Moraes. Ele usou as entrevistas feitas com as partes e as informações do Teste de Rorschach, que examina as características da personalidade e o funcionamento emocional das pessoas, para enfatizar apenas os pontos negativos de Marina e reforçar a tese de que ela tem “ideias fantasiosas”. O psicólogo não mencionou, por exemplo, que não foram identificadas desordens de instabilidade emocional na mãe, segundo o teste.
Para sustentar a falsa tese de que ela era desequilibrada, o promotor Carvalho ignorou quatro laudos psicológicos de diferentes profissionais que descartavam transtornos mentais ou de caráter. Segundo o psicólogo Luiz Alberto Hanns escreveu em seu laudo, após 14 sessões de terapia com a mãe, ela sempre se mostrou coerente, lúcida e ética. “Há uma diferença entre estar sob estresse e ser desequilibrada […] no calor da situação e no papel de mãe, seu comportamento é compreensível”, atestou o profissional.
118 ações de alienação parental reproduziram 79 estereótipos desmoralizantes sobre mulheres.
Mesmo assim, o promotor Carvalho defendeu que havia “indicativos da ré ter praticado atos de alienação parental” e que o pai “demonstrou possuir melhores condições psicológicas para exercer a guarda”. Quando viu esse parecer, disse Marina, ela não conseguiu pensar em nada diferente de caça às bruxas. “Me senti sendo queimada na fogueira da inquisição”.
Desequilibrada, dissimulada, agressiva e sedutora são apenas alguns dos termos pejorativos direcionados às mulheres nos processos de alienação parental. O levantamento das pesquisadoras Sheila Stolz e Sibele de Lima Lemos revela que, nas ações analisadas, foram reproduzidos 79 estereótipos desmoralizantes em relação às mulheres. Já em relação aos homens, foram apenas 11, e nenhum com abordagem moral, segundo me disse Lemos – eles são classificados basicamente como imaturos, inseguros, antissociais ou desconfiados.
No processo de Marina, a juíza Corrêa questionou ainda o fato de ela verificar o ânus do menino quando voltava das visitas paternas. Perguntou à psicóloga da criança se isso era comum e se a constrangia. Ela respondeu que é comum, pois as mães ficam preocupadas, e que o excesso pode constranger, mas ela “não via isso” na Marina. Apesar disso, a magistrada escreveu em sua sentença que a preocupação da mãe com o filho confugurava “abuso sexual materno, ainda que de forma não intencional”.
“Evidencia-se nesse caso a descredibilidade da mãe, da avó materna e de três psicólogas”, ressaltou a psicóloga Rozane Fialho. “Seria então um combinado de mulheres para mentir contra um homem?”.
De acordo com a assessoria de imprensa do tribunal de São Paulo, a juíza Margot Chrysostomo Corrêa e o psicólogo judiciário Alexandre Lara de Moraes não poderiam responder às minhas perguntas porque “o processo em questão tramita sob segredo de justiça. Portanto, as informações dos autos são restritas às partes e seus representantes. […] Além disso, os magistrados são impedidos de se manifestar fora dos autos, por vedação da Lei Orgânica da Magistratura”.
A resposta do promotor Alexandre Salem Carvalho foi parecida: “O processo tramitou em segredo de Justiça, o MPSP não vai se manifestar”.
Correção: 2 de maio, 17h36
Originalmente, este texto afirmava que os conselhos de psicologia e assistência social criticam a Lei de Alienação Parental. Para fins de clareza, nomeamos os conselhos a que a reportagem se refere.
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