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Duas advogadas que atuaram na defesa da menina de 11 anos de Santa Catarina, induzida pela juíza Joana Ribeiro Zimmer a desistir do aborto legal após estupro, prestaram depoimento na última semana na Delegacia de Polícia da Comarca de Tijucas, Grande Florianópolis, em um inquérito que apura a quebra do segredo de justiça do processo que veio a público em reportagem do Intercept com o Portal Catarinas.
O inquérito policial foi aberto para apurar “possível ocorrência de crime contra a administração pública” diante do “vazamento de informações dos autos”.
No começo de maio, Alison da Rocha Costa, delegado da Delegacia de Tijucas, determinou o interrogatório das advogadas Daniela Felix, com quem conversamos, e Ariela Rodrigues, que preferiu não falar sobre o caso por, segundo ela, estar abalada com a situação. A nenhuma delas foram apresentadas provas que as colocassem na condição de investigadas.
A abertura do inquérito foi motivada por uma denúncia anônima ao Disque 100, o Disque Direitos Humanos, enviada à delegacia em 28 de junho do ano passado – oito dias após a publicação da reportagem –, junto a um ofício assinado por Nabih Henrique Chraim, ouvidor Nacional de Direitos Humanos, vinculado ao então Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Bolsonaro.
O denunciante sugere a responsabilidade cível e criminal do Intercept, por “veicular as imagens e o áudio do depoimento especial sigiloso”. Propõe ainda a apuração da “responsabilidade parental pela situação de gravidez precoce da criança”, e “eventual responsabilidade cível e criminal da equipe médica que realizou o procedimento de aborto na 29ª semana de gestação”.
O aborto é um direito garantido por lei à menina independentemente da idade gestacional – e a gravidez só avançou a esse ponto porque o Judiciário, o Ministério Público e os profissionais do Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago atuaram para impedir o aborto legal antes.
Por meio da assessoria de imprensa da Polícia Civil de Santa Catarina, o delegado Alison da Rocha Costa informou que não vai se manifestar, “porque o inquérito já foi concluído e remetido à justiça e corre em sigilo, por envolver criança”.
O depoimento
Daniela Felix chegou à delegacia em 10 de maio e logo se instaurou um clima de tensão. “O delegado me chamou, informou como seria o procedimento e começou a audiência. Ele perguntou: ‘tudo bem pra você?’. Eu respondi que não, porque não sabia pelo que estava sendo investigada. Ele se exaltou e disse que eu o estava ofendendo”, relatou a advogada.
Segundo ela, não foram feitas perguntas, porque Felix informou de antemão que exerceria seu direito ao silêncio. “Estou sendo acusada de um crime, mas eu não sei qual. É uma caça às bruxas”, acusou.
De acordo com Rodrigo Sartoti, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB que acompanhou Felix, a comissão vai encaminhar um requerimento à presidência da OAB estadual e à Comissão de Prerrogativas para que se manifestem publicamente em defesa das advogadas e que intervenham como partes na investigação. “Essa investigação é absurda, configura violação do direito ao sigilo das advogadas e à não violação de seus instrumentos de trabalho”, disse.
O Intercept e o Portal Catarinas já se pronunciaram, publicamente, sobre o absurdo desta investigação, e o recado é claro e inequívoco: não revelaremos as fontes que nos ajudaram a denunciar que os direitos de uma garota de 11 anos estavam sendo violados!
‘Essa investigação é absurda, configura violação do direito ao sigilo das advogadas’.
Para Sartoti, não há crime a ser investigado, considerando que as violações ao direito da menina só vieram ao conhecimento público com a divulgação do caso, e o direito ao sigilo da sua identidade foi preservado. “A partir do momento em que os próprios atores do processo, a magistratura, o Ministério Público, atuam na contramão dos direitos, o sigilo tem que ser relativizado. As jornalistas têm o direito constitucional de preservar a fonte, mas isso foi essencial para que a menina tivesse garantido o direito ao aborto”, assinalou.
Conversamos com Silvia Souza, presidenta da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB, que afirmou: “Se for o caso, vamos representar essa autoridade policial para as corregedorias e órgãos competentes”.
“Esse modus operandi, inclusive com instituições do sistema de justiça, como é a autoridade policial, na pessoa do delegado, tem como pano de fundo uma justificativa conservadora, moralista, religiosa.”.
Violação dos direitos das advogadas
A intimação das advogadas Daniela Felix e Ariela Melo Rodrigues mobilizou cinco organizações da sociedade civil, que enviaram na última quarta-feira, dia 17, pedido de providências ao Ministério das Mulheres, e ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, pedindo o arquivamento da investigação.
No documento, requerem ainda, por exemplo, a apuração de responsabilidades das autoridades públicas que “praticaram violências institucionais” contra a menina e sua mãe durante a audiência realizada pela juíza Joana Ribeiro Zimmer em 9 de maio do ano passado – veja trechos aqui – e que as autoridades da Polícia Civil de Tijucas prestem esclarecimentos sobre o andamento das investigações de profissionais e defensoras de direitos humanos que atuaram no caso.
Assinam o pedido de providências as organizações Anis – Instituto de Bioética, Cladem Brasil, Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular, e Cravinas – Clínica de Direitos Sexuais e Reprodutivos e Direitos Humanos da Universidade de Brasília.
Segundo analisam, as violações contra as advogadas ocorrem “em um contexto de criminalização do direito ao aborto legal e perseguição ideológica a profissionais que defendem esse e outros direitos sexuais e reprodutivos”.
Outra frente de perseguição citada pelas organizações, a CPI sobre o caso na Assembleia Legislativa de Santa Catarina, a Alesc, concluiu seu relatório final, acusando profissionais de saúde, advogadas e jornalistas de compor “organização criminosa” que “fomenta a prática do crime de aborto”.
O documento pede providências ainda à Comissão Nacional de Direitos Humanos, às Comissões Nacionais da Mulher Advogada, de Direitos Humanos e de Defesa das Prerrogativas e Valorização da Advocacia e à Procuradoria Nacional de Defesa das Prerrogativas. Também foi encaminhado às comissões da OAB-SC: da Mulher Advogada, de Prerrogativas e Defesa dos Honorários, e de Direitos Humanos.
As organizações também defendem que o sigilo dos casos judiciais só se fundamenta na preservação dos direitos da criança, adolescentes ou pessoas em situação de vulnerabilidade, e que não pode ser usado para encobrir violações, o que caracterizaria de fato a “verdadeira conduta criminosa”.
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