O plano era que fosse um hotel, não um prédio de apartamentos. Localizado na avenida São João, o edifício Aquarius foi construído por um pai de sete filhos, grande empresário do ramo cerealista, que morreu antes da obra ser concluída. Os novos donos, herdeiros, nunca chegaram em um acordo sobre o que fazer com a obra, que nunca foi terminada e está fechada desde a década de 70.
Abandonado, o prédio de 21 andares foi ocupado por cerca de 200 famílias em 2014. Pertencente à Frente de Luta por Moradia, 800 pessoas viveram no imóvel por seis meses, até uma reintegração de posse ser autorizada e a tropa de Choque da Polícia Militar paulista tirar, de maneira violenta, as famílias de lá.
Vazio até hoje, o prédio, avaliado pela prefeitura em R$ 11 milhões, é um dos imóveis analisados pela pesquisadora Ana Gabriela Akaishi na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Em seu doutorado, a pesquisadora descobriu que a maior parte dos imóveis mais valiosos abandonados no centro de São Paulo, como o Aquarius, está hoje nas mãos de herdeiros e instituições ligadas à Igreja Católica.
“Os padres não são corretores de imóveis, não são do ramo imobiliário. Como um deles me falou em uma entrevista, ele foi ensinado no seminário a rezar missa, a fazer casamento, a batizar. Não a negociar imóveis, resolver problemas de matrícula, de escritura, de condomínio”, disse Akaishi, ao Intercept.
Akaishi analisou as notificações do Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios, o PEUC, instrumento da prefeitura que dá aos proprietários de imóveis que não estão cumprindo a sua função social um prazo para dar uso ao imóvel ou terreno desocupado, no centro de São Paulo. Ela pesquisou a história e os proprietários dos 50 imóveis de maior valor venal notificados para PEUC na região. Sua pesquisa levantou quais famílias e organizações são donas dos imóveis, quanto eles valem e quais são os entraves para a sua efetiva ocupação.
Para ela, o centro de São Paulo é um importante objeto de análise da desigualdade habitacional por concentrar empregos, serviços e infraestrutura necessária ao trabalhador que mora na periferia, às vezes até na periferia de municípios da região metropolitana, e que precisa pegar ônibus, trem e metrô para chegar à área central. “A contradição maior”, ela resume, é existir “diversas linhas de metrô, trem, vários postos de emprego, serviços, comércios, universidades, e ao redor prédios fechados”.
Conversamos com Ana Gabriela Akaishi sobre as descobertas e constatações de sua pesquisa e sobre o que o governo poderia fazer para lidar com as duas crises imobiliárias e sociais que tocam o assunto: a imensidão de pessoas sem casa e a imensidão de casas sem pessoas.
Leia abaixo os principais trechos.
Intercept – O que te levou a querer investigar os donos dos prédios ociosos de São Paulo? Como você definiu esse tema de pesquisa?
Ana Gabriela Akaishi – As principais questões que motivaram o desenvolvimento dessa minha pesquisa foram os entraves existentes nesses imóveis parados, abandonados, fechados, vazios para a viabilização de políticas públicas de habitação de interesse social, em uma perspectiva de democratização do acesso à moradia no centro de São Paulo. O território da área central sempre teve, historicamente, em disputa de apropriações, de narrativas, de objetificações, principalmente ideológicas, de vários grupos. Várias narrativas sobre o que é esse centro.
O meu interesse em estudar esses proprietários veio da minha experiência trabalhando na prefeitura de São Paulo. Eu trabalhei como técnica na Secretaria de Desenvolvimento Urbano, entre 2013 e 2016, na gestão [do ex-prefeito] Haddad. Trabalhei no departamento de controle da função social da propriedade com o levantamento de imóveis ociosos e a notificação dos proprietários para o cumprimento da função social. Dentre as minhas atribuições, eu atendia os proprietários que tinham seus imóveis notificados, então me gerou esse interesse em entender qual é o perfil e qual é a relação deles, por serem quem são, com o entrave nesse mercado de terras da região central.
Existe um problema crônico de falta de moradia em São Paulo, que tem piorado nos últimos anos. Ao mesmo tempo, existem vários prédios ociosos. O que trava esses imóveis de servirem para moradia da população?
Vale enfatizar o exemplo do que é o centro de São Paulo diante desse problema todo. A cidade reflete essa desigualdade socioespacial. Enquanto a maior parte da população mora nas áreas periféricas, não só na periferia de São Paulo, mas também na periferia da região metropolitana, e tem que se atolar nos ônibus, metrôs e trens por horas até chegar no seu trabalho, que é na área central e no centro expandido, a maior parte dos empregos está onde a população trabalhadora não mora. Essa contradição é potencializada de uma forma muito mais intensa no centro de São Paulo, quando você vê esses prédios todos fechados. Prédios em áreas com infraestrutura, com diversas linhas de metrô, trem, vários postos de emprego, serviços, comércios, universidades, e ao redor, prédios fechados. É o exemplo da contradição maior.
Existem muitos obstáculos para que o acesso à moradia seja efetivado na região central. A gente pode falar dos vários problemas da política habitacional mesmo, que é onde deveria estar previsto atendimento à habitação para a população de baixa renda. Há vários problemas ali, de ordem política, institucional, de legislação. Existem questões políticas. Agora, a gente percebe, olhando o centro de São Paulo, que o problema não é construir novos prédios. Porque você vê a quantidade de prédios que estão sendo construídos, prédios novos. O problema não é esse, não é desamarrar o problema da terra, isso vem acontecendo, os incorporadores vêm construindo. Mas [os imóveis] não são destinados para a faixa de renda que mais precisa.
Quem são os donos desses imóveis abandonados? Como eles se tornaram os proprietários?
A primeira constatação da minha pesquisa é que, nessa área da Operação Urbana Centro, não há uma concentração de imóveis na mão de poucos. O levantamento que eu fiz demonstrou que 78% dos proprietários têm um único imóvel na região.
A Igreja Católica não sabe qual é o tamanho do seu patrimônio imobiliário.
De maneira geral, eu posso dizer que o patrimônio imobiliário e fundiário ocioso, relativo aos imóveis ociosos de maior valor venal do centro de São Paulo, está na mão de um capital comercial, mercantil, de herdeiros rentistas e de instituições religiosas, o que representou na minha pesquisa 74% dos imóveis analisados. É o que eu denominei como o “arcaico setor proprietário rentista imobiliário”.
De que maneira esses prédios abandonados se relacionam com o acúmulo de renda em determinadas famílias? E que famílias são essas?
Esses imóveis que estão no centro em nome dessas famílias, empresas, foram construídos em uma época em que o centro de São Paulo era muito pujante. Vários prédios altos, a verticalização super acentuada, sedes de bancos, de empresas. De certa forma, a produção imobiliária funcionava como uma diversificação de investimento para essas empresas.
A maioria dessas empresas não são do ramo imobiliário. Elas se capitalizam em um outro setor da economia, a maior parte delas no ramo comercial. Por exemplo, as lojas Marabraz. Ela se capitaliza na venda de móveis e investe esse capital no imobiliário, na construção de prédios, ou compra mesmo de prédios para renda de aluguel. Isso desde antigamente. Vários autores sempre disseram que o ramo imobiliário sempre foi uma forma de diversificar os investimentos de outros setores da economia. Então, historicamente, o excedente de renda de outros setores é investido no imobiliário.
O que leva esses proprietários a manterem os imóveis ociosos ou subutilizados? Por que grupos, como os herdeiros ou as instituições religiosas, não se livram deles?
Essa foi a pergunta que eu mais me fiz durante toda a pesquisa. “Por que eles mantêm esses imóveis parados?”. E aí eu vi que tem vários problemas. Eles mantêm não porque eles querem, a maioria das vezes, mas porque tem muitos problemas que são muito difíceis de resolver.
Você pega, por exemplo, as instituições religiosas. A Igreja Católica tem uma dificuldade muito grande na gestão desse patrimônio imobiliário. Em primeiro lugar, eles não sabem qual é o tamanho. Não sabem quais os imóveis que estão no nome deles, tem um problema de escritura no nome, todos os imóveis deveriam estar em nome da Mitra Arquidiocesana e não estão. Estão divididos em irmandades, então tem uma dificuldade de catalogar. E quem faz a gestão desses imóveis são os padres.
Os padres não são corretores de imóveis, não são do ramo imobiliário. Como um deles me falou em uma entrevista, ele foi ensinado no seminário a rezar missa, a fazer casamento, a batizar, não a negociar imóveis, resolver problemas de matrícula, de escritura, de condomínio.
Já os herdeiros têm outros problemas envolvidos, que muitas vezes passam por motivos pessoais, familiares. Às vezes brigas entre irmãos, entre famílias. Um irmão que não fala com o outro, mas como o imóvel está no nome dos dois eles não podem fazer nada se não entrarem em um consenso. Ou mesmo casos maiores, de famílias em que um imóvel está na mão de 30 herdeiros. Se um resolve não vender, não vende.
‘No centro de São Paulo, o problema não é construir novos prédios’.
O que eu também percebi é que, no caso dos herdeiros, existe um distanciamento em relação a esse patrimônio. Muitas vezes, quem construiu esse patrimônio foi o patriarca da família, o bisavô, ele que pensou “ah, vou construir aqui, vou ter renda de aluguel, vou alugar para escritório, vou fazer uma renda disso”. A quarta geração já se distanciou disso, e olha para isso mais como um problema de família do que algo que daria uma rentabilidade. Eu percebi isso, esse distanciamento do patrimônio. E aí, cada um foi tocar sua vida, né? Os herdeiros são dentistas, professores, sei lá. Cada um foi tocar sua vida e nenhum continuou seguindo o ramo imobiliário rentista, o que dificulta também a gestão desses imóveis.
Você diz na tese que o movimento de abandono dos imóveis, especialmente pelos herdeiros, não representa exatamente especulação imobiliária, mas uma inércia especulativa. O que isso significa?
Geralmente, o discurso da gente, da esquerda, sempre foi uma dicotomia entre especulação imobiliária e a função social da propriedade. “Ah, esses imóveis estão vazios porque o proprietário está especulando. Ele está segurando para vender mais caro”. Essa pesquisa que eu fiz traz à tona essa falsa dicotomia, não é bem assim que funciona.
Não dá para afirmar que exista um capital imobiliário especulativo de forma ativa em torno desses imóveis ociosos para promover a sua valorização, o que já é uma coisa. E eu acho que essa dicotomia precisa ser desconstruída, porque não é tão simples assim. Poderia até ter uma especulação fundiária que se enquadraria nos ganhos passivos da valorização, obtidos pela própria herança que eles recebem, mas de forma ativa eu não consegui enxergar. De toda forma, não dá para descartar que esses proprietários possam carregar expectativas de ganhos futuros com essa transformação que está tendo no centro de São Paulo nos últimos tempos. Pode ser que eles tenham essa expectativa e estejam jogando um pouco com isso, mas eu não vejo isso de uma forma ativa, justamente por eles terem tantos problemas com os imóveis, terem distanciamento do patrimônio, por conta de tudo isso.
As instituições religiosas, que têm um monte de imóvel no centro, não estão ali especulando, segurando para vender. Acho muito difícil, porque eles não são do ramo imobiliário.
Algum dos imóveis analisados por você está ocupado por movimentos de moradia?
Não. Porque eu analisei os imóveis que foram notificados para PEUC. Entende-se que, se o imóvel está ocupado, ele está cumprindo a função social da propriedade, então ele não precisaria ser notificado para PEUC, então nenhum desses tinha uma ocupação.
Alguns deles já tiveram. Vários prédios que eu analisei, em outro momento, já houve uma ocupação, mas teve uma reintegração de posse e o movimento teve que sair.
Você apontou que apenas 20% dos imóveis notificados para PEUC cumpriram o atendimento à função social, e no meio disso ainda tem imóveis que tiveram a notificação cancelada ou impugnada. Por que, na sua opinião, o PEUC teve efeitos práticos tão incipientes?
Na verdade, a atuação desse instrumento é limitada. Na época em que ele foi pensado, até antes da Constituição, do movimento da reforma urbana, se colocava uma expectativa muito grande nesses instrumentos de combate à ociosidade, à especulação imobiliária, como potenciais para transformar o território e democratizar o acesso à terra para a população de baixa renda.
‘Instrumentos para combater o déficit habitacional existem, o que falta é vontade política’.
Mas o desenho do instrumento e a forma como ele é implementado dá a ele uma atuação limitada. Um imóvel está ocioso, vazio, e ele vai ser reativado para ter um uso. Basicamente é isso, dar um uso. Que uso é esse, não cabe ao instrumento decidir. Aí, compete ao ordenamento do território, ao uso e ocupação do solo. Não é que ele tenha efeitos incipientes, ele cumpre o que promete.
Só 20% dos imóveis notificados voltaram a ter uso, independente de qual seja o uso. 80% dos imóveis seguiram na irregularidade…
Sim. Aí começa a incidir o IPTU progressivo no tempo, que é o aumento da alíquota do IPTU a cada ano, até o prazo máximo de cinco anos, até ele ser desapropriado. Mesmo assim, em muitos imóveis o proprietário não dá o uso.
O que pode ser feito, pelo poder público, com os imóveis que seguem não cumprindo sua função social mesmo após notificação? Apenas aplicar o IPTU progressivo?
Automaticamente já começa a incidir o IPTU progressivo no tempo, mas existem outros instrumentos que poderiam incidir também no caso desses imóveis ociosos. Tem um instrumento que chama Arrecadação de Imóveis Abandonados, que permite que a prefeitura, no momento em que é decretado o abandono do imóvel, em um período determinado em que ele não paga IPTU, a prefeitura já arrecada, já passa para o nome dela – se não há divergências com o proprietário, uma série de coisas que tem que cumprir.
Outro instrumento que poderia incidir se chama Dação em Pagamento. Muitos desses prédios têm uma dívida muito alta de IPTU, de décadas. O proprietário poderia dar o imóvel como forma de pagamento e abater essas dívidas. Ele ficaria quitado com a prefeitura pagando com o imóvel. Instrumentos existem, o que falta é a vontade política.
Com a sua pesquisa e as novas informações que obteve, como a prefeitura deveria enfrentar o problema?
Eu acho que precisaria ter uma política habitacional muito mais forte, atuando de fato na faixa de renda que precisa, de zero a três salários mínimos, a faixa que está no déficit habitacional. Talvez intervindo em edifícios que já estejam ocupados, fazendo com que essas famílias consigam permanecer nesses edifícios, de uma forma adequada, podendo reformar esse prédio para adequar todas as famílias e garantindo a posse das famílias nesse lugar. Acho que uma política habitacional nesse sentido, de novas construções para suprir o déficit habitacional e atuar nessas ocupações, já seria muito bom para a região do centro.
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